As múltiplas faces de uma bactéria

A E. coli é o principal agente etiológico da infecção bacteriana mais comum no ser humano

Escherichia coli é uma espécie bacteriana que inclui tanto isolados patogênicos quanto não patogênicos para o homem. Os isolados não patogênicos são parte da microbiota intestinal humana desde a infância e consistem, junto com os anaeróbios, numa proteção à adesão de patógenos, pois competem por sítios de ligação aos enterócitos.

A E. coli é, sem dúvida, o principal agente etiológico da infecção bacteriana mais comum no ser humano: a infecção urinária. Um grande grupo de E. coli causa diarréia sendo, por esta razão, designadas como diarreiogênicas. Esse grupo subdivide-se em patotipos, conforme a fisiopatologia e as manifestações clínicas que induzem.

A E. coli enteropatogênica (EPEC) – anteriormente conhecida como E. coli clássica – causa diarréia em crianças de até dois anos. Seus principais fatores de virulência são as proteínas intimina e Tir (do inglês, Translocated intimin receptor). Esta última é injetada no citoplasma do enterócito e a seguir exposta na face externa da membrana eucariótica, de modo que passa a atuar como receptor para intimina, presente na superfície bacteriana, permitindo assim sua adesão. A interação bactéria/célula resulta na alteração do citoesqueleto do enterócito e na formação de pedestais no epitélio. As EPECs possuem, ainda, um plasmídeo EAF, que codifica uma adesina (Bfp) e um ativador transcricional dos genes que codificam para intimina e Tir, assim como outros genes presentes na ilha de patogenicidade LEE, localizada no cromossomo bacteriano. As E. coli enteropatogênicas atípicas (aEPEC) possuem a ilha de patogenicidade LEE, mas são deprovidas do plasmídeo EAF, e tem sido identificadas como agentes de diarréia persistente em crianças e adultos. As EPECs e aEPECs não são consideradas invasoras, ou seja, apesar de alguns ensaios in vitro demonstrarem sua presença no interior de enterócitos, seu principal mecanismo de virulência é a deformação do citoesqueleto com formação de pedestais (lesão A/E).

As E. coli enteroagregativas (EAEC) não secretam toxinas, mas causam diarréia crônica ou persistente, e seus principais fatores de virulência são as fímbrias I e II (AAF/I e AAF/II), que permitem a adesão aos enterócitos, sem que no entanto ocorra invasão. As EAECs são o patotipo mais prevalente em pacientes com diarréia, dado que foi confirmado por estudo recente com amostras de pacientes da cidade de São Paulo.

As E. coli enterotoxigênicas (ETEC) são a causa mais frequente da chamada “diarréia do viajante”. Aderem à superfície do epitélio intestinal, mas não o invade. O quadro diarréico deve-se à produção de pelo menos uma de duas toxinas – LT ou ST – semelhantes àquela secretada pelo Vibrio cholerae, cuja atuação culmina na perda de fluidos para o lúmen do intestino.

As E. coli enteroinvasora (EIEC) causa quadro semelhante àquele observado em pacientes com infecção por Shigella flexneri ou S. sonnei, por meio de sua habilidade de invadir os enterócitos e – uma vez em seu interior – propagar-se para as células adjacentes, por indução do rearranjo do citoesqueleto. A despeito dessa semelhança, não produzem toxinas do tipo Shiga. Caracteristicamente, os pacientes infectados por EIEC apresentam fezes que contêm muco, pus e sangue.

Existe outro patotipo de grande importância clínica: a E. coli produtora de toxinas do tipo Shiga (STEC), também denominada VTEC por seu efeito tóxico in vitro em células tipo vero (células de rim de macacos verde). Está presente na microbiota intestinal de bovinos, cujas fezes representam a principal fonte de contaminação de alimentos por esse agente. Entre as STECs, recebem a denominação E. coli enterohemorrágica (EHEC) as cepas que expressam toxinas do tipo Shiga (Stx) capazes de causar colite hemorrágica e/ou síndrome hemolítico-urêmica em seres humanos. Apesar da colite hemorrágica, não há invasão da corrente sanguínea. O principal fator de virulência das EHECs é a própria toxina do tipo Stx: proteínas constituídas de uma subunidade maior de 30 kDa (A) e um pentâmero de subunidades 7 kDA (B), codificadas por genes localizados no cromossomo bacteriano, adquiridos a partir da infecção por vírus bacteriófagos. As STECs podem produzir as variantes Stx1, Stx2 ou ambas.

As toxinas do tipo Shiga atravessam a barreira intestinal, alcançam a corrente sanguínea e atuam em órgãos ricos em receptores glicolipídicos Gb3. Essa interação resulta na internalização do complexo em endossomos que, paradoxalmente, não se ligam aos lisossomos. A toxina é, então, transportadas para o retículo endoplasmático rugoso, onde sofre a ação de uma protease, o que permite a liberação de sua porção ativa, a subunidade A1. Esta subunidade inibe de modo irreversível o ribossomo eucariótico, removendo uma adenina do rRNA 28S da subunidade maior, resultando na interrrupção da síntese protéica. O processo desencadeia um mecanismo de resposta de estresse ribotóxico, que culmina na apoptose. Em síntese, o resultado da interação entre as toxinas do tipo Shiga e os receptores Gb3 presentes nos diferentes tipos celulares, pode ser a morte celular por apoptose ou necrose, ou ainda a manutenção da viabilidade celular, porém com produção de mediadores inflamatórios.

O órgão mais intensamente acometido pelas toxinas Stx é o rim, que expressa receptores Gb3 em suas células glomerulares: endoteliais, mesangiais e os podócitos. Os pulmões e o sistema nervoso central também expressam esses receptores e podem ser envolvidos, de modo secundario, após a lesão renal. É provável que tanto o número maior de receptores, quanto o grande fluxo sanguíneo e a atividade de filtração contribuam para que o rim seja o órgão mais afetado. O alvo principal parece ser o endotélio glomerular, levando à microangiopatia e ao déficit de filtração glomerular .Estes mecanismos estão implicados na fisiopatologia da síndrome hemolítico-urêmica (SHU), apresentação clínica mais grave da infecção por EHEC, que pode ocorrer em 6% a 20% dos pacientes com colite hemorrágica por esse agente.

A SHU é definida como um quadro de insuficiência renal de início abrupto, com oligúria ou anúria, acompanhada por elevação dos níveis séricos de uréia e creatinina, trombocitopenia (< 150.000 plaquetas/mm3) e anemia hemolítica – hemoglobina inferior a 10 g/dL com presença de hemácias fragmentadas no esfregaço de sangue periférico. A microangiopatia glomerular decorrente da lesão endotelial mediada pela ligação da toxina Stx resulta na diminuição do ritmo de filtração glomerular, provocando insuficiência renal aguda. Por outro lado, a exposição de moléculas de adesão pelo endotélio lesado provoca agregação e sequestro plaquetário, além de ruptura mecânica das hemácias que circulam pela luz dos pequenos vasos subocluídos, o que dá origem aos fenômenos de trombocitopenia e anemia hemolítica microangiopáticas.

Mesmo para as síndromes mais graves, o inóculo necessário para produzir uma infecção por STEC é pequeno, cerca de 10 a 100 colônias por grama de alimento. O período de incubação é de 3 a 8 dias, entre a ingestão do alimento contaminado e o surgimento dos sintomas. A maior parte dos pacientes apresenta diarréia hemorrágica, no entanto um pequeno número pode cursar com SHU sem a manifestação prévia da colite. O quadro diarréico dura em média 7 dias, é usualmente acompanhado por dor abdominal, febre baixa e, eventualmente, por vômitos. A população com maior risco para desenvolvimento de SHU – e, portanto, a mais afetada – são as crianças com idade inferior a 5 anos.

Há mais de 200 sorotipos de STEC, sendo que o mais frequentemente associado à SHU é o O157:H7, responsável por cerca de 50% dos casos. Esse sorotipo foi inicialmente correlacionado à síndrome na década de 80. Desde então, além da ocorrência de casos esporádicos, há relatos da ocorrência de surtos por esse sorotipo em vários países, relacionados à contaminação fecal de alimentos como carne, frutas e verduras. Em virtude desse tipo de transmissão, é de extrema importância que alimentos não cozidos, como frutas e verduras sejam expostos a soluções de hipoclorito de sódio antes do consumo. Recomenda-se uma exposição de 10 minutos a uma solução contendo 10 gotas de solução de hipoclorito a 2,5% para cada litro de água, e lavagem com água potável antes do consumo.

O diagnóstico de infecção por STEC é feito por coprocultura. Sepor um lado a identificação de E. coli O157:H7 por meio do cultivo em meio específico é facilitada por suas características fenotípicas, a exemplo da ausência de fermentação do sorbitol, para os demais sorotipos são necessários testes moleculares para a detecção dos genes que codificam as toxinas Stx1 ou Stx2. Para que os métodos adequados sejam realizados, é essencial que o médico assistente indique a suspeita clínica de infecção por STEC.

A imprensa tem veiculado grande quantidade de informações sobre o surto de infecção por EHEC associada a colite hemorrágica e SHU que ocorre atualmente na Europa. Os dados oficias do European Centre for Disease Control and Prevention indicam que, até 14 de junho de 2011, foram diagnosticados 3.332 casos da infecção, sendo 818 casos de SHU (24,5%) e 2514 com manifestações que não preenchem os critérios de definição da síndrome. Foram registrados um total de 36 óbitos, 23 deles relacionados à SHU (63,8%). O foco principal do surto é a Alemanha, onde ocorreram 97% dos casos, incluindo 95% dos pacientes com SHU e 97% dos óbitos, sendo 22 relacionados à SHU.

O patotipo identificado como causador desse surto vem recebendo denominação diferenciada, uma vez que traz características tanto comuns às STECs quanto às EAECs. O sequenciamento do seu genoma evidenciou maior similaridade com o patotipo EAEC, ausência da ilha de patogenicidade LEE e presença do gene stx2. Essas novas evidências têm levado alguns pesquisadores a propor a designação E.coli enteroagregativa produtora de verocitotoxina (EAggEC-VTEC), do sorotipo O104:H4.

O surto em curso traz dois aspectos novos: o sorotipo O104:H4 e a predominância da ocorrência de SHU em mulheres adultas (cerca de 87% dos casos). O hábito alimentar e a fonte de contaminação – sementes germinadas – assim como a ausência da intimina como fator de virulência podem ter contribuído para essas características epidemiológicas. A correlação entre ausência de expressão de intimina e maior acometimento de adultos já havia sido reportada anteriormente na Alemanha, mas o mecanismo exato não está esclarecido.

A conduta terapêutica não deve, a princípio, incluir a terapia antimicrobiana, pois a lise bacteriana pode aumentar a liberação de toxinas; entretanto se a terapia incluir eculizumab, anticorpo anti-C5, a terapia com os novos macrolídeos ou rifampicina pode ser considerada segura. Um consenso recente de infectologistas da Alemanha indica que a terapia com rifaximina pode ser útil e segura para a erradicação de STEC do trato intestinal em pacientes com colonização persistente e doença grave, mas sem indicação de terapia sistêmica. O mesmo consenso indica o uso de carbapenêmicos se houver suspeita de infecção secundária.

O uso de rifaximina nos pacientes com quadro de colite hemorrágica, e portanto com potencial para desenvolvimento de SHU parece ser uma abordagem racional, mas carece de estudos randomizados que comprovem que não há maior probabilidade de evolução para SHU.

*Jorge Luiz Mello Sampaio, médico assessor para Microbiologia e Parasitologia do Fleury Medicina e Saúde