Coma e estado de mal em RN com três dias de vida. O que fazer? | Revista Médica Ed. 9 - 2005

A investigação clínica deve ser abrangente e cuidadosa.

A investigação clínica deve ser abrangente e cuidadosa.

O caso

Uma criança nascida a termo, em boas condições, foi internada no terceiro dia de vida em hospital universitário do interior de São Paulo, em decorrência de torpor, seguido por crises convulsivas fragmentadas e freqüentes. A investigação inicial, que incluiu avaliação metabólica básica e hematológica e exame de líquido cefalorraquidiano (LCR), não revelou anormalidades. O eletrencefalograma (EEG), realizado aos dez dias de vida, mostrou um padrão muito anormal, conhecido como surto-supressão. Por sua vez, a dosagem de aminoácidos no plasma não apontou problemas significativos, exceto por um discreto aumento da glicina. O RN, entretanto, mantinha-se torporoso e tinha de ser alimentado por sonda nasogástrica. Após contato com o Fleury, foi recomendada uma nova dosagem de aminoácidos, só que dessa vez no plasma e no LCR. Feitos aos 30 dias de vida da criança, os exames mostraram que a glicina continuava discretamente elevada no plasma, ou seja, 20% acima dos valores de referência, e se achava dez vezes acima do normal no LCR. A relação glicina LCR/plasma era de 0,18 (para um valor normal de até 0,09), resultado que condiz com o diagnóstico de erro inato do metabolismo da glicina, conhecido como hiperglicinemia não cetótica.

A discussão

A hiperglicinemia não cetótica é um erro inato que envolve o metabolismo da glicina e se manifesta por encefalopatia e crises epilépticas multiformes e de difícil controle medicamentoso. O diagnóstico pode ser suspeitado pela clínica, mas a confirmação bioquímica depende da relação LCR/plasma da glicina, uma vez que é possível encontrar o aumento isolado desse aminoácido no plasma em inúmeras situações clínicas. Os erros inatos do metabolismo são condições geneticamente determinadas, em geral raras, que exigem, para sua identificação, o conhecimento dos sintomas correspondentes a cada alteração e a utilização de recursos laboratoriais adequados. Como são mais de 400 os erros inatos conhecidos, o diagnóstico requer uma grande gama de exames, que, no entanto, devem ser utilizados de forma criteriosa.

Fernando Kok, assessor médico da Bioquímica Clínica,
especialista em Erros Inatos do Metabolismo e Neurogenética.
E-mail: [email protected]