Deficiência intelectual e autismo | Revista Médica Ed. 3 - 2018

Como o laboratório pode ajudar a investigar esses transtornos na infância.

Como o laboratório pode ajudar a investigar esses transtornos na infância

Os transtornos do neurodesenvolvimento, que abrangem o atraso global do desenvolvimento (AGD), a deficiência intelectual (DI) e os transtornos do espectro autista (TEA), apresentam alta prevalência mundial e relevante impacto social. Enquanto o AGD/DI afeta de 1% a 3% da população geral, os TEA acometem cerca de 1:50 crianças em idade escolar.

Cristais de arginina exibidos por
microscopia de luz polarizada.

Caracterizado por um atraso em dois ou mais domínios do desenvolvimento neurológico, incluindo habilidades motoras grossas ou finas, fala e linguagem, capacidade cognitiva, interação social e atividades de vida diária, o AGD é um termo reservado para crianças menores de 5 anos e prediz um possível futuro diagnóstico de DI.

Por sua vez, a DI aplica-se a crianças mais velhas, que apresentam um déficit de função intelectual, com quociente de inteligência (QI) abaixo de 70, associado a uma limitação significativa nas habilidades adaptativas, tendo início antes dos 18 anos.

Finalmente, os TEA compreendem um grupo de condições do neurodesenvolvimento que compartilham comprometimento da função social e da comunicação, assim como a presença de padrões repetitivos de comportamento e interesses restritos.

Um aspecto relevante é que, apesar de heterogêneos, esses quadros se sobrepõem em uma porção considerável dos pacientes. Observa-se que 70% dos indivíduos com TEA têm algum grau de DI e, por conseguinte, pelo menos 10% dos pacientes com DI também são portadores de TEA, com algumas condições apresentando alta taxa de comorbidade. Ademais, essas condições podem se manifestar de forma isolada ou acompanhadas por malformações, crises epilépticas, alterações comportamentais e outros sintomas neurológicos.

O diagnóstico etiológico desses quadros frequentemente configura um desafio. A abordagem pediátrica deve incluir uma história clínica completa, com informações do pré-natal e do nascimento e história familiar, se possível, de três ou mais gerações anteriores, além de exame físico e neurológico minuciosos, com atenção para o registro de mínimas alterações. As informações obtidas nessa primeira avaliação direcionam os testes laboratoriais e de imagem pertinentes à investigação do quadro.

Causas de deficiência intelectual

  • Infecções: congênitas ou na infância precoce
  • SPL/DC LATINSTOCK
  • Metabólicas: hiperbilirrubinemia, erros inatos do metabolismo
  • Nutricional: desnutrição grave
  • Drogas: síndrome alcoólica fetal, entre outras
  • Complicações ao nascimento: trauma, anóxia
  • Genéticas
  • Sem etiologia definida

A explicação nos erros metabólicos

A porcentagem de pacientes com AGD/DI que têm uma alteração metabólica identificável como causa é da ordem de 1% a 5%.

Embora a prevalência das doenças metabólicas hereditárias seja relativamente baixa, o potencial para a melhora do prognóstico das crianças com um desses quadros, após o diagnóstico e instituição do tratamento, é relevante, o que justifica a investigação laboratorial.

Dessa forma, a literatura recomenda pesquisar causas metabólicas tratáveis em todos os pacientes com AGD/DI de etiologia desconhecida. Para tanto, usam-se testes de triagem para erros inatos do metabolismo. O exame disponível no Fleury para essa finalidade inclui a pesquisa de cetonas, proteínas, aminoácidos e hidratos de carbono na urina, assim como a quantificação de aminoácidos no plasma.

Aminoácidos avaliados no teste de triagem para erros inatos do metabolismo (urina e plasma)

  • Ácido aspártico
  • Ácido glutâmico
  • Alanina
  • Arginina
  • Asparagina
  • Citrulina
  • Fenilalanina
  • Glicina
  • Glutamina
  • Hidroxiprolina
  • Histidina
  • Isoleucina
  • Leucina
  • Lisina
  • Metionina
  • Ornitina
  • Prolina
  • Serina
  • Taurina
  • Tirosina
  • Treonina
  • Triptofano
  • Valina

O emaranhado da genética

Considera-se que fatores genéticos estejam envolvidos em grande parte dos casos de AGD/DI e de TEA sem etiologia definida. Apesar de variadas, as causas genéticas dessas condições assemelham-se e englobam desde aneuploidias e mutações gênicas, geralmente de novo em um único gene, até variações no número de cópias gênicas, como deleções e duplicações, e alterações com perda de função em múltiplos genes, entre outras.

Por que fazer a avaliação genética em uma criança com DI ou TEA

  1. Esclarecer a etiologia
  2. Determinar o prognóstico e o curso clínico
  3. Discutir o mecanismo genético envolvido e o risco de recorrência na família, promovendo aconselhamento genético
  4. Auxiliar a definir o tratamento
  5. Evitar investigação e testes diagnósticos desnecessários
  6. Ajudar a obter informações relacionadas a rastreamento, manejo e tratamento de possíveis complicações associadas
  7. Fornecer suporte familiar direcionado para o quadro específico
  8. Permitir melhor acesso a protocolos de pesquisa associados
  9. Estimar o risco de recorrência para a futura prole do casal e para o restante da família

Adaptado de: Pediatrics. 2014; 134: e903-e918.

Em muitos casos, referidos como quadros sindrômicos clinicamente reconhecíveis, a combinação das características fenotípicas apresentadas deriva de uma alteração genética específica, permitindo um diagnóstico clínico. Contudo, a despeito de sinais e sintomas evidentes, não há como determinar a etiologia em diversos pacientes. Nessas situações, os recursos laboratoriais se fazem relevantes.

Os rearranjos cromossômicos, que podem resultar em deleções ou duplicações de parte de um cromossomo, usualmente abrangendo vários genes, estão entre as principais causas genéticas de AGD/DI e TEA. As consequências clínicas de tais alterações são, em geral, determinadas pela localização e pelo tipo de rearranjo, bem como pelo seu tamanho e pela função dos genes envolvidos.

Com frequência, essas anomalias cromossômicas têm uma extensão muito pequena (<5-10 megabases) para serem detectadas pelos métodos citogenéticos convencionais, como o cariótipo. Nesse contexto, testes como o multiplex ligation-dependent probe amplification (MLPA) e a hibridação genômica comparativa por SNP/CGH-array ganham destaque e configuram os métodos de escolha para a investigação (veja texto nas páginas 22 e 23).

Para ampliar a investigação

Especialmente quando um fenótipo não apresenta o padrão de uma síndrome clínica bem definida ou em quadros com sintomas que se sobrepõem entre variadas condições, é possível optar pelo sequenciamento completo do exoma para investigação dos quadros neurológicos de origem presumidamente genética.

O exoma é o conjunto de todos os éxons do genoma humano, ou seja, a parte do genoma que contém as regiões codificantes de todos os nossos 20.000 genes. Nessa porção, portanto, encontra-se a grande maioria das alterações responsáveis pelas doenças genéticas. Dessa maneira, como o sequenciamento do exoma permite a análise detalhada das regiões codificantes do genoma humano, o teste pode avaliar a grande maioria das doenças de origem genética, de forma simultânea e a partir de uma única amostra.

No contexto de AGD/DI, o teste também possibilita a confirmação diagnóstica nos casos em que outros exames se mostraram negativos.

A origem em mutações pontuais

As pesquisas em relação ao autismo e à DI estão progredindo cada vez mais na identificação de genes de risco para tais quadros, especialmente nos casos esporádicos em que a ocorrência de mutações de novo pode ser a causa do distúrbio.

Os genes GABRB3, RELN, SLC6A4, GRIN2B, AVPR1A, MET e CNTCAP2, por exemplo, apresentam variantes que têm sido relacionadas aos TEA de forma mais consistente, enquanto os genes NLGN4, SHANK3, NRXN1 e CNTNAP2 codificam proteínas sinápticas que podem também se associar às duas condições.

Além disso, algumas doenças sabidamente de herança mendeliana conferem manifestações do espectro autista ou de comprometimento cognitivo e, de acordo com o quadro clínico, podem ser rastreadas nesses pacientes.

É nesse contexto que ganha destaque o painel genético para pesquisa dos TEA e condições associadas, o qual, por meio da análise de 106 genes por sequenciamento de nova geração, tem utilidade tanto para auxiliar o diagnóstico etiológico do quadro quanto para o estabelecimento de uma relação genótipo-fenótipo, assim como para o diagnóstico diferencial e o aconselhamento genético da família.

 

Espectro do painel genético para autismo

Genes pesquisados:

ANK3, ANKRD11, AP1S2, ARX, ATRX, AUTS2, AVPR1A, BDNF, BRAF, CACNA1C, CASK, CDKL5, CHD7, CHD8, CNTNAP2, CNTNAP5, CREBBP, DHCR7, DLGAP2, DMD, DOCK4, DPP10, DPP6, EHMT1, FGD1, FMR1, FOLR1, FOXG1, FOXP1, FOXP2, GABRB3, GABRG1, GNA14, GRIN2B, GRPR, HOXA1, HPRT1, HUWE1, IL1RAPL1, IMMP2L, KATNAL2, KCTD13, KDM5C, KIRREL3, L1CAM, LAMC3, MBD5, MECP2, MED12, MEF2C, MET, MID1, NEGR1, NHS, NIPBL, NLGN3, NLGN4X, NRXN1, NSD1, NTNG1, OCRL, OPHN1, PAFAH1B1, PCDH19, PCDH9, PDE10A, PHF6, PIP5K1B, PNKP, PON3, PQBP1, PTCHD1, PTEN, PTPN11, RAB39B, RAI1, RBFOX1, RELN, RPL10, RPS6KA3, SATB2, SCN1A, SCN2A, SHANK2, SHANK3, SLC16A2, SLC6A4, SLC9A6, SLC9A9, SMC1A, SMG6, SNRPN, SOX5, SPAST, ST7, STK3, SYNGAP1, TCF4, TSC1, TSC2, UBE3A, VPS13B, ZEB2, ZNF50, ZNF804A, ZNHIT6

O xis da questão

Algumas vezes, a deficiência intelectual decorre de condições patológicas ligadas ao cromossomo X, como ocorre na síndrome do X frágil e na síndrome de Rett.

Causa frequente de deficiência intelectual hereditária e distúrbios do comportamento, a síndrome do X frágil acomete cerca de 2% a 3% das crianças do sexo masculino com AGD/DI de causa desconhecida. Apesar de afetar homens e mulheres, costuma ser menos grave no sexo feminino.

A doença deriva de uma mutação completa no gene FMR1 (sigla de fragile X mental retardation-1), localizado no cromossomo X, que se caracteriza por uma expansão de repetições de três nucleotídeos – citosina-guanina-guanina, ou CGG. Enquanto a população geral tem um número de repetições que varia de 5 a 44, as pessoas acometidas pela síndrome apresentam mais de 200 trinucleotídeos CGG, o que leva ao silenciamento do FMR1. Dessa forma, o gene deixa de produzir a proteína FMRP, necessária para as funções cerebrais cognitivas e comportamentais.

Existem ainda indivíduos que possuem entre 55 e 200 trinucleotídeos, considerados portadores da pré-mutação. Em tais casos, como ainda há produção da proteína, não ocorre deficiência intelectual, mas, nesse grupo, cerca de 30-40% dos homens e 5-10% das mulheres acima de 50 anos podem evoluir para a síndrome de tremor-ataxia, que se manifesta por tremor do tipo parkinsonismo, marcha atáxica e declínio cognitivo. Além disso, 25% das portadoras desenvolvem falência ovariana precoce.

O diagnóstico da mutação e da pré-mutação no FMR1 é feito pela análise desse gene por meio de uma plataforma baseada em PCR e eletroforese capilar automatizada, teste indicado para todos os pacientes com AGD/DI de etiologia desconhecida. O cariótipo com meio deficiente em ácido fólico para detecção do sítio frágil do X caiu em desuso pela baixa sensibilidade e pela incapacidade de detectar a pré-mutação.

Já a síndrome de Rett decorre de mutações no gene MECP2, também localizado no cromossomo X. A condição acomete precocemente o desenvolvimento neuropsicomotor e, ao contrário da síndrome do X frágil, é mais comum em meninas. Estima-se que, na DI, a porcentagem de pacientes com mutação nesse gene chegue a 4,4%, com média de 1,5% entre meninas com doença moderada a grave.

Caracterizado por regressão das aquisições motoras e de comunicação por volta dos 18 meses de vida, o quadro pode cursar ainda com outros sinais e sintomas, como movimentos estereotipados, crises epilépticas, comprometimento do sono e microcefalia, entre outros.

O diagnóstico requer a análise do gene MECP2, que, no Fleury, é realizada por sequenciamento de nova geração (NGS).

Como funciona cada técnica

O MLPA

Técnica genético-molecular semiquantitativa, o MLPA possui, como base, a PCR multiplex e utiliza mais de 40 sondas de forma simultânea, cada qual específica para uma sequência de DNA, que inclui éxons de genes de interesse, com o objetivo de avaliar o número relativo de cópias de cada sequência-alvo.

Hoje estão disponíveis comercialmente mais de 300 conjuntos de sondas específicas para uma grande variedade de alterações genômicas comuns ou raras, que podem ser selecionadas de acordo com a necessidade clínica. Desse modo, é possível usar o teste como método inicial de pesquisa diagnóstica em pacientes com AGD/DI e outras alterações do desenvolvimento neurológico.

O MLPA apresenta altas sensibilidade e especificidade, além de ser reprodutível e de baixo custo quando comparado a outras tecnologias com finalidades semelhantes (veja quadro).

O SNP/CGH-array

Plataforma de triagem genômica de alta resolução, caracterizada por arranjo com sondas para identificação de variação do número de cópias (CNV) e polimorfismos de nucleotídeo único (SNP), o SNP/CGH-array analisa múltiplos loci do genoma simultaneamente, sem limitação. Dessa forma, detecta variações no número de cópias gênicas, isodissomia uniparental e perda de heterozigosidade, presentes em síndromes de microdeleção, microduplicação, falhas de imprinting ou rearranjos cromossômicos complexos, constituindo-se em mais uma ferramenta diagnóstica na suspeita de síndromes neurológicas genéticas que cursam com AGD/DI ou TEA.

Para a realização do teste, o Fleury investiu em uma parceria com a Agilent Technologies®, dispondo, assim, de uma plataforma de triagem genômica SNP/CGH de 400 K, associada a uma cobertura éxon-específica para 4.800 genes. Ademais, o exame tem seus resultados analisados por softwares específicos para essa aplicação.

No Fleury, os achados obtidos por esses testes são interpretados pela equipe de Genética Clínica com base no contexto clínico do paciente, o que possibilita uma conclusão mais precisa sobre o quadro e o correto aconselhamento genético da família.

Com que método?

SNP/CGH-array versus MLPA na detecção de síndromes de microdeleção ou microduplicação:

 

Quando pedir exames de imagem

Atualmente, a literatura não é consensual sobre o papel da neuroimagem na avaliação de crianças com AGD/DI. Enquanto alguns trabalhos recomendam a realização de imagem cerebral em todos os pacientes, outros indicam seu uso apenas nos casos em que a anamnese ou o exame físico apontam outros sinais neurológicos associados.

O achado de uma alteração encefálica por um método de imagem configura mais um dado que pode auxiliar a identificação de uma causa específica para a condição neurológica investigada. Contudo, vale ponderar que, assim como no exame físico, as anomalias detectadas em uma tomografia computadorizada (TC) ou em uma ressonância magnética (RM), embora úteis, geralmente não são suficientes, como dado isolado, para determinar a etiologia do quadro.

Quando feitos em pacientes selecionados, como em crianças com perímetro cefálico anormal ou sinais neurológicos focais, os métodos de neuroimagem apresentam maior taxa de detecção de anormalidades (41%, segundo a literatura) do que quando solicitados como triagem em pacientes sem evidências de alteração ao exame clínico (14%), além do atraso de desenvolvimento.

O fato é que, na prática, recomendam-se esses métodos apenas como parte da avaliação diagnóstica em pacientes com AGD/DI em casos em que há microcefalia, macrocefalia ou outras alterações neurológicas flagradas ao exame físico. Devido à maior sensibilidade da RM na detecção de anormalidades para esses quadros, o método é preferível à TC.

Assessoria Médica
Genética
Dr. Caio Robledo D'Angioli Costa Quaio
[email protected]
Dr. Carlos Eugênio Fernandez de Andrade
[email protected]
Dr. Wagner Antonio da Rosa Baratela
[email protected]
Neurologia
Dr. Aurélio Pimenta Dutra
[email protected]
Neuroimagem
Dr. Antonio Carlos M. Maia Jr.
[email protected]
Dr. Carlos Jorge da Silva
[email protected]