Uma vida de diagnósticos | Revista Médica Ed. 3 - 2016

Hora de comemorar: uma breve viagem pelos 90 anos do Fleury.

Como o Fleury participou do desenvolvimento da Medicina Diagnóstica ao longo dos últimos 90 anos


Em uma sala do centro da cidade de São Paulo que continha um microscópio, uma estufa, uma centrífuga e uma autoclave, o Fleury começou sua história há 90 anos. À frente das análises estava o médico Gastão, que logo se tornou chefe do laboratório clínico da FMUSP e o primeiro professor a ensinar essa disciplina na instituição. Dez anos depois, constatou que precisava de ajuda e chamou o colega Walter Leser, especializado em Bioquímica e Hematologia. Nos anos 50, um grupo de médicos que oferecia exames de outras especialidades juntou-se à dupla e foi a partir daí que o investimento em equipamentos tomou mais força, num caminho sem volta.


Sem dúvida, os exames laboratoriais apresentaram um enorme salto tecnológico nos últimos anos. Atualmente, 70% das decisões médicas baseiam-se nas informações obtidas por esses testes, uma vez que seus resultados, além de confirmarem, estabelecerem ou complementarem um diagnóstico clínico, também delineiam fatores de risco e fornecem elementos para o prognóstico de várias doenças. 


 

 Sempre presente no Fleury, o microscópio agora faz sozinho a leitura das lâminas, com a ajuda de sistemas de apoio à decisão, que acusam os exames que requerem um olhar clínico

 


A Hematologia como retrato da evolução laboratorial


Nos primeiros anos de sua fundação, o Fleury oferecia poucos testes de Hematologia, entre eles, o hemograma. Até a década de 50, o exame era manual e, por conseguinte, demorado – sua análise consumia mais de uma hora – e laborioso. Mesmo com a habilidade do técnico, estava sujeito a erros pré-analíticos (na identificação da amostra ou devido à formação de coágulos), analíticos (de aferição incorreta) e pós-analíticos (de cálculo ou na digitação do resultado).


Em 1953, Wallace Coulter construiu a primeira máquina que contava células sanguíneas. Desde então, inúmeros aprimoramentos permitiram que, hoje, equipamentos automatizados e integrados a um sistema de tecnologia da informação efetuem o hemograma de modo organizado, reprodutível e confiável em minutos. 


Em paralelo a esse aperfeiçoamento, outras técnicas laboratoriais também sofreram modernizações, deixaram de ser manuais ou foram desenvolvidas para investigar anormalidades e propiciar a descoberta de doenças ou novas opções de tratamentos dentro da Hematologia.


No campo das enfermidades malignas, a imunofenotipagem por imunofluorescência surgiu na década de 80, assim como a imunocitoquímica por reação de fosfatase-alcalina antifosfatase alcalina com a aplicação do anticorpo monoclonal às células blásticas, em lâmina. Tratava-se de método trabalhoso, demorado, pouco sensível e limitado, quando comparado à atual citometria de fluxo multiparamétrica de oito cores, que analisa vários parâmetros, como tamanho e complexidade, e de oito a dez anticorpos em diferentes cores, de forma simultânea, rápida, confiável e reprodutível. Graças a essa tecnologia, é possível identificar populações mínimas de células clonais, abrindo caminho para a detecção de doença residual mínima, com importante repercussão para o prognóstico e o desenho da terapia complementar. A citometria ainda permite o diagnóstico de linfomas de maneira minimamente invasiva, visto que o próprio aspirado do linfonodo comprometido serve para a caracterização de clonalidade.  


Ainda no âmbito das neoplasias hematológicas, o cromossomo Philadelphia foi a primeira anormalidade citogenética descrita consistentemente envolvida em um câncer. Por sua vez, os estudos no linfoma de Burkitt trouxeram a noção de que um proto-oncogene podia estar desregulado pela sua justaposição a um gene específico. Na Citogenética, diversos avanços nas técnicas de cultura, análise e introdução de metodologia para a produção de bandas nos cromossomos foram necessários para que houvesse a possibilidade de observar cada par pelo seu padrão individual e, assim, detectar deleções, inversões, inserções, translocações, sítios frágeis e outros rearranjos mais complexos. 


O fato é que a expansão nessa área foi de tal sorte profunda e ampla que, no Fleury, hoje centenas de exames são feitos não só para o diagnóstico de diversos tipos de doenças hematológicas desconhecidas nas primeiras décadas do século passado, mas também para a escolha da melhor opção terapêutica à luz das alterações percebidas, para o monitoramento do tratamento, para a detecção de doença residual, para a identificação precoce de recidiva, para a execução de transplantes, para o reconhecimento de quimera parcial ou completa pós-enxerto, de rejeição ou de doença enxerto versus hospedeiro e para o conhecimento do nível plasmático de quimioterápicos, entre outras.


A Bioquímica e seu extenso volume de exames


Representando uma grande parcela dos exames de rotina e de urgência, os testes bioquímicos experimentaram desenvolvimento notável nos últimos anos, em especial após a introdução dos analisadores totalmente automatizados – a primeira linha robotizada, vinda do Japão, foi montada na área técnica do Fleury no fim dos anos 90. Esses equipamentos incorporaram conceitos de robótica e os mais avançados processadores nos computadores que comandam todo o processo de análise. A automação permitiu ganho substancial na qualidade dos resultados e uma diminuição gradativa no tempo de liberação do resultado, proporcionando rápida tomada da decisão médica e, por consequência, incremento significativo na segurança do paciente. E foi contemporânea da liberação de resultados pela internet, uma facilidade pioneira nos últimos anos do século 20, seguida hoje pela maioria dos serviços.


Atualmente, os modernos analisadores bioquímicos possibilitam a análise concomitante de múltiplos parâmetros, desde os mais básicos, como glicose, ureia, creatinina, ácido úrico, colesterol, bilirrubinas, proteínas e eletrólitos, até os mais especializados, como drogas terapêuticas, imunossupressores e marcadores tumorais. Juntamente com a automação, a rápida evolução dos métodos laboratoriais que ocorreu nos últimos anos culminou com o expressivo aumento da sensibilidade e da especificidade dos testes bioquímicos, o que foi favorecido por metodologias como eletrodo íon-seletivo, espectrofotometria de absorção atômica, métodos enzimáticos com leitura ultravioleta e espectrometria de massas, entre outros.



Linha de automação da Bioquímica: desde o fim da década de 90, mãos mecânicas passaram a manipular a maior parte do volume de exames do Fleury.

Em torno dos anticorpos


Na Imunologia, os últimos 70 anos foram marcados por uma enorme evolução no campo diagnóstico das doenças, incluindo as autoimunes, as alérgicas e as imunodeficiências primárias (IDP). Nesse período, houve a caracterização dos autoanticorpos como biomarcadores de diversas doenças crônicas inflamatórias de etiologia não conhecida. Na verdade, a descoberta de diversos autoanticorpos mostrou-se crucial na definição e na aceitação das afecções autoimunes. 


Em meados de 1940, o fator reumatoide, associado à artrite reumatoide, e o fenômeno das células LE, marcadoras do lúpus eritematoso sistêmico, foram demonstrados, concomitantemente aos anticorpos antitiroide e a vários outros, abrangendo doenças de diferentes áreas da Medicina. Em muitos casos, a caracterização de novos anticorpos redefiniu o espectro clínico e epidemiológico de uma enfermidade. 


Para atender a essa ampla demanda, o Fleury começou a se valer de uma série de plataformas diagnósticas para flagrar os autoanticorpos, que vão da clássica imunofluorescência indireta até os modernos ensaios multiparamétricos, com uso de microarray e Luminex. Com tais metodologias, a equipe acompanha as mais recentes descobertas em biomarcadores e desenvolve exames para determiná-los, sempre aproveitando as oportunidades para aprofundar seus conhecimentos – recentemente, a área de Imunologia se deparou com um novo padrão de FAN. 


No campo das alergias, a imunoglobulina E foi caracterizada em 1967 e o primeiro teste sorológico para a quantificação de IgE específica surgiu em 1974. Ao longo da última década, houve grande expansão dessa técnica e o Fleury, seguindo de perto tal evolução, incorporou a pesquisa para um grande número de alérgenos e, mais recentemente, abraçou ainda a chamada Alergia Molecular, que consegue determinar a IgE específica para componentes individuais de alérgenos complexos, trazendo, como promessa, a capacidade de distinguir a gravidade e o prognóstico da reação a uma mesma fonte alergênica.


Por fim, os últimos anos se caracterizaram por grande avanço no âmbito das IDP, com mais de 250 doenças já descritas, que requerem sofisticados testes, feitos com uma variedade de metodologias, desde a dosagem de imunoglobulinas, passando pela enumeração de subtipos celulares por citometria de fluxo, até a avaliação da expressão proteica ou gênica e o sequenciamento de genes, entre outros. 


Na seara dos exames endocrinológicos, por sua vez, desde que o Fleury agregou essa parte da medicina laboratorial, na década de 50, a maioria das metodologias usadas já era desenvolvida ali mesmo, em sua área técnica, pelos médicos e analistas. Data da época o curioso teste de Galil-Mainini para o diagnóstico de gravidez, que requeria sapos machos. Ao receberem uma injeção da urina de gestantes, os batráquios produziam espermatozoides. Além de ser um método trabalhoso e pitoresco, os animais precisavam de tratamento VIP para colaborar. Logo foi substituído por testes comerciais.


A partir da década de 70, os médicos da área começaram a trabalhar no desenvolvimento de técnicas em parceria com universidades do exterior, especialmente com pesquisadores europeus. Primeiro, veio a técnica de radioimunoensaio, desenvolvida e empregada no Fleury de forma pioneira no Brasil – que, aliás, também serviu para o laboratório desenvolver um teste próprio para o diagnóstico de gravidez. A década de 80 foi marcada pelo início da produção de anticorpos monoclonais, iniciativa que deu origem a ensaios que hoje permitem a realização dos inúmeros testes oferecidos dentro da Endocrinologia, de dosagens hormonais cada vez mais precisas até marcadores de diabetes e de doenças osteometabólicas.



Equipamento que processa os testes feitos por citometria de fluxo.

A era da Genética Molecular 


Uma área que cresceu muito, nas últimas décadas, e influenciou toda a Medicina, sobretudo nos últimos 60 anos, foi a Genética, a partir da identificação do número correto de cromossomos da espécie humana e, por conseguinte, da descrição das primeiras aneuploidias. Os anos 60 e 70 trouxeram as primeiras técnicas citogenéticas, aumentando a capacidade de detecção de pequenas alterações cromossômicas. Logo depois, o aperfeiçoamento dos métodos de Genética Molecular alavancou o surgimento da reação em cadeia da polimerase (PCR), a utilização de sondas para regiões específicas dos cromossomos e os primórdios do sequenciamento genético, os quais trouxeram um novo paradigma no entendimento dos genes e até permitiram a descoberta de novas doenças. O emprego da hibridação por sondas região-específica, entre os anos 80 e 90, escreveu um novo capítulo da Citogenética Molecular, a ponto de possibilitar o diagnóstico de cromossomopatias ainda no pré-natal.


Com o advento do Projeto Genoma Humano, nos anos 90, surgiram técnicas como MLPA e CGH-array, que identificam perdas e ganhos de material genético menores que cinco megabases. A seguir, vieram as novas metodologias de sequenciamento maciço e o sequenciamento de nova geração, que hoje possibilitam a utilização dos dados do projeto em testes diagnósticos, a exemplo do exoma, que consegue acessar os 20 mil genes do nosso genoma. 


Com mais de 15 anos de experiência em Genética, o Fleury foi o primeiro a oferecer exames desse tipo no Brasil. Hoje, por meio de parcerias internacionais, disponibiliza mais de 3 mil testes genéticos nas áreas de Oncologia, Neurologia, Endocrinologia, Medicina Fetal e Dismorfologia, entre outras, e continuamente favorece a incorporação dos métodos moleculares por outras áreas diagnósticas.



Pipeta não é coisa do passado: só que, agora, a máquina faz o trabalho por si própria, na medida certa e, o principal, com total segurança para o analista.


Testes pioneiros na Infectologia


O diagnóstico das infecções é um exemplo clássico da revolução que a PCR e a PCR em tempo real (RT-PCR) proporcionaram. Basta lembrar que os testes para flagrar doenças parasitárias e infecciosas saíram de técnicas manuais – a pesquisa de toxoplasmose exigia inicialmente toxoplasmas vivos –, extremamente trabalhosas, para métodos cada vez mais sensíveis para a detecção de anticorpos e antígenos, a exemplo dos imunoensaios. A era molecular ampliou significativamente as possibilidades clínicas, ao permitir não apenas a identificação mais rápida e precisa do DNA/RNA do patógeno, mas também o subsídio às decisões terapêuticas e o seguimento de doenças infecciosas crônicas. Nos dias atuais, é quase impossível pensar em acompanhar um portador de HIV ou de hepatite C sem a carga viral e outros testes para conhecer a resistência a medicamentos. 


A propósito, o surgimento da aids e de outras doenças que chacoalharam o mundo testou, com muito sucesso, a capacidade do Fleury em dar respostas rápidas. Foi assim não só com o HIV, nos anos 80-90, mas também com o H1N1, em 2009, e com o Zika vírus e o Chikungunya, mais recentemente, só para citar alguns exemplos. Não dá para negar as facilidades proporcionadas pelos métodos sorológicos e moleculares de última geração para o atendimento dessas demandas diagnósticas, mas o grande diferencial, ao longo destes anos, tem sido mesmo a capacidade das equipes médica e técnica do laboratório, que, diante de desafios novos, aplicam seu conhecimento acumulado em prol das necessidades que se apresentam.  


Vale lembrar que, uma vez que os médicos do Fleury sempre tiveram vínculos com a academia, as questões sem resposta e as aparentes impossibilidades sempre foram abordadas simultaneamente na bancada da área técnica e na universidade, beneficiando a Medicina Diagnóstica como um todo. Uma dúvida aqui se transformava num exame novo acolá – e num trabalho científico publicado mais para frente. Assim, o laboratório que hoje se transformou numa empresa de saúde alimentou e alimenta a pesquisa e o desenvolvimento. 

Como a transformação do conhecimento avança continuamente, com metodologias baseadas em diferentes princípios, cada vez com maior precisão, o Fleury não dá jamais o trabalho como terminado. Ao contrário, trabalha pensando no que você e seus pacientes vão precisar, sempre com uma atuação ética, com a busca continuada pela excelência, com a capacidade de ouvir e com a coragem de assumir a responsabilidade pelos resultados – enfim, com os mesmos valores que caracterizaram os primeiros 90 anos.


De Anatomia Patológica à Patologia Molecular


Uma das mais antigas especialidades médicas, a Patologia serviu como base para o conhecimento das causas de inúmeras doenças e seus efeitos no organismo. Com a invenção do microscópio, entre os séculos XVI e XVII, os antigos pesquisadores iniciaram a longa jornada de descobertas das células e tecidos, da ação dos micróbios, das lesões provocadas por agentes externos e de diferentes enfermidades, com progressivo aprimoramento das técnicas histológicas desde então. Entre as décadas de 70 e 80, a implementação da imuno-histoquímica na rotina do laboratório representou um salto, possibilitando a identificação dos subtipos de neoplasias, como os linfomas, e de marcadores preditivos de prognóstico e resposta terapêutica. A padronização da macro e da microscopia integradas com a análise dos dados de evolução clínica, as técnicas cirúrgicas e os tratamentos químio e radioterápicos trouxeram avanços terapêuticos inimagináveis há 30 ou 40 anos. Com o suporte da bioinformática, os novos métodos de avaliação molecular têm proporcionado imenso progresso na última década. Por meio de procedimentos de coleta minimamente invasivos e microdissecção, o sequenciamento de nova geração aplicado tanto a material de biópsias ou peças cirúrgicas quanto a fluidos corpóreos e sangue descortina um novo universo de informações sobre os mecanismos subjacentes às doenças, o que abre possibilidades para o tratamento cada vez mais individualizado dos pacientes. 


A transformação em centro diagnóstico
Até o fim dos anos 70, o Fleury já era bastante especializado no que dizia respeito a análises clínicas, mas ainda não tinha incorporado nenhum serviço diagnóstico que não utilizasse matrizes biológicas. Isso mudou em 1983, com a introdução da densitometria óssea e, no ano seguinte, com a oferta de alguns exames cardiológicos e ultrassonográficos. Dez anos depois, chegou a primeira equipe de radiologistas, que, logo a seguir, implantou o serviço de mamografia. Daí por diante o centro de diagnóstico não parou de crescer, incorporando exames bastante específicos de diversas especialidades, como Otorrinolaringologia, Oftalmologia, Gastroenterologia, Neurofisiologia e Ginecologia, só para citar algumas, e com o fortalecimento daquelas áreas antes embrionárias. Hoje, a Radiologia reúne os mais avançados métodos, dos raios X à PET/CT, e se segmentou. Há grupos especializados em tórax, mama, abdome, aparelho locomotor e cabeça e pescoço. Da mesma forma, os exames ultrassonográficos gestacionais, antes feitos dentro de um contexto geral, foram agrupados com outros testes pré-natais na Medicina Fetal. A tímida Cardiologia dos anos 80 se fortaleceu e hoje oferece métodos de última geração para a investigação das doenças do coração. Só para citar alguns exemplos, a introdução da ressonância magnética, na década de 90, complementou a análise do ecocardiograma, aumentando a acurácia na identificação de lesões miocárdicas e tornando-se fundamental na avaliação do coração do atleta e no diagnóstico etiológico da insuficiência cardíaca, com impacto direto também na seleção de pacientes para transplante cardíaco. A tomografia das artérias coronárias, que data dos primeiros anos do século 21, foi o primeiro método a permitir o estudo não invasivo desses vasos e atualmente ocupa espaço importante e bem definido na avaliação de pacientes com suspeita de doença coronariana. Esses avanços se cristalizaram, a ponto de o Fleury agora dispor de uma unidade só para diagnósticos cardioneurovasculares.

E vem mais por aí, pode aguardar.