Trombofilias: atualização. investigação diagnóstica dos distúrbios trombóticos

Tópicos presentes neste capítulo

  • Trombofilias: manifestações e relevância clínica  
  • Deficiências de anticoagulantes naturais  
  • Resistência à proteína C ativada e fator V Leiden (FV:Q506): principal anormalidade genética envolvida na etiologia das trombofilias  
  • Polimorfismo G20210A no gene da protrombina  
  • Hiper-homocisteinemia  
  • Aumento dos níveis plasmáticos de fatores da coagulação  
  • Fatores de risco genéticos raros  
  • Pesquisa de novos fatores de risco  
  • Investigação laboratorial das trombofilias  
  • Bases moleculares das trombofilias no Brasil: “Brazilian Thrombosis study”  
  • Referências  

Relatos de famílias com predisposição aumentada para eventos trombóticos venosos foram publicados desde o início do século XX. O conhecimento limitado acerca da composição química do sangue e das propriedades dos sistemas reguladores da formação do coágulo de fibrina, além da disponibilidade limitada de recursos diagnósticos, obviamente representou obstáculo considerável para a investigação de casos de trombose familiar naquela época. Apesar disso, é notável que mesmo nos relatos iniciais seja possível reconhecer fundamentos que permanecem como os mais atualizados na nossa compreensão da etiologia da trombose venosa: a noção de que fatores de risco adquiridos (tais como intervenções cirúrgicas e gestação) contribuem para a ocorrência da trombose, mas que fatores genéticos (cuja existência pode ser inferida pela tendência trombótica familiar) coexistem e também ocupam papel relevante determinando o risco trombótico.

Embora a patogênese do TEV não se encontre ainda totalmente elucidada, há claras evidências de que o processo seja influenciado pela interação complexa de fatores genéticos e ambientais, os quais recebem a designação genérica de fatores de risco. A caracterização de fatores de risco representa passo crucial para uma melhor compreensão da patogênese da trombose. Fatores de risco para o TEV diferem dos fatores de risco para trombose arterial. Hipertensão arterial, tabagismo, dislipidemia e diabete, por exemplo, que são fatores de risco estabelecidos para trombose arterial, não são fatores de risco para trombose venosa. Fatores de risco “clássicos” para TEV incluem: idade avançada, imobilização prolongada, operações, fraturas, uso de contraceptivos orais e terapêutica de reposição hormonal, gestação, puerpério, câncer, infecção e síndrome antifosfolípide. Essas condições são fatores adquiridos e não serão aqui discutidas em maior detalhe.

Ao longo das últimas décadas, progresso expressivo ocorreu no entendimento dos mecanismos fisiopatológicos envolvidos na ocorrência do TEV. Numerosas anormalidades associadas a hiperatividade do sistema de coagulação e predisposição a manifestações trombóticas foram identificadas, e a descrição desses “estados de hipercoagulabilidade” modificou substancialmente nossa visão sobre a doença trombótica venosa. O avanço mais significativo foi a confirmação do conceito de que condições de hipercoagulabilidade herdadas estão presentes em uma grande proporção de pacientes com trombose venosa e embolia pulmonar. Com efeito, estima-se que mais de 60% da predisposição a trombose seja atribuível a componentes genéticos. Esses novos conceitos culminaram na introdução do termo trombofilia para descrever uma predisposição aumentada, usualmente genética, para a ocorrência de TEV."

Trombofilias: manifestações e relevância clínica

O TEV tem alta incidência em diversas populações até então investigadas: acomete 1/1000 indivíduos anualmente. As manifestações clínicas usuais são a trombose venosa profunda de membros inferiores e a embolia pulmonar. Mais raramente a trombose ocorre em outros sítios (veias retinianas, veias intra-abdominais, membros superiores, sistema nervoso central, tromboflebite superficial). Os problemas de relevância clínica associados à trombose incluem a morbidade ligada ao evento agudo, a recorrência de eventos tromboembólicos, a síndrome pós-trombótica e a mortalidade decorrente de embolia pulmonar. Nos EUA, o TEV responde por 260000 hospitalizações/ano, insuficiência venosa crônica acomete 500000 indivíduos e embolia pulmonar é a causa de óbito em 50000 a 100000 casos anualmente.

Pacientes com trombofilia genética exibem predisposição aumentada para recorrência de eventos trombóticos, e a trombose tende a acontecer em idade precoce (antes dos 45-50 anos). Em até um terço dos casos, uma história familiar de trombose venosa pode ser identificada."

Deficiências de anticoagulantes naturais

Durante a ativação do sistema de coagulação, proteases séricas com atividade procoagulante são geradas seqüencialmente, o que culmina na formação de um coágulo estável de fibrina. A atividade dessas proteases é inibida por um grupo de proteínas denominadas anticoagulantes naturais ou inibidores fisiológicos da coagulação. A antitrombina (AT), a proteína C (PC) e a proteína S (PS) são componentes cruciais do sistema anicoagulante. Defeitos genéticos nesses inibidores da coagulação resultam em risco trombótico elevado.

Antitrombina

A AT é um membro da super-família de proteínas designadas serpinas (“serine proteinase inhibitors”). A AT é o principal inibidor da trombina, mas também exibe efeitos inibitórios sobre outros fatores da coagulação tais como os fatores IXa, Xa, XIa and XIIa. Adicionalmente, a AT acelera a dissociação do complexo fator VIIa-fator tecidual, e impede sua religação.

A deficiência de AT foi a primeira anormalidade hereditária associada a trombose familiar. Em 1965, Egeberg descreveu uma família norueguesa na qual pacientes com níveis plasmáticos de AT diminuídos apresentaram fenômenos trombóticos. Desde então, numerosos estudos relataram achados clínicos e laboratoriais semelhantes, estabelecendo o conceito de que a deficiência de AT é um fator de risco genético para trombofilia. Na deficiência de AT, homens e mulheres são igualmente afetados. É conceito estabelecido que a deficiência heterozigótica de AT é associada a risco aumentado de TEV. O estado homozigótico para a deficiência é extremamente raro e assume-se que seja incompatível com a vida.

O gene codificando a AT localiza-se no cromossomo 1 (1q23-25), tem 13,4 kb de DNA e apresenta sete exons. A primeira mutação ligada à deficiência de AT foi caracterizada em 1983. Desde então, a identificação de uma miríade de mutações no gene da AT revelou que a base molecular da deficiência de AT é altamente heterogênea. O diagnóstico e classificação da deficiência de AT podem ser efetuados mediante determinação plasmática da atividade e das concentrações do antígeno, usando métodos funcionais e imunológicos, respectivamente. A deficiência de AT é dividida em tipo I (deficiência quantitativa, caracterizada por níveis plasmáticos reduzidos do antígeno e da atividade funcional da AT) e tipo II (deficiência qualitativa, caracterizada pela presença de AT variante no plasma, com níveis antigênicos normais e com atividade diminuída). O tipo II é subdividido em RS (sítio reativo [“reactive site”] defeituoso), HBS (sítio de ligação à heparina [“heparin binding site”] defeituoso) e PE (pleiotrópico, isto é, com múltiplos efeitos sobre a função da AT). Mutações no gene da AT são periodicamente atualizadas e publicadas na forma de um banco de dados no web site http://www.med.ic.ac.uk/divisions/7/antithrombin/. O atual banco de dados (outubro/2002) contém 256 entradas e descreve um total  de 127 mutações distintas. Um total de 101 mutações de ponto e 12 grandes deleções são responsáveis pelos casos de deficiência de AT tipo I. Entre os tipos II de deficiência de AT, 55 mutações RS, 70 mutações HBS and 18 mutações PE foram descritas. Mutações do tipo “missense” são as mais freqüentemente encontradas, mas outros tipos de lesões gênicas (mutações “nonsense”, mutações em sítios de “splice”, deleções e inserções) também foram publicadas.

A deficiência de AT é considerada uma anormalidade rara, não obstante os dados sobre sua prevalência na população geral variem de 0,2/1000 a 11/1000 em diferentes estudos. As estimativas de risco trombótico ligadas à deficiência de AT e sua prevalência em pacientes com trombose também variam entre diferentes investigações, provavelmente refletindo diferenças de delineamento dos estudos e seleção de pacientes. Em geral, dados de estudos familiares originam estimativas de risco altas. Por exemplo, uma freqüência de TEV de 51% foi encontrada em indivíduos com deficiência de AT em um estudo familiar. Em um outro estudo de 14 famílias selecionadas com deficiência de AT, a incidência de TEV foi 20 vezes maior em 48 indivíduos com deficiência em comparação a 44 indivíduos sem deficiência; os dados do mesmo estudo, entretanto, também sugeriram que o risco trombótico ligado à deficiência de AT não é diferente de outras condições ligadas a trombofilia. Os dados desses dois estudos familiares apontam para elevado risco trombótico associado à deficiência de AT, em contraste com os achados dos estudos descritos a seguir. Em um estudo caso-controle (o “Leiden Thrombophilia Study”, LETS) a deficiência de AT foi associada a um aumento de risco de trombose venosa da ordem de cinco vezes. Em outros estudos, a prevalência de deficiência de variou de 1% a 8%. Uma revisão sobre deficiência de AT em pacientes jovens com trombose descreveu prevalências variando de 2% a 6%. Em conjunto os dados derivados dos diferentes estudos permitem concluir que a deficiência de AT é uma causa bem estabelecida, mas incomum, de trombofilia, e aceita-se que o estado heterozigótico seja associado a um aumento de risco trombótico da ordem de cinco a dez vezes.

É interessante salientar que a descrição inicial da deficiência de AT como causa de TEV originou a hipótese de que trombofilia seria uma doença monogênica de penetrância incompleta. Consoante discutido a seguir, essa visão foi substancialmente modificada nas décadas subseqüentes.

Proteína C e Proteína S

Deficiências de PC e PS resultam em defeitos no sistema anticoagulante do sangue e serão aqui discutidas em conjunto. A PC é ativada após a ligação da trombina a seu receptor no endotélio (a trombomodulina). A PC ativada cliva e inativa os fatores Va e VIIIa da coagulação, inibindo portanto a formação do coágulo de fibrina. A PS atua como cofator não enzimático da PC ativada, aumentando a eficiência dessas reações. Tendo em vista suas funções, é previsível que deficiências de PC e PS sejam ligadas a estados de hipercoagulabilidade e risco aumentado para ocorrência de TEV. De fato, na década de 1980 defeitos genéticos levando a deficiência de PC e PS foram pela primeira vez reconhecidos como causas hereditárias de trombofilia.

O gene da proteína C gene localiza-se no cromossomo 2 (2q13-14), possui aproximadamente 10 kb em extensão e contém nove exons. Mutações do tipo “perda de função” no gene da PC levam a deficiência de PC, que á considerada uma causa bem estabelecida de TEV. Similarmente à deficiência de AT, as anormalidades moleculares associadas à deficiência de PC foram identificadas em diversas famílias, e são altamente heterogêneas. O diagnóstico e classificação da deficiência de PC podem ser efetuados mediante determinação plasmática da atividade e das concentrações do antígeno, usando métodos funcionais e imunológicos, respectivamente. A deficiência de PC é classificada em tipo I (baixas concentrações plasmáticas da atividade funcional e do antígeno da PC) e tipo II (baixos níveis de atividade funcional da proteína com níveis antigênicos normais). Mutações no gene da PC são regularmente compiladas e publicadas em um banco de dados disponível para consulta no site http://www.xs4all.nl/~reitsma/Prot_c_intro.html. Mais de 160 diferentes mutações no gene da PC encontram-se descritas no banco de dados, na sua maior parte mutações do tipo “missense”. Outros defeitos descritos incluem mutações na região promotora, anormalidades em sítios de “splice”, deleções, inserções, e mutações “nonsense”.

O gene ativo responsável pela produção de PS é designado PROS1. Há ainda um pseudogene, designado PROS2, com alta similaridade estrutural com PROS1 mas que não é transcrito.  PROS1 e PROS2 foram mapeados no cromossomo 3 (3p11.1-q11.2). PROS1 possui 80 kb e contém 15 exons. Mutações do tipo “perda de função” no gene PROS1 levam a deficiência de PS, uma causa hereditária estabelecida de doença trombótica venosa. O padrão de herança da deficiência de PS é usualmente autossômico dominante. A PS circula na forma livre (fração designada PS livre, correspondendo a aproximadamente 40% da proteína circulante) e complexada à proteína C4b-BP (60% da PS circulante). A designação PS total é utilizada quando as duas formas, livre e complexada, são consideradas em conjunto. Com base em determinação de níveis plasmáticos, a deficiência de PS é classificada em tipo I (deficiência quantitativa com redução de PS total e livre), tipo II (deficiência qualitativa, caracterizada por atividade diminuída e níveis antigênicos normais de PS total e livre) e tipo III (níveis normais de PS total e baixos níveis de PS livre). A caracterização de defeitos genéticos responsáveis por casos de deficiência de PS revelou que suas bases moleculares são muito heterogêneas. Um banco de dados compilando os defeitos identificados no gene da PS gene é regularmente publicado (site na web: http://www.med.unc.edu/isth/proteins.htm). A última atualização do banco de dados (outubro/2000) descreve 131 mutações identificadas em 203 famílias com deficiência de PS investigadas. Somente sete mutações diferentes foram relacionadas ao tipo II de deficiência de PS; as mutações restantes foram encontradas em pacientes com deficiência quantitativa (tipo I e tipo III). Mutações “missense” respondem por aproximadamente 60% dos defeitos gênicos; mutações “non-sense”, em sítios de “splice”, pequenas e grandes deleções e inserções foram detectadas nos casos restantes.

A estimativa de prevalência da deficiência de PC na população geral é de aproximadamente 1/300. Dados recentes sobre a prevalência da deficiência de PS na população geral a pontam para freqüências entre 0,03% a 0,13%. Heterozigose para deficiência de PC e PS é associada a risco aumentado de TEV em diferentes populações. Como no caso da deficiência de AT, as informações sobre prevalência e risco trombótico das deficiências heterozigóticas de PC e PS variam em diferentes estudos. Em geral, estudos familiares originam estimativas de riscos mais elevadas em comparação a estudos caso-controle. Acredita-se que as deficiências de PC e PS, em estado heterozigótico, sejam associadas a riscos trombóticos semelhantes, aproximadamente dez vezes maiores do que em não portadores dessas deficiências.

Homozigose para as deficiências de PC e PS é usualmente associada a um fenótipo clínico grave conhecido como purpura fulminans, caracterizado por quadro de trombose maciça de microcirculação que se manifesta logo após o nascimento, embora formas menos graves de deficiência homozigótica de PC de início tardio tenham sido também descritas.

A heterogeneidade dos defeitos moleculares em casos de deficiência de AT, PC e PS representam importante obstáculo para a aplicação de métodos moleculares na investigação desses estados trombofílicos. Com efeito, a análise dos genes da AT, PC e PS não é utilizada na rotina de investigação de casos de TEV e mesmo no futuro próximo é pouco provável que a pesquisa de mutações nesses genes faça parte das ferramentas diagnósticas utilizadas na elucidação da etiologia de casos de trombofilia. Assim, como mencionado anteriormente, o diagnóstico das deficiências de AT, PC e PS é estabelecido mediante determinação plasmática da atividade e das concentrações do antígeno, usando métodos funcionais e imunológicos, respectivamente.

Deve ser ressaltado que embora as deficiências de AT, PC e PS sejam fatores de risco independentes para a ocorrência de TEV, em conjunto essas três anormalidades são detectadas em 5 a 15% dos casos de TEV. Dessa forma, pode-se afirmar que são causas bem estabelecidas, mas relativamente raras, de doença trombótica venosa. Em estudos conduzidos por um dos autores investigando a prevalência dessas alterações em pacientes com diagnóstico objetivo de trombose venosa profunda, detectamos as deficiências de AT, PC e PS, em conjunto, em aproximadamente 6 a 12% dos casos (a depender de critérios de seleção de pacientes), em concordância com a literatura.


Resistência à proteína C ativada e fator V Leiden (FV:Q506): principal anormalidade genética envolvida na etiologia das trombofilias

Até o início da década passada, um fator genético podia ser identificado somente em uma minoria de pacientes com TEV. Tal panorama modificou-se significantemente em 1993, quando Dahlbäck e colegas descreveram uma anormalidade altamente prevalente em pacientes com trombose venosa. Utilizando um ensaio de TTPA modificado, os autores observaram que a adição de PC ativada ao plasma de alguns pacientes com TEV não resultava no prolongamento esperado do tempo de coagulação, fenômeno à época descrito como “resistência à proteína C ativada” (RPCA). O mesmo estudo demonstrou que RPCA era uma anormalidade hereditária, e sua associação com incidência aumentada de TEV tornou-se clara quando em investigações subseqüentes o fenótipo de RPCA foi detectado em 20 a 50% de pacientes com TEV.

A RPCA hereditária é, na maior parte dos casos, o resultado de uma mutação de ponto do tipo “ganho de função” no fator V da coagulação: uma transição G®A no nucleotídeo 1691 do gene, levando a uma substituição de arginina (R) por glutamina (Q) no amino ácido 506 da proteína. A PC ativada reconhece essa posição como um sítio de clivagem na molécula do fator V ativado, inativando-o. Essa mutação de ponto foi identificada pela primeira vez em 1994 e é conhecida como fator V Leiden (FVL), FVR506Q, ou FV:Q506. O fator V mutante é resistente à neutralização mediada pela PC ativada, o que leva a um estado de hipercoagulabilidade e aumento significativo da susceptibilidade para ocorrência de TEV.

A magnitude do aumento de risco trombótico associado ao FVL é provavelmente menor que a observada em casos de deficiência de AT, PC e PS. Dados acerca do risco trombótico em famílias com a mutação do FVL são ainda escassos, e informações adicionais são necessárias para melhor definir o papel dessa mutação na trombofilia familiar. Com base nos dados disponíveis (quase todos obtidos em estudos do tipo caso-controle e coorte), pode-se afirmar que a heterozigose para a mutação do FVL aumenta em três a oito vezes o risco de trombose venosa, embora riscos mais altos tenham sido descritos em algumas populações. Homozigose para o FVL aumenta em 50 a 100 vezes o risco trombótico. Há controvérsia quantto à associação do FVL com risco aumentado de recorrência de TEV. O FVL é considerado o defeito genético mais freqüentemente envolvido na etiologia da doença trombótica venosa, sendo encontrado em 10 a 50% dos casos de TEV. Em uma recente análise de 388 pacientes com trombose venosa profunda e 388 controles pareados, detectamos a mutação do FVL em ~11% dos pacientes e em ~2,5% dos controles, demonstrando que essa mutação é ligada a um aumento de risco de trombose venosa da ordem de cinco vezes na  população brasileira.

O FVL é altamente prevalente em populações caucasianas, com freqüências de portadores variando de 1% a 15%. Em um estudo, determinamos a prevalência da mutação do FVL em 440 indivíduos (880 cromossomos) de quatro grupos étnicos diferentes: caucasóides, negros africanos, asiáticos e ameríndios. A mutação do FVL foi encontrada em heterozigose em 4 de 152 caucasóides (2,6%), 1 de 151 ameríndios (0,6%) e esteve ausente em 97 negros africanos e 40 asiáticos. Nossos resultados demonstraram que o FVL apresenta distribuição heterogênea em diferentes populações humanas, fato que pode contribuir para diferenças étnicas e geográficas na prevalência de doenças trombóticas (por exemplo, a menor incidência de TEV em asiáticos e negros africanos em comparação a caucasóides).

A anormalidade do FVL originou-se a partir de um único evento mutacional que ocorreu há aproximadamente 21000-30000 anos, isto é, após a divergência entre africanos e não africanos e entre caucasóides e mongolóides na evolução humana. A persistência da mutação em conjunção com sua alta prevalência em populações caucasianas sugere a existência de pressão seletiva positiva ligada ao FVL. Evidência para apoiar essa hipótese foi relatada em um estudo recente que revelou um índice de complicações hemorrágicas intra-parto significativamente menor em mulheres portadoras do FVL em comparação a não portadoras. Assim, especula-se que a mutação do FVL possa ter conferido vantagem seletiva no passado, quando o risco hemorrágico decorrente de condições primitivas de vida poderia ser minimizado na presença da mutação. Por outro lado, o efeito deletério da mutação (trombose) pode ter se tornado aparente somente mais recentemente, em função da sua interação com fatores adquiridos para TEV que apareceram na sociedade moderna, tais como intervenções cirúrgicas, anticoncepcionais orais, terapêutica de reposição hormonal, envelhecimento da população, entre outros.

Foram descritas duas outras mutações no gene do fator V, as quais afetam um sítio de clivagem da PC ativada na molécula do fator V: fator V Hong-Kong, (FV:R306G) e fator V Cambridge (FV:R306T). Em um estudo, foi pesquisada a prevalência das duas mutações em diferentes grupos étnicos, e demonstrou-se que ambas variações genéticas são muito raras na população geral. Em outra investigação, foi demonstrado que isoladamente o fator V Cambridge e o fator V Hong-Kong não são fatores de risco para TEV. O papel do fator V Cambridge em associação com outros fatores de risco genéticos e adquiridos ligados ao TEV merece atenção adicional, já que um estudo recente sugere a possibilidade de efeitos de interação modificando o risco trombótico ligado a essa mutação.

A RPCA na ausência da mutação do FVL é também associada a aumento de risco de trombose venosa. O grau de RPCA é diretamente associado a maior risco trombótico, sugerindo a existência de um efeito dose-resposta.

Em 1997, um haplótipo no gene do fator V (designado HR2, descrito com base na identificação de um conjunto de variações polimórficas no gene) foi identificado como um componente genético diferente do FVL que poderia contribuir para o fenótipo de RPCA. Desde então, a associação do haplótipo HR2 com o fenótipo de RPCA, com os níveis de FV no plasma e com risco trombótico foi avaliada em numerosos estudos e resultados controversos foram relatados. Assim, não se pode concluir que o haplótipo H2 seja um fator de risco para TEV, e estudos adicionais com grande número de pacientes com trombose são necessários para esclarecer seu papel na etiologia das trombofilias.

O diagnóstico de RPCA é estabelecido mediante utilização do teste modificado do TTPA (na ausência e presença de PC ativada), e a diluição da amostra com plasma deficiente em fator V resulta em discriminação mais confiável entre portadores heterozigotos, portadores homozigotos e não portadores. Alternativamente, técnicas de análise gênica, baseadas na amplificação por PCR do exon 10 do gene do fator V, podem ser utilizadas para detectar a mutação do FVL. É nossa opinião que os dois métodos devem ser utilizados na rotina da investigação de pacientes com TEV. A razão para tal estratégia é que a informação acerca da presença do FVL pode alterar substancialmente o manejo de profilaxia e terapêutica de eventos trombóticos nos portadores da mutação. Assim, há necessidade de pesquisa da mutação por técnicas de análise gênica. Por outro lado, cerca de 5-10% dos casos de RPCA ocorrem na ausência da mutação do FVL. Conforme mencionado, indivíduos com o fenótipo de RPCA na ausência do FVL também apresentam risco trombótico aumentado. Esses indivíduos somente podem ser identificados mediante realização do teste de RPCA, razão pela qual o utilizamos (em adição à pesquisa da mutação) na rotina de investigação de pacientes com TEV.

Finalmente, vale ressaltar que a identificação do FVL como anormalidade presente em grande número de casos de TEV modificou substancialmente nossa visão de trombose, posto que demonstra inequivocamente a contribuição de um fator genético determinando a ocorrência dessa doença.


Polimorfismo G20210A no gene da protrombina

Em 1996, um novo fator de risco genético envolvido na etiologia do TEV foi descrito: uma transição G®A na posição do nucleotídeo 20210 na região não traduzida a 3’ do gene do fator II da coagulação (FII, protrombina). O FII G20210A é associado a níveis plasmáticos elevados de protrombina e risco aumentado de TEV. Essa mutação é encontrada em 1 a 3% de indivíduos na população geral, e em 6 a 18% dos pacientes com doença trombótica venosa. Esses estudos estabeleceram que FII G20210A, em heterozigose, é associado a um aumento de duas a cinco vezes no risco de TEV.

Em estudo conduzido em 1998, determinamos a prevalência da mutação do FII G20210A em 420 indivíduos não aparentados (840 cromossomos) provenientes de quatro grupos étnicos: brancos, negros africanos e brasileiros, asiáticos e ameríndios. O polimorfismo foi encontrado em heterozigose em 2 de 120 brancos, ou uma prevalência de 1,6% (freqüência alélica 0,8%), similar à observada em outras populações caucasóides. O alelo A esteve ausente nos outros grupos étnicos analisados. Esses dados mostraram que em não caucasóides a prevalência da mutação 20210 G®A no gene da protrombina, se existente, deve ser extremamente baixa. Como no caso da mutação do FVL, a distribuição étnica heterogênea do FII G20210A pode contribuir para explicar diferenças étnicas e geográficas no risco para desenvolvimento de doença vascular trombótica. Em adição, os achados disponíveis indicam que essa variação genética surgiu na evolução humana antes da divergência entre africanos e não africanos. Como no caso do FVL, uma única origem genética foi demonstrada para o polimorfismo FII G20210A.

Os mecanismos pelos quais o FII G20210A resulta em aumento de risco trombótico não são bem conhecidos. No relato original de descrição da mutação, uma associação do alelo mutante com hiperprotrombinemia foi encontrada. Esse achado foi confirmado em estudos subseqüentes, nos quais verificou-se que os níveis plasmáticos de protrombina em portadores da mutação foram mais elevados do que em não portadores. Os níveis de complexos trombina-antitrombina assim como os de fragmento 1+2 da protrombina foram também mais elevados em portadores da mutação, fornecendo evidência para uma associação entre a mutação e formação aumentada de trombina. Esses dados apontam para uma associação da mutação do FII com formação excessiva de trombina, fato que pode contribuir para a compreensão do seu papel nas doenças trombóticas.

Resultados controversos foram publicados no que se refere ao papel da mutação do FII G20210A como um fator de risco para recorrência de TEV e esse tópico permanece por ser esclarecido. O diagnóstico dessa anormalidade somente pode ser estabelecido mediante determinação do genótipo utilizando técnicas de análise gênica. A mutação do FII G20210A é a segunda anormalidade genética mais prevalente ligada a trombofilia, e sua descrição reforçou o conceito de TEV como uma doença multigênica.


Hiper-homocisteinemia

Hiper-homocisteinemia (elevação anormal das concentrações plasmáticas do amino-ácido homocisteína) é um fator de risco estabelecido para ocorrência de trombose venosa, sendo associado a um aumento de risco trombótico da ordem de duas a quatro vezes. Fatores genéticos e adquiridos interagem para determinar as concentrações de homocisteína no plasma e por essa razão classifica-se hiper-homocisteinemia como um fator de risco “misto” de TEV. A hiper-homocisteinemia pode ser ainda classificada em grave (nível plasmático >100mmol/L), moderada (25 a 100 mmol/L) ou leve (16 a 24 mmol/L). Os mecanismos pelos quais a hiper-homocisteinemia contribui para a trombogênese são apenas parcialmente compreendidos, e estudos diversos apontam para perturbações em diferentes componentes do sistema hemostático.

Causas adquiridas de hiper-homocisteinemia incluem deficiências nutricionais de vitamina B12, vitamina B6 e folato, idade avançada, insuficiência renal crônica e uso de medicações anti-fólicas. Defeitos nos genes das enzimas metilenotetraidrofolato redutase (MTHFR) e cistationina b-sintase (CBS), envolvidas no metabolismo intracelular da homocisteína, podem resultar em deficiência enzimática e hiper-homocisteinemia. Numerosas mutações na MTHFR e CBS foram identificadas; a maior parte dessas anormalidades são raras e somente apresentam conseqüências clínicas em homozigose. Essa condição, quando leva a quadro de hiper-homocisteinemia grave, é caracterizada por homocistinúria, múltiplos déficits neurológicos, retardo psicomotor, convulsões, anormalidades esqueléticas, ectopia lentis, doença arterial prematura e TEV. Em contraste com a raridade desses defeitos, duas mutações da MTHFR (677 C®T e 1298 A®C) e uma mutação da CBS (844ins68) são prevalentes e merecem discussão adicional.

MTHFR 677 C®T, uma variação polimórfica com alta prevalência na população geral, é associada (em estado homozigótico) a atividade enzimática reduzida, a fenótipo de termolabilidade enzimática, e a hiper-homocisteinemia (leve a moderada), mas é controverso seu papel como um fator de risco genético independente para a ocorrência de TEV ou como modificador de risco trombótico conferido por outras anormalidades trombofílicas.

Em estudo recente conduzido no Brasil, Morelli et al. investigaram a prevalência de hiper-homocisteinemia em 91 pacientes selecionados com TEV e em 91 controles pareados, e sua correlação com o genótipo 677T da MTHFR. Os níveis de homocisteína total foram mais elevados em pacientes (mediana de 7.4 mmol/L, variação 3.6-137.0 mmol/L) do que em controles (6.9 mmol/L, variação 3.2-22.6 mmol/L, p = 0,033). Hiper-homocisteinemia foi detectada em 16,5% dos pacientes e em 3,3% dos controles, originando uma odds ratio para trombose venosa de 5,8 (IC95%: 1,6-20,7). Nesse estudo, a prevalência do alelo mutante 677T da MTHFR não foi estatisticamente diferente entre pacientes e controles, mas o alelo mutante foi associado a níveis plasmáticos elevados de homocisteína. Esse estudo, pioneiro na investigação de hiper-homocisteinemia como fator de risco para trombose no Brasil, demonstrou importante aumento de risco trombótico asssociado a essa anormalidade, aumento de risco que não é, entretanto, ligado à mutação da MTHFR, que teve efeito neutro sobre o risco de TEV.

A mutação MTHFR 1298 A®C isoladamente não parece ser associada a hiper-homocisteinemia, mas em heterozigose composta com a mutação MTHFR 677 C®T pode resultar em atividade enzimática diminuída e níveis plasmáticos elevados de homocisteína. A mutação MTHFR 1298 A®C não parece influenciar significativamente o risco de trombose venosa, mas é nossa opinião que estudos adicionais são necessários para melhor definir o papel desse polimorfismo em combinação com outras condições protrombóticas na trombofilia.

Uma inserção de 68-bp no gene da CBS (844ins68) foi recentemente descrita. Isoladamente esse polimorfismo parece não influenciar os níveis de homocisteína ou risco de trombose venosa profunda, mas em combinação com MTHFR 677 C®T pode resultar em risco trombótico aumentado. Em um estudo, prevalência similar da inserção da CBS foi encontrada em pacientes com trombose venosa e em controles pareados, demonstrando que essa mutação não modifica risco trombótico e não necessita ser investigada em pacientes com TEV.

Hiper-homocisteinemia é usualmente diagnosticada mediante determinação dos níveis de homocisteína no plasma (em jejum e/ou após teste de administração de metionina) utilizando as técnicas de espectrofotometria de massa ou de HPLC (“high performance liquid chromatography”) com detecção eletroquímica ou fluorescente. Métodos alternativos incluem imunoensaios, cromatografia de troca de íons, cromatografia a gás  e ensaios radio-enzimáticos. Alguns autores recomendam pesquisa da mutação MTHFR 677 C®T como parte da investigação laboratorial da etiologia do TEV. Todavia, dado o fato que nenhuma anormalidade genética nas enzimas envolvidas no metabolismo da homocisteína tenha sido até então inequivocamente identificada como fator de risco independente para TEV, e que a mutação MTHFR 677 C®T não se confirmou fator de risco para trombofilia na maioria dos estudos, incluindo em nossa população, não recomendamos pesquisa sistemática de mutações da MTHFR e CBS na investigação de rotina de pacientes com TEV. A pesquisa dessa variante pode ser feita, todavia, se se pretende elucidar a causa de hiper-homocisteinemia eventualmente detectada em um paciente.


Aumento dos níveis plasmáticos de fatores da coagulação

As concentrações plasmáticas do fator VIII da coagulação refletem a influência combinada de fatores hereditários e adquiridos. Por exemplo, genes codificando os grupos sangüíneos ABO e o fator de von Willebrand influenciam os níveis de fator VIII. Adicionalmente, agregação familiar de níveis elevados de fator VIII (não ligada ao grupo sangüíneo ou fator de von Willebrand) foi também descrita, apontando para a existência de componentes genéticos desconhecidos determinando as concentrações plasmáticas do fator VIII da coagulação. Dentre os fatores adquiridos que influenciam os níveis de fator VIII, destaca-se a inflamação, pois o fator VIII comporta-se como uma proteína de fase aguda.

Níveis elevados de fator VIII representam um fator de risco estabelecido para TEV. No “Leiden Thrombophilia Study”, níveis plasmáticos ³ 150 UI/dL foram associados a um aumento de aproximadamente cinco vezes no risco de trombose venosa. Entretanto, nenhuma anormalidade molecular específica foi até o momento identificada no gene do fator VIII que explique os níveis plasmáticos elevados ou o aumento de risco trombótico.

Hiper-fibrinogenemia é associada a risco aumentado de TEV, mas estudos adicionais são necessários para melhor definir sua exata prevalência e relevância clínica, assim como as vantagens de sua investigação sistemática em pacientes com trombose.

Um estudo recente demonstrou que níveis plasmáticos elevados de fator XI (acima do percentil 90) são associados a um aumento de risco de trombose venosa da ordem de 2,2 vezes. Uma relação dose-resposta entre o nível de fator XI e risco trombótico foi observada, e o risco conferido pelos níveis de fator XI mostrou-se independente de outros fatores de risco genéticos ou adquiridos estabelecidos.

Foi recentemente relatado que concentrações plasmáticas de fator IX acima do percentil 90 são associadas a aumento de duas a três vezes no risco de trombose venosa profunda. Esse risco não é influenciado por outros fatores, e maior risco parece existir em mulheres (aumento de risco de 2,5 vezes) em comparação a homens (aumento de risco de 1,9 vezes).

É nossa opinião que a utilidade clínica da determinação sistemática dos níveis de fatores da coagulação em pacientes com TEV deve ser comprovada em estudos futuros antes que este procedimento seja adotado como rotina na investigação de estados trombofílicos.


Fatores de risco genéticos raros

Causas raras de trombofilia incluem as disfibrinogenemias e as deficiências de plasminogênio e de cofator II da heparina. Em casos de alta suspeita de trombofilia em que a investigação de fatores mais comuns resultou negativa, as três alterações mencionadas podem ser pesquisadas por meio de dosagens plasmáticas.

Pesquisa de novos fatores de risco

Mutações em outros genes, em especial no fator XIII, fator tecidual, trombomodulina, TFPI, TAFI e EPCR foram descritas nos últimos, e sua associação com trombofilia encontra-se ainda sob investigação.

A Tabela 1 mostra a prevalência de fatores de risco genéticos e “mistos” na população geral e em pacientes com TEV. A Tabela 2 lista os fatores de risco conhecidos (genéticos, adquiridos e mistos) envolvidos na etiologia da doença trombótica venosa. O conceito de que esses diferentes modificadores de risco interagem dinamicamente para determinar o risco trombótico é útil para uma melhor compreensão do TEV como uma doença multifatorial.

Tabela 1. Prevalência de fatores de risco genéticos e “mistos” na etiologia das trombofilias

* Factor VIII ³ 150 UI/dL; & Factor IX  > 150 UI/dL; # Factor XI  > 120 UI/dL

Tabela 2. Fatores de risco no tromboembolismo venoso

Investigação laboratorial das trombofilias

A Tabela 3 lista os métodos empregados na investigação das trombofilias hereditárias. O diagnóstico de deficiência de AT, PC e PS é estabelecido mediante determinação das concentrações plasmáticas de cada proteína, utilizando métodos funcionais e imunológicos. A resistência à proteína C ativada pode ser diagnosticada pelo método do TTPA modificado ou pela identificação da mutação do FVL por técnicas de análise gênica. A mutação FII G20210A somente pode ser detectada por análise gênica. Hiper-homocisteinemia é diagnosticada por meio da determinação dos níveis plasmáticos de homocisteína, usualmente empregando a técnica de espectrofotometria de massa ou de HPLC. Já que nenhuma mutação ligada a hiper-homocisteinemia foi inequivocamente ligada a aumento de risco trombótico, não recomendamos pesquisa de rotina de mutações da MTHFR ou CBS na avaliação de pacientes trombóticos. A real utilidade da quantificação de níveis plasmáticos de fatores da coagulação em pacientes com TEV permanece por ser demonstrada, de modo que até o presente não se pode recomendar sua realização na rotina de investigação das trombofilias.

Deve ser também mencionado que os critérios de inclusão para testes de trombofilia não são os mesmos em todos os centros. Uma estratégia realista é investigar obrigatoriamente todos os pacientes com diagnóstico objetivo de evento trombótico venoso quando uma ou mais das seguintes circunstâncias são constatadas: pacientes relativamente jovens (< 50 anos), recorrência de TEV, trombose em sítios pouco usuais (veias retinianas, veias intra-abdominais, membros superiores, sistema nervoso central, tromboflebite superficial), e história positiva de doença trombótica venosa. A extensão da mesma investigação a familiares de pacientes com trombose com uma determinada anormalidade trombofílica identificada pode, em teoria, beneficiar portadores assintomáticos, já que medidas profiláticas para TEV poderiam ser adotadas em circunstâncias apropriadas. Esse ponto, todavia, permanece altamente controverso. As razões para a controvérsia são relativas à pressão psicológica gerada pela pesquisa de anormalidades genéticas, ao problema de se “rotular” indivíduos assintomáticos como portadores de uma “anormalidade”, e a problemas com seguro-saúde e de previdência social. Adicionalmente, incertezas existem no que concerne aos benefícios reais da identificação de estados protrombóticos hereditários em portadores assintomáticos. Para examinar adequadamente esse último ponto, dados sobre incidência de trombose e riscos absolutos de trombose em indivíduos assintomáticos são necessários. Não obstante alguns estudos tenham abordado esse aspecto em parentes de portadores sintomáticos e assintomáticos de mutações ligadas a trombofilia, dados derivados de grandes estudos prospectivos são ainda necessários para resolver a questão.

Tabela 3. Diagnóstico laboratorial das trombofilias hereditárias

* Método funcional para dosagem de AT e PC e método imunológico para dosagem de PS. Métodos imunológicos podem ser utilizados para caracterização adicional de casos de deficiência de AT e PC


Bases moleculares das trombofilias no Brasil: “Brazilian Thrombosis study”

A definição de fatores genéticos que contribuem para a trombose venosa deve ser pesquisada em diferentes populações, preferencialmente no contexto de estudos conduzidos para avaliar especificamente essa questão. No Brasil, o estudo caso-controle designado BRATROS - “Brazilian Thrombosis Study” investigou a contribuição de fatores genéticos para o risco de doença trombótica venosa. Nesse estudo, foram incluídos pacientes admitidos em três hospitais universitários com um episódio de trombose venosa profunda cujo diagnóstico foi estabelecido com base na documentação objetiva do evento trombótico por ultrassonografia ou flebografia. Pacientes acima de 70 anos ou com evidência de doença neoplásica foram excluídos. Para cada paciente, foram coletados dados sobre exposição a fatores de risco adquiridos “clássicos” para trombose (imobilização, intervenção cirúrgica, trauma, infecção) e no caso de mulheres informações sobre uso de contraceptivos orais e terapêutica de reposição hormonal, gestação e puerpério foram também pesquisadas. História familiar de trombose foi investigada em todos os casos e considerada positiva quando o paciente referiu um diagnóstico médico de trombose venosa ou embolia pulmonar em um parente de primeiro grau. À medida que os pacientes foram incluídos no estudo, amostras foram também colhidas de 420 controles sem história pessoal de trombose venosa. Cada controle foi pareado por idade, sexo e etnia para um paciente. A Tabela 4 apresenta os principais dados do BRATROS, listando a prevalência de diferentes anormalidades listadas nos pacientes com trombose e controles.

Tabela 4. “Brazilian Thrombosis Study” - BRATROS

* Para essas anormalidades, a diferença entre pacientes e controles foi estatisticamente significante.


Referências

1. Franco RF, Reitsma PH. (2001) Review article: Genetic risk factors of venous thrombosis. Human Genetics 109: 369-384.

2. Franco RF, Trip M.D, Reitsma PH. (2003) Review article: Genetic variations of the haemostatic system as risk factors for venous and arterial thrombotic disease. Current Genomics 4(4): 309-336.

3. Lane DA, Grant PJ. (2000) Role of hemostatic gene polymorphisms in venous and arterial thrombotic disease. Blood 95: 1517-1532.

4. Rosendaal FR. (1999) Venous thrombosis: a multicausal disease. Lancet 353: 1167-1173.

 5. Tripodi A, Mannucci PM. (2001) Laboratory investigation of thrombophilia. Clinical