Foco no diagnóstico | Revista Médica Ed. 2 - 2015

Especialista sueca conta por que prefere atuar na bancada, desenvolvendo testes e ajudando a interpretar seus resultados.

Especialista sueca conta por que prefere atuar na bancada, desenvolvendo testes e ajudando a interpretar seus resultados.


Quarenta anos após a descoberta da imunoglobulina E, o diagnóstico de alergia ainda tem dado muito o que falar. Que o diga Kerstin Wall, que atua como conselheira sênior e especialista em Alergia Científica no laboratório Thermo Fisher Scientific, em Uppsala, na Suécia, desde 1990. “Nunca foi tão interessante diagnosticar um processo alérgico, haja vista as melhorias que temos feito nos exames tradicionais e no uso dos testes moleculares”, anima-se Kerstin, uma entusiasta do trabalho no laboratório.


A especialista em Alergia Científica esteve no Brasil em março para dar aula sobre o tema em um simpósio de alergia promovido pelo Fleury, quando conversou com nossa reportagem. A seguir, os principais pontos da entrevista.


O que há de novo sobre a IgE?

O diagnóstico da alergia está mais interessante do que nunca! Estamos continuamente trabalhando em melhorias técnicas dos exames existentes e desenvolvendo novos testes moleculares, disponíveis em duas diferentes plataformas, os componentes alergênicos e o ImmunoCAP® Isac. Além disso, temos dedicado mais tempo aos resultados, no sentido de ajudar os médicos a interpretá-los e a utilizá-los em combinação com a história clínica. Estamos desenvolvendo tecnologias para gerar sistemas de suporte específicos, adicionando comentários ao relatório do paciente.


Essa questão diz respeito à interpretação dos resultados do teste. Será que existe realmente um benefício com o uso dos níveis quantitativos de anticorpos IgE em lugar das classes?

Sim, definitivamente! Não há uma correlação entre a concentração de anticorpos IgE alérgeno-específicos e a probabilidade de sintomas. No entanto, havendo anticorpos IgE, mesmo em níveis muito baixos, isso sempre implica um risco de reações. Se não existirem anticorpos IgE que possam ser detectados por metodologia IgE alérgeno-específica, outros motivos precisam ser considerados. Tenho conversado com muitos especialistas sobre os benefícios de empregarmos os níveis quantitativos de IgE alérgeno-específicos, em vez das antigas classes (de I a VI). Na utilização dos níveis, os médicos podem estimar a probabilidade de o sintoma ter como causa a alergia, já que ela não é um fenômeno dicotômico. Entretanto, para o diagnóstico final, muitos fatores devem ser levados em conta, como a idade, a história familiar de atopia, os tipos de alérgenos sensibilizantes, os sintomas prévios e os desencadeantes. Enfim, o fato de algumas pessoas não apresentarem sintomas, mesmo com altos níveis de IgE, pode ser explicado pela sensibilização a componentes com baixa ou nenhuma relevância clínica, como as profilinas e/ou os cross-reactive carbohydrate determinants (CCD), ou determinantes de carboidrato, um marcador de sensibilização raramente associado a sintomas clínicos.


Kerstin Wall, especialista em Alergia Científica do laboratório Thermo Fisher Scientific, em Uppsala, na Suécia.
ARQUIVO PESSOAL


Como podemos aplicar o diagnóstico molecular na prática clínica?

A nova abordagem do diagnóstico molecular da alergia eleva o diagnóstico para um outro patamar, saindo da quantificação de anticorpos IgE alérgeno-específicos, como para látex, e indo para a determinação de um alérgeno único, contendo proteínas, moléculas puras – os chamados componentes alergênicos –, como o Hev b 6.02, um importante alérgeno. Esse aumento na precisão melhora a utilidade clínica dos testes, permitindo o estabelecimento dos riscos clínicos das reações alérgicas, explicando as reações cruzadas e melhorando o tratamento. Outro exemplo é a alergia ao amendoim, muitas vezes diagnosticada erroneamente, o que leva o paciente a evitar esse alimento desnecessariamente, além de lhe causar o estresse de viver buscando o amendoim escondido em diferentes produtos. Com o diagnóstico molecular, é possível discernir entre a sensibilização primária aos componentes do amendoim, que pode provocar sintomas mais graves, e aquela que se deve à sensibilização cruzada, associada a sintomas mais leves, geralmente localizados na boca. Em relação ao tratamento, a busca pela sensibilização aos componentes alérgenos específicos é essencial ao sucesso da imunoterapia, pois a utilização de componentes IgE de reação cruzada torna a terapêutica menos eficaz.


Por que a reação cruzada deve ser uma preocupação clínica?

A reação cruzada é um fenômeno no qual estruturas tridimensionais semelhantes são reconhecidas pelos mesmos anticorpos IgE, geralmente devido à homologia na sequência, e podem causar polissensibilização. Um exemplo comum são os pacientes sensíveis aos polens de bétula, que também reagem a nozes, frutas e vegetais, como maçã e cenoura. Isso ocorre porque a IgE aos componentes principais da bétula, como a Bet-v 1, uma proteína PR-10, também reconhece proteínas nesses alimentos similares estruturalmente. Essa reação pode ocorrer em espécies muito próximas, como diferentes gramíneas, mas igualmente entre espécies mais distantes, devido aos pan-alérgenos, moléculas bem preservadas e com função similar, que pertencem à mesma família proteica, como PR-10, profilinas, proteínas de transferência lipídica (nsLTPs) e tropomiosinas. A intensidade da reação cruzada observada nos testes depende da família à qual a proteína pertence. Algumas delas são lábeis, como as profilinas e a PR-10, sensíveis ao calor e à digestão, causando reações leves, orais, enquanto as mais estáveis, como as de armazenamento e nsLTPs, podem

determinar não só reações leves, como também reações sistêmicas mais graves. Convém ainda considerar sua concentração e a quantidade ingerida, além dos níveis quantitativos de IgE à proteína específica.


Agora uma pergunta de ordem pessoal, para terminar. Mesmocom tanto interesse clínico, como você decidiu trabalhar em um laboratório?

Sempre gostei desse ambiente. Desde muito cedo descobri que era muito mais emocionante trabalhar com os resultados do que com a prática real. E atuar com diagnóstico, definitivamente, nem sempre é muito simples. Percebi que, sem saber o perfil de anticorpo IgE dos pacientes com sintomas ditos alérgicos,a probabilidade de fazer um diagnóstico correto não é muito alta. E entendo que a alergia ainda seja uma disciplina nova, em comparação com outras áreas da medicina, na qual testes in vitro são bem-aceitos e considerados como parte natural da investigação diagnóstica do paciente.


Entrevista concedida à Dra. Barbara Gonçalves da Silva, consultora médica do Fleury.