Contra as doenças cardiovasculares, conhecimento e responsabilidade social | Revista Médica Ed. 1 - 2013

Estudioso do conceito da inflamação no desenvolvimento e na complicação da placa aterosclerótica, o cardiologista norte-americano Peter Libby revela suas descobertas e defende uma maior participação dos médicos na prevenção da mortalidade cardiovascular.

Estudioso do conceito da inflamação no desenvolvimento e na complicação da placa aterosclerótica, o cardiologista norte-americano Peter Libby revela suas descobertas e defende uma maior participação dos médicos na prevenção da mortalidade cardiovascular

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Peter Libby é chefe do Serviço de Medicina Cardiovascular do Brigham and Women’s Hospital e professor da Harvard Medical School

Logo que começou a se debruçar sobre o assunto, há 25 anos, Peter Libby já observou que moléculas de adesão às células endoteliais liberam citocinas pró-inflamatórias, atraindo glóbulos brancos para sua superfície. “Achávamos que o início da placa se devia à resposta aos fatores de risco já conhecidos, como aumento do LDL e hipertensão arterial, e que haveria um mecanismo de transdução do sinal do fator de risco, levando à inflamação”, conta o cardiologista, que é chefe do Serviço de Medicina Cardiovascular do Brigham and Women’s Hospital, em Boston, Massachusetts, e professor titular da Harvard Medical School.

Em sua recente visita ao Brasil, aonde veio para participar de um curso de atualização em aterosclerose promovido pelo Fleury, Libby falou à nossa reportagem sobre os estudos que vem desenvolvendo nesse campo e as perspectivas para a abordagem diagnóstica e terapêutica da doença aterosclerótica, além de ter aproveitado para defender avidamente o papel da comunidade médica na prevenção da mortalidade cardiovascular. “Nós, médicos, temos responsabilidade social, devendo diminuir a obesidade nos jovens, lutar contra as bebidas com açúcar nas escolas e contra o tabagismo, aumentar a atividade física e reduzir a poluição.”

Leia a entrevista a seguir.

Que descobertas dentro desse campo mais vêm contribuindo para o desenvolvimento de novas tecnologias voltadas ao diagnóstico e ao tratamento da doença aterosclerótica?

Essa doença possui um grande período de evolução subclínica, podendo durar 20-40 anos, o que nos faz questionar o motivo de ela se transformar subitamente de uma afecção silenciosa, em um evento agudo, como o infarto agudo do miocárdio (IAM) ou o acidente vascular cerebral (AVC). O fato é que estamos, no cotidiano, familiarizados com esse mal e perdemos de vista o motivo que causa a manifestação dramática na camada íntima da artéria. Sabemos que a aterosclerose começa nos adolescentes, visto que os fatores de risco estão aumentando em todos os países. Mas a aterogênese apresenta três fases, ou seja, início, progressão e complicação. Nossos estudos indicam que, em algum momento da progressão, ocorre uma degradação do colágeno que forma a capa fibrosa da placa ateromatosa, enfraquecendo-a e deixando-a passível à ação dos fatores de coagulação. Essa degradação é provocada pelo fator tissular, produzido nos macrófagos, que tem seus níveis aumentados na camada íntima das artérias pela ação dos mediadores inflamatórios.

O senhor participa de um estudo baseado no uso do metotrexato (MTX) em baixa dose para reduzir eventos cardiovasculares em indivíduos com doença coronariana estabelecida. Se os resultados forem positivos, representarão a quebra de um paradigma no tratamento da doença cardiovascular. Quais são suas expectativas em relação a essa pesquisa?

Mesmo nos pacientes que usam estatinas em altas doses, eventos recorrentes nos infartados podem ser observados em 20% dos casos, no prazo de dois anos. Segundo estudos observacionais, o MTX em doses utilizadas para o tratamento da artrite reumatoide é capaz de diminuir a taxa de eventos cardiovasculares que ocorrem mesmo nos indivíduos que estão sendo tratados para a doença aterosclerótica. Um novo estudo prospectivo, que está sendo realizado pelo professor Paul Ridker, vai tratar os sobreviventes do infarto com essa medicação, com o intuito de reduzir a inflamação diretamente.

Que outras perspectivas se mostram para o tratamento da aterosclerose?

Trabalhamos atualmente num outro estudo, o Cantos (sigla do inglês Canakinumab Anti-inflammatory Thrombosis Outcomes Study), com o apoio dos colegas brasileiros, o qual usa um anticorpo monoclonal para neutralizar a interleucina-1-beta, que é importante na sinalização inflamatória da placa aterosclerótica. Estamos estudando 17.200 sobreviventes de IAM, tratados com toda a medicação indicada, com PCR de alta sensibilidade acima de 2 mg/dL, e lhes damos três doses desse anticorpo, enquanto um grupo controle recebe placebo. Esperamos ter uma resposta entre quatro e cinco anos. Esses estudos clínicos vêm avaliando novas terapias para diminuir a taxa de eventos residuais. Não é para substitir a terapêutica atual, mas, sim, para agregar.

Qual é sua opinião sobre a disseminação do uso das estatinas? Acha que deveriam se tornar over the conter (OTC), dado o benefício dessas drogas na redução do risco cardiovascular?

Não acho que as estatinas devam ser colocadas na água de cada cidade porque os estudos mostram que, na prevenção primária, envolvendo pacientes sem doença cardíaca, com LDL abaixo de 130 mg/dL e sem sinais de inflamação (PCR de alta sensibilidade abaixo de 0,5 mg/dL), o tratamento com estatinas não adianta, não previne. O screening precisa ser feito por meio de um escore de risco que leve em conta a história familiar e a presença de marcadores da inflamação para indicação do uso ou não dessas medicações. Ademais, no estudo Jupiter (sigla de Justification for the Use of Statins in Primary Prevention: an International Trial Evaluating Rosuvastatin), observamos um discreto aumento da glicemia em pessoas tratadas com essa classe de medicamentos, o que foi confirmado em outras pesquisas. Tais resultados sugeriram que estatinas poderiam provocar diabetes mellitus (DM), o que levou muitos médicos a temer a prescrição desse tratamento. Contudo, constatamos, no mesmo estudo, que a glicemia se elevou apenas nos indivíduos que já tinham predisposição à doença. Os participantes sem fatores de risco para diabetes não o desenvolveram. Nessa análise, nosso achado mais importante foi que a queda nos eventos cardíacos foi igual em diabéticos e não diabéticos. Minha interpretação desses resultados é a de que nós não devemos contraindicar o tratamento com as estatinas por medo do diabetes. Pelo contrário: acho que os diabéticos merecem uma consideração especial para a terapêutica com estatinas pelo seu maior risco de desenvolver doença cardiovascular.

A despeito de todos esses estudos e avanços que já conhecemos, a doença aterosclerótica continua sendo a que mais mata no mundo. O que falta para reduzirmos mais drasticamente a mortalidade cardiovascular no mundo?

Primordialmente, precisamos mudar o estilo de vida e trabalhar com o público e com o governo para reduzir os fatores de risco. O modelo clássico da relação entre médico e paciente não é suficiente.

Nós, médicos, temos responsabilidade social, devendo diminuir a obesidade nos jovens, lutar contra as bebidas com açúcar nas escolas e contra o tabagismo, aumentar a atividade física e reduzir a poluição. A prevenção é necessária. Uma vez que o paciente seja diagnosticado com aterosclerose, já será tarde. No Brasil, bem como nos Estados Unidos, muitos indivíduos não recebem tratamento para a dislipidemia e para a hipertensão arterial sistêmica. Portanto, o papel do médico é vital no sentido de assegurar que cada pessoa seja tratada de acordo com as diretrizes atuais.

Entrevista concedida à
Dra. Barbara Gonçalves da Silva,
consultora médica do Fleury