Alergia alimentar sem mistérios | Revista Médica Ed. 2 - 2016

Especialista suíça simplifica o diagnóstico nesse campo, no qual história e testes laboratoriais precisam estar em plena sintonia

“Nunca devemos fazer testes proféticos em alergia”, dispara a alergologista Barbara Ballmer-Weber, médica-chefe da Clínica de Alergia no Kantonsspital Luzern, na Suíça, e professora-associada de Alergia e Dermatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Zurique. Com a autoridade de quem já publicou mais de 150 artigos, a maioria sobre alergia alimentar, Ballmer defende que a detecção isolada da IgE específica de um alimento não fecha diagnóstico sem história concomitante de reação alérgica a esse item.

Nesta entrevista, que concedeu de Zurique à nossa reportagem, a alergologista compartilha o modo como faz o manejo de pacientes alérgicos a alimentos em sua prática clínica, destacando a necessidade de trabalhar em conjunto com outros especialistas para melhor acompanhar a evolução de cada caso. “Sugiro que cada colega construa uma rede própria”, diz.


Barbara Ballmer-Weber, médica-chefe da Clínica de Alergia no Kantonsspital Luzern, Suíça.

Na sua opinião, que alimentos causam o maior número de reações?

Nas crianças pequenas, é comum a alergia a ovo e leite. Algumas vezes, trigo, soja, amendoim e nozes também podem causar reação e, de acordo com os hábitos nutricionais da região, peixe e mariscos estão implicados. Conforme o crescimento do paciente, vemos mais e mais alergias alimentares por reação cruzada. Na Europa e em parte dos EUA, México ou Japão, observamos processos alérgicos decorrentes de reações cruzadas entre os principais alérgenos de árvores (bétula e carvalho) e proteínas homólogas de frutas, nozes, vegetais e leguminosas. Esses casos são mais prevalentes do que as alergias a alimentos de origem animal.

Os alérgicos a certos alimentos têm risco de reação com a ingestão de itens similares por reação cruzada. Como podemos aconselhá-los adequadamente?

A história clínica é muito importante em tais casos. Quando os pacientes me consultam com uma alergia a frutos secos, por exemplo, à castanha de caju, pergunto-lhes sobre sua experiência com outros frutos secos. Em geral, ouço relatos de que comem avelãs, amêndoas, pinhões, macadâmia e outros. Nessas situações, apenas os aconselho a não ingerir castanha de caju. Para os que não sabem ou não toleraram tais alimentos, peço que os eliminem da dieta. Ainda forneço medicamentos de emergência e a caneta de adrenalina para as reações graves. O próximo passo é solicitar os testes cutâneos e a determinação da IgE específica para as diferentes nozes e os componentes relevantes. Por último, faço as provocações.

Como manejar pacientes que tiveram anafilaxia após a ingestão de carne vermelha?

Indivíduos com reação tardia à carne vermelha devem ser testados para a IgE da alfagal, um oligossacarídeo encontrado em células de mamíferos não primatas. Esse epítopo está presente nas carnes bovina, de porco e de cordeiro, mas não na de frango. Apesar de tais reações poderem se dever a picadas de carrapatos – o primeiro tipo implicado foi o Amblyomma americanum –, os pacientes muitas vezes não se lembram dessa história, não havendo necessidade de procurar alergia a veneno de insetos, a menos que haja relato de reação após picadas.

Na avaliação de alérgicos ao látex para a possibilidade de reatividade cruzada com frutos e vegetais, que testes devemos indicar?

Em pacientes com alergia ao látex, tomamos cuidado em relação à história de reações a alimentos como banana, abacate, kiwi, castanhas, pimentão verde e outras frutas e nozes. Mas não precisamos fazer testes específicos na ausência de história positiva para tais itens.

Em resumo, qual deve ser o algoritmo correto para investigar uma alergia alimentar?

Nunca devemos fazer testes proféticos em alergia! Primeiro, precisamos ter uma certa suspeita. Depois, olhamos para a IgE específica ou componentes do alimento suspeito. Como as dosagens de IgE não são "testes de alergia", mas apenas provas de uma sensibilização, que também pode ser clinicamente silenciosa e sem relevância clínica, a pura detecção da IgE, sem uma história confiável e concomitante de reação alérgica ao respectivo alimento ou mesmo sem testes de provocação positivos, não configura diagnóstico de alergia alimentar.

E qual a sua opinião sobre a IgG4, que ainda é muito solicitada?

A IgG4 específica para alimentos não indica (iminente) alergia ou intolerância alimentar, mas, sim, uma resposta fisiológica do sistema imunológico após a exposição aos componentes dos alimentos. Portanto, é considerada irrelevante, dentre os exames laboratoriais de alergia ou intolerância alimentar, e não deve ser realizada para elucidar tais queixas.

Quando pedir testes de diagnóstico resolvido por componentes para alérgenos alimentares?

Se um doente sofre apenas sintomas leves, restritos à cavidade oral, pode-se muitas vezes dispensar uma análise estendida in vitro. O diagnóstico resolvido por componentes (CRD) nos dá uma avaliação de risco e tem utilidade na suspeita de alergia a amendoim e frutos secos. Se detectamos concentrações elevadas de IgE para proteínas de armazenamento, a probabilidade de um paciente ser, de fato, alérgico a amendoim ou frutos secos aumenta. Assim, não fazemos testes de provocação para confirmar tal configuração, especialmente se a história sugere que o indivíduo teve uma reação grave ou anafilaxia, ou, se eles forem realmente necessários, procedemos à provocação com muito, muito cuidado. O CRD também eleva a sensibilidade dos testes in vitro se, por exemplo, um alérgeno relevante é sub-representado em um extrato de alimentos. Além disso, temos doenças específicas que merecem manejo diferente, como a anafilaxia induzida pelo trigo e dependente do exercício, na qual é útil olhar para a sensibilização para Tri a 19. Nos casos de alergia a frutas e sensibilização para a proteína de transferência de lipídios, aconselhamos ainda a supressão de produtos processados.

Em que situações há necessidade de provocação oral?

Se a determinação da IgE específica e/ou os testes cutâneos para um alimento específico não apresentam sensibilidade de 100% e temos uma história clara de reação alérgica relevante, com sintomas sistêmicos, devemos fazer provocações para definitivamente excluir a alergia alimentar. O procedimento serve para avaliar o desenvolvimento de tolerância, para analisar a relevância clínica da sensibilização alimentar sobre o curso de uma dermatite atópica em indivíduos que respondem a uma dieta de eliminação, para detectar sensibilização a um alimento que nunca tenha sido ingerido ou que tenha sido consumido em pequenas quantidades e para fechar um diagnóstico em pacientes polissensibilizados para diferentes alimentos.

A alergia alimentar envolve muitos especialistas, como alergologista, gastroenterologista, pediatra e nutricionista, mas, na prática, não vemos tal integração. O que podemos fazer a favor disso?

Costumo trabalhar em conjunto com todos esses especialistas. Cada alergologista que lida com alergia alimentar depende de um nutricionista de confiança, que deve estar bem informado sobre o assunto. Mantenho uma colaboração de confiança com muitos gastroenterologistas. Então, sugiro aos colegas que construam uma rede própria. Os simpósios interdisciplinares sobre o tema e as rodadas de discussão com especialistas mostram-se muito úteis nesse sentido.

Entrevista concedida à

Dra. Barbara Gonçalves da Silva, 

consultora médica do Fleury.