Alergistas para todos | Revista Médica Ed. 4 - 2014

Defensor incansável de programas de formação e de educação continuada na área, especialista português fala da realidade e dos desafios da Imunoalergologia

Defensor incansável de programas de formação e de educação continuada na área, especialista português fala da realidade e dos desafios da Imunoalergologia


As doenças alérgicas vêm aumentando entre os europeus nos últimos anos, devido ao estilo de vida associado ao desenvolvimento urbano, ao sedentarismo, à poluição do ar, ao tabagismo, aos regimes alimentares e à obesidade, segundo enumera o alergista Mário de Morais Almeida, docente das Universidades de Lisboa e do Porto, em Portugal, e diretor do Centro de Alergia da José de Mello Saúde. Em seu país, 25% da população vive com rinite, 10%, com asma e outros 10%, com dermatite atópica, 20% dos adultos já tiveram urticária, até 5% apresentam alergia alimentar, quase 5% são sensíveis a venenos de insetos e 1% vai ter anafilaxia. Para completar, na maioria das vezes essas doenças coexistem. “É uma verdadeira epidemia, para a qual os países devem se preparar, e que realça bem a importância de formar especialistas, tal como acontece no Brasil”, assinala Almeida, que esteve recentemente em São Paulo para participar de um simpósio promovido pelo Fleury, quando conversou com nossa reportagem.


 

Mário de Morais Almeida, docente das Universidades de Lisboa e do Porto, em Portugal.

ARQUIVO PESSOAL  


Como o senhor tem grande proximidade conosco, saberia dizer quais são as principais diferenças e semelhanças entre Brasil e Portugal no tocante à Imunoalergologia?

 

Na verdade, por todo o mundo existem realidades muito diferentes sobre o modo como a Imunoalergologia está posicionada. Em alguns países, ela é atri­buída a quem obtém o título de outra especialidade, como na Alemanha; noutros, não existe, como ocorre na França, na qual compete a quem faz uma pós-graduação teórica. Já no Brasil, tal como em vários países europeus de que Portugal é exemplo, a especialidade apenas é reconhecida em profissionais idôneos que obtêm o título após uma sólida formação teórica e prática, confirmada por provas públicas. Como um terço da população sofre de doenças alérgicas, que frequentemente são graves e afetam muito a qualidade de vida, é necessário ter médicos de excelência que cuidem desses problemas e apostem na prevenção. Com um grande orgulho, verificamos que a realidade da Imunoalergologia nos nossos países irmãos se assemelha muito, com bons programas de formação e de avaliação continuada. Em Portugal, o treino do especialista leva cinco anos, contudo ainda nos falta um programa de recertificação, pois não basta obter o título, mas garantir que continue a existir uma atualização permanente do profissional. Esse, porém, é um problema global, que, penso, também estará presente no Brasil.


Em 2010, o senhor referiu, em uma entrevista, que faltava especialista em Portugal. Após quatro anos, tal informação ainda procede?

 

Tem aumentado razoavelmente o número de especialistas, no entanto, agora, a grande dificuldade é sua colocação nos serviços de saúde públicos, nomeadamente hospitalares, que, no nosso país, respondem pela maioria da prestação de cuidados médicos à população. Aspectos relacionados com a crise que nos atinge justificam de algum modo essa situação, porém existem muitos outros profissionais, não habilitados, que pretensamente cuidam dos alérgicos, perdendo a visão global dessas doenças, consumindo mais recursos e atrapalhando o controle dos doentes, em sua maioria com afecções crônicas. Temos trabalhado permanentemente no sentido de informar a população e as autoridades de que, quando se procura uma consulta de alergia, há o risco de “levar gato por lebre”. O Ministério da Saúde de Portugal até já emitiu uma circular, às unidades de saúde, para avisá-las de que não podem oferecer serviços de alergia em que não existam imunoalergologistas como responsáveis. Mas os alérgicos continuam a ser enganados. A mudança é muito lenta, lutando-se frequentemente contra interesses instalados e a falta de informação. Ao mesmo tempo, existe grande dificuldade para que os jovens especialistas exerçam a especialidade a que dedicaram tantos anos. É lamentável.


No Brasil, além disso, temos o problema da falta de informação suficiente nos rótulos dos alimentos. O mesmo ocorre em Portugal?

 

Felizmente, ultrapassamos essa situação uma década atrás, altura em que foi publicada uma lei que obriga que todos os alérgenos major constem do rótulo, independentemente da quantidade em que entram na composição do alimento. Aumentou muito a segurança de quem sofre de alergia alimentar, principalmente com anafilaxia. Os rótulos das embalagens trazem informações detalhadas, tendo também atenção para com termos que podem levar a erro. Por exemplo, antes da lei, era frequente que fizessem referência à “caseína”, e não ao “leite”. Mesmo porque, se pensarmos no leite de vaca, ele pode estar presente na composição de produtos tão díspares como chiclete, salsichas, presunto e sucos, entre muitos outros. Temos certeza de que a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai), sociedade científica dinâmica e interventiva, terá um papel muito importante no sentido de influenciar as autoridades para que uma legislação semelhante seja rapidamente aplicada no Brasil.


Falando um pouco de prática, no Brasil, os não especialistas solicitam a IgE específica com muita frequência e, por conta do resultado, no caso dos alimentos, acabam orientando uma dieta de exclusão sem comprovação clínica. Qual é, no seu entender, o prejuízo disso?

 

Esse é um problema tremendo também em Portugal, que está associado a elevados custos socioeconômicos e ao fato, já comentado, de que muitos alérgicos não estão recebendo serviços prestados por especialistas, o que igualmente leva a erros diagnósticos. Como em qualquer quadro dessa natureza, a história clínica é o elemento essencial para diagnosticar de forma correta a alergia alimentar. Os exames podem estar muito alterados e não existir nenhuma manifestação clínica (falso-positivos), assim como podem estar normais e haver um quadro grave de anafilaxia (falso-negativos). Daí a importância de o alergista avaliar clinicamente os casos suspeitos e só depois recorrer a exames complementares, que podem ir dos testes cutâneos, passando por análises sanguíneas e endoscopias, até as provas de provocação alimentar.


Apesar de nossos progressos no esclarecimento da anafilaxia ao público, não temos acesso à caneta de adrenalina no Brasil. Como o senhor vê essa situação?

 

Quem sofre dessas alergias precisa ser prontamente acompanhado por alergistas, algo, de fato, indiscutível. Mas, da mesma maneira, no programa de abordagem da doença, o acesso à caneta de adrenalina deve ser facilmente garantido. Em Portugal, é possível adquirir o dispositivo nas farmácias, em duas dosagens, e há uma coparticipação governamental de 50%. Por vezes, ocorrem problemas de estoque, mas tudo fazemos para que o medicamento esteja sempre ao alcance desses pacientes. Sei que, no Brasil, a Asbai tem despendido esforços para que a caneta de adrenalina esteja disponível no mercado farmacêutico. Mas considero que alcançar esse objetivo deva ser uma prioridade entre as prioridades. A colaboração entre os nossos países, sobretudo entre alergistas e suas sociedades científicas, pode ter influências mútuas em benefício das pessoas com doenças alérgicas – que, frequentemente, sofrem mesmo muito.


Entrevista concedida à Dra. Barbara Gonçalves da Silva, consultora médica do Fleury.