Infecções repetidas na infância? Lembre-se de investigar as imunodeficiências primárias | Revista Médica Ed. 1 - 2011

A idade de início do quadro, os patógenos envolvidos e a localização do processo infeccioso dão pistas sobre o tipo de defeito no sistema imune.

A idade de início do quadro, os patógenos envolvidos e a localização do processo infeccioso dão pistas sobre o tipo de defeito no sistema imune.

As imunodeficiências primárias (IDPs) são distúrbios geneticamente herdados que envolvem o sistema imune e suas respostas, predispondo os indivíduos a infecções recorrentes ou graves, a doenças autoimunes e a processos de malignidade.

O diagnóstico muitas vezes é retardado devido ao pouco conhecimento sobre essas doenças, o que aumenta o risco de complicações e de morte secundária às infecções e a outras comorbidades. Muitos casos, da mesma forma, são incorretamente abordados, o que resulta em medidas terapêuticas inadequadas.

As manifestações clínicas começam geralmente durante a infância, embora possam ser observadas na segunda ou terceira décadas de vida, como ocorre na imunodeficiência comum variável.

A idade de início dos quadros infecciosos, o tipo de patógeno e a região acometida, por sua vez, sugerem a localização do defeito no sistema imune, que pode estar na imunidade adquirida, quando afeta os sistemas humoral, celular ou uma combinação de ambos, bem como envolver elementos da imunidade inata, como os fagócitos e o sistema complemento.

Na prática, deve-se suspeitar de imunodeficiência primária nas infecções frequentes, recidivantes ou graves que são causadas por microrganismos muitas vezes oportunistas, têm duração não usual, requerem tratamentos prolongados e levam a complicações inesperadas.

A história clínica, portanto, é crucial nessa investigação, que também precisa se ater a situações como perda prematura da dentição ou gengivite frequente, dificuldade de cicatrização, surgimento de bronquiectasia inexplicada, quadros arrastados de diarreia e má absorção. A presença de doenças autoimunes, de afecções hematológicas, como anemia hemolítica, neutropenia e trombocitopenia, e de retardo no crescimento igualmente conduz a essa hipótese. Na tabela a seguir, você confere as características das principais IDPs e as recomendações para seu diagnóstico e tratamento.

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O que pode haver por trás dos processos infecciosos recorrentes

DEFICIÊNCIA HUMORAL: as manifestações clínicas iniciam-se aos 5-6 meses de vida ou no fim da infância, sendo representadas predominantemente por infecções sinopulmonares de repetição, sintomas gastrointestinais, má absorção intestinal, artrite e meningoencefalite. É frequente a associação com asma brônquica. A suspeita dessas formas de IDP deve ser investigada com dosagem de imunoglobulinas (IgG, IgA, IgE e IgM) e contagem de CD19 e CD20 (células B) por citometria de fluxo, assim como pela avaliação da resposta vacinal a antígeno polissacáride (pneumococo 23-valente) e a antígeno proteico (tétano), com mensuração dos anticorpos antes da imunização e após quatro semanas.

Doença
Apresentação
Complicações
Agentes infecciosos
Laboratório
Deficiência seletiva de IgA
 • Geralmente assintomática
 • Infecções de repetição e alergias (asma)
 • Secundária ao uso de fenitoína, carbamazepina, sulfassalazina e AINH (quando é reversível)
 • Doenças autoimunes
(lupus-like, afecções inflamatórias intestinais, neutropenia e trombo-citopenia)
 • Bactérias e vírus
 • IgA diminuída (<0,07 g/L) ou ausente
 • IgG e IgM normais
Imunodeficiência comum variável
 • Infecção bacteriana recorrente
 • Doenças autoimunes em alguns casos, a exemplo de púrpura trombocitopênica e anemia hemolítica
 • Hiperplasia nodular linfoide
 • Má absorção
 • Giardíase
 • Linfoma não Hodgkin
 • Câncer gástrico
 • Bronquiectasia
 • H. influenzae
 • S. pneumoniae
 • Mycoplasma sp.
 • Campylobacter
 • Moraxella catarrhalis
 • Giardia
 • IgG, IgA e IgM diminuídas
 • Pobre resposta à vacinação
 • Número de células B normal ou reduzido
 • Alterações nas células T
Deficiência isolada de subclasse de IgG
 • Em geral assintomática
 • Infecções virais e bacterianas recorrentes
 • Infecções mais graves
 • Doenças autoimunes (lúpus)
 • S. pneumoniae
 • H. influenzae

 • S. aureus
 • Diminuição de subclasses de IgG
 • Níveis normais de IgM e IgA (ou reduzidos em alguns casos)
 • Falta de resposta a antígenos polissacárides (pela redução de IgG2)
 • Células T normais
Hipogama-globulinemia transitória da infância
 • Infecções bacterianas moderadas, mas recorrentes
 • Coincide com a diminuição da IgG materna e o início da criança em berçários ou creches
  • Infecções mais graves
  • Bactérias
 • IgG e IgA reduzidas (entre 5-6 meses de idade, até a produção se iniciar normalmente, aos 2 anos)
 • Possível diminuição de títulos de iso-hemaglutininas
Deficiência específica de anticorpo, com níveis normais
de imunoglobulinas
e número normal
de linfócitos B

 • Infecções frequentes do trato respiratório
 • Imunoglobulinas normais
 • Ausência de anticorpos específicos para antígenos polissacárides (vacinação)

DEFICIÊNCIA COMBINADA (HUMORAL E CELULAR): os sintomas surgem precocemente, com crescimento inadequado, diarreia crônica e candidíase persistente. As infecções, nesses casos, decorrem da ação de patógenos de replicação intracelular, como fungos (Candida, Pneumocystis, Cryptococcus), vírus (citomegalovírus, EBV, Herpes simplex, Varicella zoster) e parasitas (Cryptosporidium). O quadro clínico pode evoluir para inflamação pós-vacinação com BCG, tetania por hipocalcemia e reação enxerto versus hospedeiro na transfusão de sangue não irradiado. Para confirmar a hipótese de IDP combinada, é necessária a contagem de CD3, CD4 e CD8 (células T) e CD16/56 (células NK) por citometria de fluxo, além dos exames de investigação da IDP humoral. Nesses pacientes, o estudo da imunidade celular, feito por meio de testes cutâneos intradérmicos tardios, mostra-se igualmente importante.

Doença
Apresentação
Complicações
Agentes infecciosos
Laboratório
DEFICIÊNCIAS COMBINADAS
Imunodeficiência combinada grave (SCID)
• Infecções graves e persistentes, como diarreia, pneumonia, otites, infecções cutâneas e sepse
• Retardo no crescimento
• Infecções graves
• Microrganismos
oportunistas (bactérias, vírus e fungos)
• Diminuição de imunoglobulinas
• Redução ou ausência de subpopulação linfocitária
• Baixa proliferação linfocitária em resposta aos mitógenos
Síndrome de Omenn
• Eritrodermia
• Eosinofilia
• Adenopatia
• Hepatoesplenomegalia
• Infecções bacterianas persistentes
• Bactérias
• Diminuição de imunoglobulinas
• Aumento da IgE
• Presença de
células T
• Células B normais ou diminuídas
OUTRAS IMUNODEFICIÊNCIAS BEM DEFINIDAS
Síndrome de
Wiskott-Aldrich

• Trombocitopenia
• Eczema
• Linfoma
• Doença autoimune
• Infecções bacterianas e virais
• Quadro infeccioso grave
• Hemorragia maciça
• Doenças oncológicas (80% dos casos em associação com Epstein-Baar)
• Bactérias
e vírus
• Diminuição de células T
• Células B normais
• Redução de IgM, IgG e IgE
• Aumento de IgA
• Ausência de resposta vacinal aos antígenos polissacárides
• Falta de produção de iso-hemaglutininas
• Presença de plaquetas pequenas e não funcionantes
Ataxia-telangiectasia
• Ataxia e telangiectasia oculomotora aos 3-5 anos de idade
• Infecções pulmonares
• Doença linforreticular
• Retardo no crescimento
• Infecções graves
• Vírus, bactérias e fungos (agentes oportunistas são raros)
• Diminuição progressiva das células T
• Células B normais
• Níveis normais de imunoglobulinas ou IgA, IgE e subclasses de IgG reduzidas, com aumento de IgM
• Elevação da alfafetoproteína
Síndrome de DiGeorge
• Aplasia ou hipoplasia tímica congênita
• Malformações cardíacas
• Retardo no crescimento
• Hipoparatiroidismo
• Fácies típico Obs.: a variação desta imunodeficiência é espectral, havendo pacientes com quadros benignos
• Hipocalcemia nas primeiras 24 horas, com resistência ao tratamento
• Atresia de esôfago
• Imunodeficiência celular
• Vírus, bactérias, fungos e protozoários
• Células T normais ou diminuídas (com linfopenia)
• Células B normais
• Imunoglobulinas normais ou reduzidas
• Dimunuição no número de células T portadoras de TREC (recém-emigrantes do timo)
Síndrome de
hiper-IgE (JOB)

• Malformações faciais
• Eczema, asma brônquica
• Osteoporose e fratura
• Escoliose
• Hiperextensão articular
• Infecções bacterianas (pele e pulmão)
• Superinfecção pelo S. aureus
• Fraturas recorrentes
• S. aureus
• Aspergillus
• Células T e B normais
• Células TH17 diminuídas
• IgE aumentada, com eosinofilia
• Redução na produção de anticorpos específicos
Síndrome de
Chediak-Higashi

• Infecção piogênica de repetição (pele e trato respiratório)
• Albinismo parcial
• Alterações neurológicas
• Fotofobia
• Nistagmo
• Doenças linfoproliferativas (proliferação de células T)
• Linfoadenopatia
• Hepatoespleno-megalia
• Falência da medula óssea
• Bactérias
• Células T e B normais
• Imunoglobulinas normais
• Presença de grânulos azurófilos gigantes nos neutrófilos
Poliendocrinopatia autoimune com candidíase e distrofia ectodérmica (Apeced)
• Hipoparatiroidismo
• Doença de Addison
• Tiroidite de Hashimoto
• Diabetes
• Anemia hemolítica
• Candidíase
• Hipoplasia dentária
• Hipocalcemia e tetania, com resistência ao tratamento
• Células T e B normais
• Imunoglobulinas normais
Poliendocrinopatia
e enteropatia ligadas ao X (Ipex)

• Diarreia autoimune
• Diabetes precoce
• Tiroidite
• Anemia hemolítica
• Trombocitopenia
• Eczema
• Inerentes às patologias associadas
• Ausência de expressão de FOXP3
• Células T reguladoras (Treg) reduzidas ou ausentes
• Células B normais
• IgA e IgE elevadas

DEFICIÊNCIA DE FAGÓCITOS: o quadro clínico é precoce nesses pacientes, evidenciando-se com celulite, abscessos, periodontite e osteomielite. Para a investigação dessa suspeita, é fundamental a realização de hemograma com diferenciação de leucócitos. Diante de contagem normal de células brancas, o teste de di-hidrorrodamina deve ser o próximo passo.

Doença
Apresentação
Complicações
Agentes infecciosos
Laboratório
DEFEITOS NOS FAGÓCITOS
Neutropenia grave
• Infecções recorrentes
• Associação com mielodisplasia
• Infecções mais graves
• Bactérias
• Neutropenia
Doença
granulomatosa
crônica ligada ao X

• Broncopneumonia
• Abscessos
• Adenite supurativa
• Abscessos pulmonares
• Sepse
• Obstrução do estômago e do ureter
• S. aureus
• Salmonella
• Klebsiella
• Aerobacter
• Serratia

• Aspergillus fumigatus
• Candida albicans

• Bactérias gram-negativas
• Índice de
oxidação neutrofílico diminuído no teste de di-hidrorrodamina
DEFEITOS NA IMUNIDADE INATA
Candidíase mucocutânea crônica
• Candidíase em membranas mucosas, pele, unhas e região genital
• Infecção com aparência de luva associada à doença granulomatosa
• S. aureus
• Mycobacterium
• HPV
Candida 
Cryptococcus
• Células T e B circulantes normais
• Imunoglobulinas normais
• Teste de hipersensibilidade tardia negativo para Candida
DOENÇAS AUTOINFLAMATÓRIAS - Leia mais sobre essas doenças.
Febre familiar do Mediterrâneo
• Febre recorrente
• Serosite
• Intensa dor abdominal
• Eritema tipo erisipela em MMII
• Amiloidose
• Vasculite (púrpura de Henoch-Schoenlein e poliarterite nodosa)

• Diminuição na apoptose de macrófagos
• Nas crises, VHS, PCR e hemograma alterados

DEFICIÊNCIA DO SISTEMA COMPLEMENTO: surge em qualquer idade, apresentando-se com meningite, artrite, sepse e infecções sinopulmonares. O quadro clínico pode evoluir para vasculite, lúpus eritematoso sistêmico, dermatomiosite, glomerulonefrite e angioedema. Usualmente, as infecções provêm de agentes como Neisseria meningitidis, N. gonorrheae e E. coli. Nessa hipótese, é preciso dosar o complemento total (CH50), mas a necessidade de quantificar suas frações específicas depende da história clínica do paciente. Pessoas com deficiência de C2-C4 apresentam maior probabilidade de desenvolver doenças reumáticas autoimunes e infecções similares à deficiência humoral. Já indivíduos com deficiência de frações terminais do complemento (C5-C9) têm infecções recorrentes pela Neisseria.

Deficiência
Apresentação
Agentes infecciosos
Laboratório
C1Q, R, S
• Síndrome lupus-like
• Doença reumatoide
• Infecções
• Bactérias
• Ausência de atividade do componente C hemolítico
C2-C4
• Organismos ncapsulados
C3
• Infecções piogênicas de repetição
• Defeito na atividade bactericida e na resposta humoral
C5-C9
• Infecções por Neisseria
• Neisseria meningitidis
• Neisseria gonorrheae
• Defeito na atividade bactericida
Assessoria Médica
Dr. Luis Eduardo Coelho Andrade: [email protected]
Colaborou neste artigo
Dra. Barbara Gonçalves da Silva