Linfoma | Revista Médica Ed. 1 - 2016

Febre, esplenomegalia, anemia e linfócitos discretamente aumentados levam à suspeita de doença linfoproliferativa

O CASO

Paciente do sexo feminino, 51 anos, secretária, moradora de São Paulo, capital, foi à consulta devido a uma queixa de dores articulares iniciadas uma semana antes. Previamente hígida, passou a ter febre vespertina desde o início das dores, sem nenhuma outra manifestação.

Os exames de triagem mostraram anemia, com hemoglobina de 9,0 g/dL, linfocitose discreta e alguns linfócitos maduros com alta relação nucleocitoplásmica, conforme o quadro abaixo. Já a ultrassonografia de abdome apontou aumento das dimensões do baço. Como a paciente não havia viajado no ano anterior, foram logo descartadas as causas parasitárias de esplenomegalia.

  

SPL DC/LATINSTOCK
Esplenomegalia vista à ultrassonografia de abdome.

A linfocitose discreta já estava presente 70 dias antes dessa apresentação (4.920 linfócitos/mm³) em hemograma de rotina, cuja análise do esfregaço de sangue periférico também revelou a presença de alguns linfócitos maduros com relação nucleocitoplásmica aumentada e contorno nuclear irregular. No entanto, como não havia sintomas na ocasião e tanto a concentração de hemoglobina quanto as contagens de leucócitos e plaquetas estavam normais, nenhuma investigação adicional foi realizada.

  

 

A DISCUSSÃO

O quadro de esplenomegalia tem o diagnóstico diferencial mais específico. De todas as possibilidades listadas abaixo, a hipótese de linfoma é especialmente relevante neste caso, em vista da febre, da anemia e da presença de linfócitos aberrantes no sangue periférico. Por isso, o método escolhido para prosseguir com a investigação foi a imunofenotipagem por citometria de fluxo em sangue periférico, a fim de verificar, de forma inequívoca, se os linfócitos anormais à análise morfológica poderiam ser consequência de doença linfoproliferativa.

Causas de esplenomegalia
Hematológicas
  • Talassemia maior

  • Hemoglobinopatias

  • Membranopatias

  • Anemia hemolítica autoimune

Reumatológicas
  • Artrite reumatoide

  • Lúpus eritematoso sistêmico

  • Sarcoidose

Infecciosas
  • Doenças virais

  • Doenças bacterianas

  • Micobacterioses

  • Doenças fúngicas

  • Parasitoses

  • Leishmaniose visceral

Congestivas
  • Cirrose hepática

  • Trombose venosa

  • Insuficiência cardíaca

Infiltrativas
  • Linfomas

  • Neoplasias mieloproliferativas

  • Neoplasias metastáticas

  • Amiloidose

  • Doença de Gaucher

  • Doença de Nieman-Pick

  • Doenças de depósito do glicogênio

  • Síndromes hemofagocíticas

  • Histiocitose de células de Langerhans

Adaptado de Abramson JS, et al. N Engl J Med. 2008;359:2707.

Imunofenotipagem indica o caminho

Na imunofenotipagem em sangue periférico, observou-se o predomínio de células linfoides de imunofenótipo B, identificadas pela expressão dos antígenos CD19 e CD20, assim como a coexpressão dos antígenos CD5, FMC-7, CD79b, IgM e IgD. Os antígenos CD10 e CD23 não foram detectados. Além disso, a análise demonstrou expressão exclusiva de imunoglobulina de cadeia leve kappa – uma evidência bastante significativa de clonalidade – e imunoglobulinas de cadeia pesada dos subtipos IgM e IgD na membrana.

A inclusão dos antígenos CD5 e CD10 no painel de investigação de doenças linfoproliferativas B pode auxiliar a direcionar o raciocínio diagnóstico. A presença de células B anômalas que expressam o antígeno CD5, sem coexpressão de CD10, restringe de modo significativo as possibilidades diagnósticas para a paciente, favorecendo a leucemia linfocítica crônica (LLC), o linfoma de células do manto e a leucemia prolinfocítica B (LPL-B) como as hipóteses mais relevantes a investigar.

Das três alternativas mencionadas, a LLC é a mais frequente. No entanto, embora as exceções não sejam raras, usualmente as células dessa leucemia expressam o antígeno CD23, e não o FMC-7, além de apresentarem o CD20 e a imunoglobulina de cadeia leve com baixa densidade na membrana. O antígeno CD79b geralmente está ausente ou é expresso apenas com baixa densidade. Esses achados não foram identificados neste caso.

Na LPL-B, a mais rara das três possibilidades, em geral há esplenomegalia isolada, sem adenomegalia, e o perfil imunofenotípico aqui observado pode ser identificado em cerca de um terço dos indivíduos. No entanto, os pacientes têm leucocitose acentuada, com elevado número de células anômalas no sangue periférico e características morfológicas de prolinfócitos, ou seja, linfócitos grandes com nucléolo evidente, o que também não foi observado.

Dessa maneira, tanto os achados clínicos quanto os morfológicos e imunofenotípicos sugeriram que o linfoma de células do manto fosse a principal hipótese a considerar. A doença, que representa entre 6% e 10% dos linfomas não Hodgkin e envolve frequentemente linfonodos, baço, anel de Waldeyer, medula óssea, sangue periférico e trato gastrointestinal, tem associação recorrente com a translocação t(11;14)(q13;q32), uma alteração genética que provoca a expressão descontrolada da proteína ciclina D1 pelas células tumorais. Ambos os fatores, ou seja, a presença de t(11;14) e a hiperexpressão da ciclina D1, podem ser utilizados como marcadores da doença e explorados na abordagem dessas suspeitas.

Citogenética confirma a suspeita

O estudo citogenético da célula neoplásica pode auxiliar o clínico na definição do subtipo de linfoma e do seu prognóstico, além de oferecer informações relevantes acerca da biologia da doença. Na hipótese de linfoma de células do manto, a presença da t(11;14)(q13;q32) permite a confirmação desse subtipo. Essa translocação envolve os genes CCND1 (PRAD ou BCL1) e IGH, situados no 11q13 e no 14q32, respectivamente, originando a expressão ectópica e desregulada da ciclina D1, que não é expressa pelos linfócitos B normais. Essa proteína controla a transição G1-S do ciclo celular e, quando em hiperexpressão, dá vantagem proliferativa às células, permitindo sua multiplicação descontrolada.

A investigação dessa alteração genética pode ser realizada tanto pela citogenética convencional, ou seja, pelo cariótipo, quanto por método citogenético-molecular, a hibridação in situ por fluorescência (FISH). Embora as duas técnicas possam ser usadas nessa situação, a FISH é considerada a metodologia mais sensível e específica para a identificação da translocação t(11;14).

Outras alterações genéticas também podem ocorrer no linfoma de células do manto, tais como mutações nos genes ATM, P53 e CHK2. Tais lesões interferem nos mecanismos de reparo do DNA e ocasionam a instabilidade genômica, produzindo, em consequência, aberrações cromossômicas adicionais, que podem culminar até em hiperploidia – observada sobretudo nas variantes blastoide e pleomórfica da doença. Essas alterações têm implicações prognósticas e são identificadas pela citogenética e pela citometria de DNA, ou seja, pela quantificação das células em fases G1, S e G2/M do ciclo celular por citometria de fluxo.


Anatomia patológica e imuno-histoquímica complementam o diagnóstico

Morfologia

No linfoma de células do manto, os padrões arquiteturais de comprometimento podem se apresentar como zona do manto de folículos reativos, padrão nodular ou padrão difuso. Na forma clássica, a morfologia caracteriza-se por células linfoides um pouco maiores que os linfócitos normais, com núcleo irregular e nucléolo difícil de distinguir, como observado no presente caso. Uma minoria possui núcleo maior e nucléolo evidente, sendo denominada como variante blastoide. Também existe a variante pleomórfica, constituída por células maiores, com importante pleomorfismo nuclear.

  

FISH para a pesquisa de linfoma do manto: o sinal vermelho corresponde à sonda CCND1 e o verde, à IGH, enquanto os sinais amarelos dizem respeito à fusão entre verde e vermelho, indicando a presença da t(11;14).

Imuno-histoquímica

As células neoplásicas exibem o imunofenótipo de células B maduras, com positividade para os marcadores CD20, CD79a e Pax5, além de expressarem CD5, CD43 e ciclina D1. A translocação t(11;14) está associada à imunoexpressão nuclear da proteína ciclina D1. Entretanto, uma minoria de casos não expressa ciclina D1, mas ciclina D2 e ciclina D3, associadas a translocações envolvendo esses genes. O SOX-11, um fator de transcrição neural, também aparece nos linfomas de células do manto, incluindo os casos em que a expressão da ciclina D1 é negativa, surgindo, portanto, como um importante marcador para o diagnóstico diferencial da forma clássica negativa para ciclina D1 com os demais linfomas B de baixo grau.

A medula óssea é acometida em 50% a 91% dos pacientes portadores desse linfoma, razão pela qual sua avaliação tem relevância para o estadiamento da doença. No caso em estudo, observou-se infiltração da medula.

Um fator prognóstico de destaque no linfoma de células do manto é o índice de proliferação celular, avaliado por meio da imunoexpressão do Ki67. Na prática, são reconhecidos três grupos prognósticos: com menos de 10% de proliferação, entre 10-30% e com mais de 30%.

A paciente avaliada tinha 5% de células com imunoexpressão do Ki67, o que a colocou no subgrupo de baixo risco.

  

ARQUIVO FLEURY
Estudo histológico do linfonodo demonstra padrão compatível com a forma clássica do linfoma de células do manto (imagem à esquerda). Imuno-histoquímica com marcação positiva para ciclina D1 revela infiltração da medula óssea por linfoma de células do manto.(imagem à direita)

Imagem: necessária para o estadiamento

Tanto a tomografia computadorizada quanto a versão associada à tomografia por emissão de pósitrons (PET/CT) estão indicadas para o estadiamento inicial da doença e também para o controle de tratamento, o reestadiamento e a detecção de recipa. A paciente realizou o exame de PET/CT, que identificou aumento importante do metabolismo glicolítico em esplenomegalia homogênea e em linfonodomegalias, além de linfonodos em número aumentado nas regiões cervical, mediastinal, abdominal e pélvica, bem como captação difusa na medula óssea.

Uma vez que se trata de um método de imagem híbrido, que conjuga informações anatômicas e funcionais, o estudo por PET/CT é o recurso de escolha na avaliação de pacientes com doenças linfoproliferativas.

  ARQUIVO FLEURY 

PET/CT antes (imagem à esquerda)e após a quimioterapia (imagem à direita)

CONCLUSÃO

O diagnóstico, neste caso clínico, foi de um linfoma de células do manto na forma clássica e no estágio IVB, devido à presença de febre e de extenso comprometimento de linfonodos em ambos os lados do diafragma, assim como da invasão da medula óssea e do sangue periférico. A paciente realizou exames para avaliar as funções cardíaca, hepática e renal, além de sorologias para a triagem de infecções crônicas, entre a quais a hepatite, não tendo sido detectadas quaisquer comorbidades. Assim, foi submetida a tratamento com um regime de quimioterapia agressivo, o R-Hyper-CVAD, e apresentou boa resposta e remissão completa do linfoma na avaliação pós-tratamento, constatada diante do desaparecimento das linfonodomegalias e da esplenomegalia ao exame de PET/CT e da ausência de células neoplásicas na pesquisa de doença residual mínima pela imunofenotipagem. Em sua última reavaliação, com mais de 18 meses após o término da quimioterapia, continuava em remissão da doença.

Assessoria Médica
Anatomia PatológicaDra. Flávia Fernandes Silva Zacchi
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Dra. Jussara Bianchi Castelli
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Citogenética e HematologiaDra. Maria de Lourdes Chauffaille
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HematologiaDr. Alex Freire Sandes
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Dra. Maria de Lourdes Chauffaille
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Dr. Matheus V. Gonçalves
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ImagemDr. Gustavo Meirelles
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Dra. Julia Capobianco
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Dr. Marco Antonio Oliveira
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Dra. Paola Smanio
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