Cara a cara com o Ebola | Revista Médica Ed. 1 - 2015

O infectologista Jessé Reis Alves, do Fleury, relata sua experiência como voluntário na Libéria, no fim do ano passado

 

Infectologista do Fleury conta sua experiência de um mês na Libéria em plena epidemia 

Desde que a epidemia de Ebola começou no continente africano, o infectologista Jessé Reis Alves, assessor médico do Check-up Fleury de Medicina do Viajante, envolveu-se muito com o tema, por conta de sua área de atuação. Não demorou muito para que decidisse atravessar o oceano para tentar ajudar in loco, o que conseguiu empreender por intermédio da OMS. Foi assim que passou um mês na Libéria, de 29 de outubro a 27 de novembro de 2014, tendo ficado três semanas na capital, Monróvia, e a última no Condado de Bong, onde havia casos recentes da doença.

 

Na entrevista a seguir, Alves relata um pouco de sua experiência, que recomenda a todos os profissionais de saúde: “Não é fácil deixar trabalho e família, mas, dessa forma, conseguimos realizar ações com começo, meio e fim, além de enxergar a necessidade de ir além, como, no caso do Ebola, reintegrar os sobreviventes à sociedade e reestruturar o sistema de saúde”.


Por que você foi para o Oeste Africano pela OMS?

Inicialmente, consultei o governo brasileiro para saber se tínhamos, no País, alguma iniciativa para enviar profissionais à África e, como não havia, procurei a OMS. Passaram-se mais de dois meses entre o contato inicial e a viagem. Quando soube que iria para a Libéria, porém, foi tudo muito rápido: informaram-me em uma quarta-feira que eu viajaria na sexta seguinte. 


Como a OMS atua na região? 

Juntamente com as demais organizações das Nações Unidas, ONGs, CDC e outras entidades, a OMS mantém estreita colaboração com o Ministério da Saúde da Libéria para interromper a cadeia de transmissão do Ebola. As frentes de trabalho vão desde a detecção precoce de casos e o seguimento de contactantes até o treinamento, a formação de pessoal de saúde e a capacitação específica para cuidar desses pacientes. Existem ainda times dedicados às questões psicossociais, práticas seguras de funerais, logística e comunicação social.


Quais eram as suas atividades? 

Fui designado para a área de controle e prevenção de infecções, um grupo com vários níveis de atuação, desde o treinamento de pessoas, para aprimorar práticas de controle de infecção, até a definição dos equipamentos a utilizar. A princípio, queria lidar diretamente com pacientes, porém a OMS não faz esse papel e cheguei a pensar em procurar alguma ONG. A via da OMS, no entanto, me permitiu entender o processo de maneira muito ampla. Participava de reuniões e discussões e tive um aprendizado muito grande de resposta a emergências em saúde. Em uma próxima oportunidade, posso atuar por meio de organizações como a Médicos Sem Fronteiras, que realiza um trabalho exemplar.



No Condado de Bong, interior da Libéria, Jessé Reis Alves atua no treinamento das equipes de saúde.


Houve resistência das pessoas de lá em algum momento?

Observei que os profissionais de saúde estavam cansados de receber esse tipo de visita e de não obter retorno imediato para os problemas. Tínhamos de ser bastante cuidadosos e pacientes para mostrar que nosso papel era encaminhar as demandas à OMS, que iria repassá-las ao Ministério da Saúde local. No fim, fui bem-sucedido. As pessoas ficavam satisfeitas em relação ao que falávamos porque as orientações ajudavam a aumentar o nível de segurança. Também conseguimos endereçar as necessidades para que mais equipamentos de segurança fossem enviados. 


Na sua opinião, como os sistemas de saúde locais se estruturaram diante da epidemia?

Antes dela, o sistema de saúde da Libéria já era frágil, com uma grave escassez de recursos humanos e materiais. Após a confirmação dos primeiros diagnósticos, a maior parte dos hospitais e centros de saúde foi fechada porque não conseguia lidar com casos suspeitos de forma segura. Mais de 350 profissionais de saúde se infectaram na primeira fase da epidemia e o país acabou perdendo muita gente que poderia ter ajudado na luta contra a doença.


Qual a situação atual dos países afetados? 

A situação geral tem melhorado bastante e, sobretudo na Libéria, que inicialmente contava com o maior número de casos, as medidas de controle vêm surtindo efeitos positivos. Até 8 de fevereiro, havia apenas cinco pacientes internados com exames confirmatórios nos centros de tratamento do país. As escolas começam a funcionar e os serviços gerais de saúde já passam a ter sua rotina quase normalizada.


Houve avanços em relação à diminuição da letalidade da doença?

À medida que se oferecem cuidados mais intensivos no suporte aos doentes, a mortalidade se reduz. Não tive contato com nenhum estudo de drogas ou vacinas, mas certamente um imunizante seguro e eficaz será a grande estratégia na prevenção de novas epidemias.


Diante do aprendizado que teve, fale um pouco sobre a transmissão da doença e a possibilidade de disseminação para outros países. Isso ainda preocupa? 

O vírus realmente depende do contato direto com secreções para ser transmitido. Em condições habitacionais desfavoráveis, esse contato pode se dar de forma bastante frequente. Certamente o cuidado de familiares doentes e algumas práticas de ritos funerários responderam pela maior parte da transmissão nos países acometidos. O risco de disseminação para países vizinhos tem sido aventado e é possível, em teoria. Por esse motivo se vigiam as fronteiras e existe um forte esquema de controle nos aeroportos para impedir que indivíduos sintomáticos viajem. No momento, a chance de haver viajantes infectados caiu muito, porém ainda não podemos dizer que esteja zerada. As medidas de atenção devem ser mantidas.


Há um conjunto de ações definido para controlar o surto? Hoje, quais as principais estratégias para reduzir a transmissão? 

Um dos braços principais da estratégia baseia-se na detecção precoce de casos e no isolamento de pessoas com sintomas. Para isso, a estrutura de resposta conta com equipes de agentes que visitam domicílios em todo o país. Uma vez detectados, os pacientes com suspeita são encaminhados para as unidades de tratamento, que, em sua maioria, consistem em hospitais de campanha construídos com ajuda internacional. Por sua vez, os agentes de mobilização social trabalham nas comunidades para educar a população, estimular o relato precoce de sintomas, orientar as pessoas sobre práticas seguras de funerais e reintegrar os sobreviventes à sociedade.


O que mais impressionou você nessas quatro semanas?

No Condado de Bong, vi um homem chorando, aproximei-me para saber o que acontecia e explicaram-me que ele havia tido alta e fora ao cemitério para visitar o túmulo dos quatro filhos e da esposa. Ele tinha saído de lá sozinho, sem ninguém para levá-lo para casa nem para recebê-lo. E o vilarejo em que morava não o queria de volta porque o culpava pelo surto – um de seus filhos fora um dos primeiros infectados. Então, incendiaram sua casa e o hostilizaram. Por outro lado, todos estavam em quarentena, no vilarejo, fechados em casa. Não podiam fazer colheita na roça e, assim, dependiam de ajuda externa até para comer. Essa história reforçou, para mim, a necessidade de uma atuação forte na reintegração dos sobreviventes. Felizmente, várias entidades têm tratado do tema e até já existe uma associação local que tenta reduzir o preconceito, dar apoio psicológico e garantir acesso ao trabalho àqueles que passaram por essa experiência tão traumática.


Entrevista concecida à Dra. Fernanda Aimée Nobre, consultora médica do Fleury.