Leucemia mieloide aguda | Revista Médica Ed. 1 - 2015

Como diagnosticar a leucemia mielode aguda na atualidade e as novas perspectivas trazidas pela era genômica

Como fazer o diagnóstico da doença nos dias atuais e o que esperar da era genômica


Microscopia eletrônica de transmissão mostra blastos encontrados em paciente com leucemia mieloide aguda. 

MEULLEMIESTRE/BSIP/ALAMY/LATINSTOCK


A leucemia mieloide aguda (LMA) constitui-se num conjunto heterogêneo de doenças causadas pelo acúmulo de alterações genéticas somáticas adquiridas pelas células progenitoras hematopoéticas (CPH). Essas lesões levam à alteração nos mecanismos normais de autorrenovação, proliferação e diferenciação das células da medula óssea (MO), com consequente redução dos elementos normais no sangue periférico (Meyer & Levine, 2014; Chung, 2014). 


O conceito atual da patogênese da doença inclui a existência de uma célula-tronco leucêmica (CTL), que compartilha propriedades com a CPH normal no que concerne à capacidade de autorrenovar-se, proliferar-se e diferenciar-se, mas apresenta falta de resposta à terapia por permanecer quiescente na fase G0 do ciclo celular ou por se alojar no microambiente medular, onde fica protegida de apoptose. Em função disso, a doença se mantém e se perpetua (Pollyea et al, 2014).


Graças à abordagem sistemática do sequenciamento de todo o genoma de amostras de LMA, sabe-se que praticamente todos os casos têm alguma anormalidade genética. Com isso, a interpretação vigente é de que a mutação iniciadora, que seria a translocação ou a alteração na sequência codificante, ocorre na CPH e origina o clone em expansão. Subsequentemente, uma ou mais mutações cooperantes complementam o processo de transformação. Dentro do clone maligno fundador, diferentes subclones se desenvolvem, conferindo um aspecto oligoclonal à doença, ao diagnóstico. Os tipos de mutações iniciadoras e cooperadoras dentro do clone fundador determinam o fenótipo da doença (Lindsey & Ebert, 2013; Showed & Levis, 2014).


De qualquer forma, o fenômeno que desencadeia a transformação neoplásica não é conhecido, porém se sabe que pode ocorrer secundariamente à exposição a substâncias tóxicas físicas ou químicas para a MO ou como evolução terminal de outras doenças hematológicas, a exemplo das neoplasias mieloproliferativas crônicas ou das síndromes mielodisplásicas (SMD).


A importância da LMA reside no fato de ela ser a leucemia aguda mais frequente em adultos e acometer de três a quatro pessoas, ou mais, em cada 100.000 habitantes por ano na população idosa (Meyer & Levine, 2014). 


As manifestações clínicas surgem por diminuição dos elementos figurados do sangue periférico e se distinguem por cansaço e fraqueza, devido à anemia, por febre e infecções, em decorrência da neutropenia, e por sangramentos, devido à trombocitopenia. 

  

O diagnóstico deve ser feito rapidamente para que o tratamento ideal seja instituído de imediato. Entretanto, mesmo com as condições ideais, apenas 40-50% dos pacientes adultos têm sobrevida longa (Meyer & Levine, 2014).


O passo a passo do diagnóstico

Entre os exames fundamentais para o diagnóstico figuram o hemograma e o mielograma com citomorfologia, a imunofenotipagem por citometria de fluxo, o cariótipo, a hibridação in situ por fluorescência (FISH) e os testes moleculares (vide algoritmo).


Hemograma

O exame apresenta, em 90% dos casos, anemia em graus variáveis. A leucometria pode estar aumentada, normal ou diminuída, com ou sem neutropenia e mieloblastos. A trombocitopenia está presente na grande maioria dos pacientes. 


Mielograma

De modo geral, o resultado desse estudo é hipercelular devido ao excesso de blastos, cuja morfologia deve ser cuidadosamente analisada. Grosso modo, a descrição das características das células blásticas é o primeiro indicativo do diagnóstico da LMA, especialmente na presença de bastões de Auer (Swerdlow et al, 2008). Com efeito, a citomorfologia ainda ocupa espaço importante, pois, na definição do diagnóstico pela classificação da Organização Mundial da Saúde para LMA, são necessários, pelo menos, 20% de blastos – exceto para os casos de t(8;21) e inv(16) –, com peculiaridades inerentes a cada subtipo (Swerdlow et al, 2008; Loureiro et al, 2014). 


Destacam-se ainda situações emergenciais evidenciadas pela citomorfologia, como a observação de promielócitos displásicos na leucemia promielocítica aguda (LPA), que requer a prescrição imediata de ácido transretinoico e o seguimento do algoritmo diagnóstico desse subtipo com cariótipo, FISH e reação em cadeia da polimerase por transcriptase reversa em tempo real (qPCR) para a confirmação da presença do rearranjo PML/RARA ou suas variantes, com implicações clínicas relevantes (Chauffaille et al, 2008; Rohr et al, 2012; Rego et al, 2013; Pagnano et al, 2014).  


Cabe sublinhar que a definição de remissão completa, qual seja, o desaparecimento dos blastos (<5%) na MO e no sangue periférico após a recuperação deste último (hemoglobina sustentada, neutrófilos >1.000/uL, plaquetas >100.000/uL), ainda é conferida pela citomorfologia (Cheson et al, 2003). Da mesma forma, o exame detecta a recaída hematológica ao observar o ressurgimento dos blastos acima de 5% na MO previamente em remissão (Cheson, 2003).



Blasto com bastão de Auer
ARQUIVO FLEURY  


Imunofenotipagem por citometria de fluxo multiparamétrica (CMF)

Por meio do uso de uma bateria de anticorpos monoclonais, esse método assegura a distinção do tipo de blasto e seu grau de diferenciação. Além disso, identifica fenótipos associados a determinadas anomalias citogenéticas, fenótipos aberrantes que podem auxiliar a detecção de doença residual pós-terapia ou mesmo as leucemias de fenótipo misto ou de duas linhagens (van Dongen et al, 2012; Ikoma et al, 2014). 


Testes genético-moleculares

A importância do cariótipo

O cariótipo das células blásticas permite a detecção das anormalidades cromossômicas e propicia a classi?cação da doença e a estratificação de prognóstico, além de auxiliar a escolha terapêutica. Cerca de 50% dos casos de LMA apresentam alterações nesse teste e mais de 300 anomalias recorrentes foram descritas, o que possibilita a divisão dos casos em dois grupos: LMA com alterações cromossômicas típicas, observadas em crianças e adultos jovens, e LMA com desequilíbrio cromossômico, detectado em idosos e em pacientes com SMD (Grimwade, 2001; Pelloso et al, 2003; Mitelman et al, 2007). O primeiro grupo implica o acometimento de precursores hematopoéticos mais tardios, como ocorre na LPA com t(15;17) e na LMA com t(8;21) ou inv(16). Tais anomalias cromossômicas resultam em inativação funcional de fatores de transcrição essenciais para a regulação normal da hematopoese (Rowley, 2009). Já o segundo grupo compreende alterações que se caracterizam pelo envolvimento de várias linhagens da MO, sugerindo a transformação da célula precursora primitiva. Na prática, evidencia aberrações complexas, particularmente a perda de material genético, e associa-se a um prognóstico desfavorável.



SPL DC/LATINSTOCK / ARQUIVO FLEURY


As translocações t(8;21), t(15;17) e inv(16) são consideradas de bom prognóstico, ou seja, aproximadamente 70% dos pacientes que as possuem têm sobrevida além de três a cinco anos após o tratamento quimioterápico (QT) e não se beneficiam de transplante de células-tronco hematopoéticas (TCTH) na primeira remissão (Meyer & Levine, 2014). A t(15;17), ou a fusão dos genes PML e RARA, ocasiona bloqueio de diferenciação em promielócitos e responde muito bem ao ácido transretinoico ou ao trióxido de arsênico (Pagnano et al, 2014;  Rego et al, 2013). Por fim, a t(8;21), ou rearranjo dos genes RUNX1 e RUNX1T1, e a inv(16), ou CBFB/MYH11, resultam em repressão da transcrição (Rowley, 2009).


As alterações que conferem prognóstico desfavorável, isto é, indicam sobrevida curta, são        -5/5q-, -7/7q-, t(9;22), 3q26 e cariótipos complexos - estes últimos geralmente apresentam deleção do gene supressor tumoral TP53, localizado no 17p13. Rearranjos que envolvem 11q23 ou o gene MLL, exceto a t(9;11), também são desfavoráveis. O MLL codifica uma proteína de ligação ao DNA com atividade histona H3K4 metiltransferase, que atua como regulador transcricional, envolvendo-se na supressão tumoral e no controle do ciclo celular. Cariótipos monossômicos, ou seja, com monossomia de cromossomo autossômico, estratificam pior evolução, assim como t(6;9) (DEK/NUP214), que se associa, em 70% dos casos, à mutação FLT3. Adicione-se, em relação ao FLT3, sua presença na LPA, o que piora o prognóstico (Lucerna-Araujo et al, 2014; Krum et al, 2009; Chauffaille et al, 2008). 


São alocados como de prognóstico intermediário o cariótipo normal, a trissomia 8 e outras alterações menos frequentes. Para tais casos, há grande variação nos resultados do tratamento e outras anomalias genéticas não detectadas pela citogenética exercem importante papel na patogênese da doença. 


O papel da hibridação in situ por fluorescência (FISH)


Utilizando sondas específicas, a FISH analisa centenas de células em busca de alterações cromossômicas. No destaque, o método identifica a alteração RUNX1/RUNX1T1, frequente em leucemias mieloides agudas.
SPL DC/LATINSTOCK



ARQUIVO FLEURY

A detecção das anormalidades cromossômicas pode ser melhorada pelo uso da técnica de FISH, um método rápido, com resultado até 24 horas, sensível, já que podem ser analisadas centenas de células, e específico, pois informa exatamente o que está sendo investigado. Por isso, o exame tem sido reservado fundamentalmente para os casos em que se precisa de informação imediata, como nas LPA, para introdução de tratamento específico, para definição do parceiro nos rearranjos envolvendo o gene MLL, que podem ser vários, e para cariótipo normal ou não informativo, com metáfase de qualidade ruim ou em número insuficiente para conclusão diagnóstica. Habitualmente, usam-se sondas para as alterações genéticas mais frequentes em LMA (-5,5q, -7,7q-, +8, MLL, PML/RARA, RUNX1/RUN1T1 e BCR/ABL1) e, com isso, amplia-se a taxa de detecção. 


A PCR em tempo real na pesquisa de mutações

Como grande parte das translocações observadas na LMA produz um gene de fusão que codi?ca uma proteína aberrante, o qPCR é o teste ideal para essa finalidade, enquanto outras mutações podem ser detectadas por sequenciamento. O qPCR também oferece a possibilidade de monitoração da doença residual, como no caso de PML/RARA. 


Define-se a doença residual mínima (MDR) como a persistência de células doentes após o tratamento com QT em nível além da sensibilidade da citomorfologia (<5%). Tal detecção vem sendo relacionada a um desenlace clínico desfavorável (Grimwade et al, 2010). 


No caso da LPA, o desaparecimento do PML/RARA é de fundamental importância para considerar a remissão molecular. Quando reaparece, define a recaída molecular, o que implica programar tratamento de reindução com esquema contendo trióxido de arsênico, pois, do contrário, o paciente terá recidiva clínica da doença (Pagnano et al, 2014).


 Além da qPCR, sequenciamento de DNA detecta mutações características das LMA.

SPL DC/LATINSTOCK 

 

O que e quando pesquisar

Sabe-se que os casos de cariótipo normal apresentam alterações gênicas, como duplicação interna em tandem do gene FMS-like tyrosine kinase 3 (FLT3-ITD), mutação do nucleofosmina 1 (NPM1) e do CCAAT/enhancer binding protein alpha (CEBPA) e duplicação parcial de MLL, KIT, TET2, ASXL1, IDH1/2, DNTM3A, PHF6,WT1, TP53, EZH2, PTEN, RAS, etc. (Costa et al, 2012, Krum et al, 2009, Chung, 2014). 


Diante das inúmeras alterações genético-moleculares até hoje descritas em LMA, fica difícil definir quais delas e para quem devem ser investigadas na rotina. A solicitação racional passa pela escolha daquelas que modificarão a estratificação de risco, proporcionarão a seleção de terapia pós-remissão (QT de consolidação ou TCTH) ou permitirão a monitoração acurada da doença residual após QT (Chung, 2014). 


Nesse contexto, ganhou importância a pesquisa da mutação KIT (mast/stem cell growth factor receptor) nas LMA com t(8;21) e inv(16), que, quando presente, afeta adversamente o prognóstico (Paschka et al, 2006). Também hoje se considera necessária a investigação da mutação interna em tandem do gene FLT3-ITD, NPM1 e CEBPA nos casos de cariótipo normal. 


A presença da mutação NPM1 e da CEBPA bialélica confere prognóstico favorável, enquanto a FLT3-ITD sinaliza um quadro desfavorável aos casos de cariótipo normal, a ponto de anular o efeito das duas primeiras se estiver associada a elas (Chung 2014). Inclusive, a OMS as incorporou como entidades provisórias na sua classificação para as LMA (Swerdlow et al, 2008) (veja tabela)


Apesar dos avanços alcançados no tratamento dos pacientes com LMA, especialmente nas últimas três décadas, a doença ainda apresenta alta taxa de recaída. Esse fato estimula a contínua investigação para a estratificação de risco, para a avaliação eficaz da terapia e para o melhor entendimento da patogênese da doença (Roug et al, 2014).   





Assessoria Médica
Hematologia e Citogenética
Dra. Maria de Lourdes Chauffaille
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Hematologia e Citometria de Fluxo
Dr. Alex Freire Sandes
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Dr. Matheus Vescovi Gonçalves
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