A construção da performance | Revista Fleury Ed. 30

Três artistas de diferentes universos falam sobre o processo criativo por trás de um grande espetáculo

Três artistas de diferentes universos falam sobre o processo criativo por trás de um grande espetáculo
por Laís Barros Martins e Maíra Termero

Clarice Niskier está no teatro com a peça “A Alma Imoral” desde 2006. O monólogo é baseado no livro homônimo de Nilton Bonder e tem supervisão de direção de Amir Haddad

Uma atriz, um diretor de um grupo de teatro de bonecos e um coreógrafo de uma companhia de dança têm, em comum, um intenso trabalho intelectual e emocional para construir performances que encantem e envolvam o público. Os artistas Clarice Niskier (do monólogo “Alma Imoral”), Beto Andreetta (Pia Fraus) e Henrique Rodovalho (Quasar Companhia de Dança) desvelam suas formas diferentes de fazer arte, suas maneiras únicas de criar um espetáculo e a intensidade de cada um de seus passos rumo a um único destino: emocionar.

“O teatro é sempre um trabalho coletivo, mesmo quando você faz um monólogo. Não é um trabalho solitário. O que é solitário é a nossa condição humana. Eu tenho que estar sempre criando elos. Se a gente não entrar em comunhão, fica muito duro. Sinceramente, eu não compreendo este mundo. Não consigo entender como se chega a tanta destruição. Eu sinto em mim que tenho impulsos do mal, que também tenho impulsos agressivos, destrutivos, o que Freud fala da pulsão de morte. Está dentro de todos nós. Mas o grau a que se chega, pelo amor de Deus. Pelo amor de Deus.”

“O espetáculo nasce de uma ideia. Existe uma busca em mim, uma falta em mim. Desde que me entendo por gente, estou sempre buscando alguma coisa para poder me comunicar, para poder me expressar. Eu nunca estou satisfeita. Quero sempre dizer alguma coisa. E, depois que eu digo, sinto que tenho outra coisa pra dizer. E não fico quieta enquanto não consigo comunicar aquilo que vai dentro de mim e que, na realidade, não sei exatamente o que é. É uma inquietação. Uma necessidade de comunicar alguma coisa a alguém. Sempre.”

“Eu posso ser considerada uma atriz mais performática porque lido com um material que me dão, de roteiros teatrais, peças teatrais, de uma maneira muito livre. Quase autoral. Eu sou uma autora da minha performance. Eu faço um diálogo entre a minha performance e a dramaturgia do autor.”

“Sinto que uma performance foi boa quando eu vivenciei de verdade. Quando o meu mundo interno e o mundo externo estão em perfeita harmonia. Quando tudo o que eu estou falando, estou vivenciando de verdade, com brilho nos olhos. Sinto que a performance tem vários inimigos. Um deles é a ansiedade, outro é a vaidade. O outro é a insegurança, a falta de convicção naquilo que se está fazendo. Você não pode estar preocupado em agradar ou não agradar, em ser aprovado ou desaprovado. Tem que chegar e estar presente. Deixar que aquele fluxo interno se desenvolva junto com a plateia. Então, quando eu sinto que isso foi realizado na plenitude, vou para casa feliz. Ah, é um sonho.”

“Tinha uma dificuldade de ler quando criança. Eu queria ouvir. De noite, minha irmã me contava os volumes do Monteiro Lobato. Eu queria ouvir e depois contar o que aquilo me causou. Eu precisava contar para alguém, não só a história, mas as impressões.
O que aquilo moveu dentro de mim. Então eu acho que é assim que nasce a minha vontade de fazer minha peça. Eu leio um livro e preciso contar pra vocês o que ele me causou.”


Beto Andreetta é diretor do Pia Fraus, grupo que completa 30 anos de atividades com teatro baseado na linguagem do teatro de bonecos

“Pia Fraus é ‘uma mentira contada com boas intenções’. E o teatro é uma mentira. Toda arte é uma projeção, então não deixa de ser uma mentira. A arte é uma invenção da humanidade para tentar se entender um pouquinho melhor. Falta muito, mas algumas luzes sobre a alma humana já jogamos.”

“Com ‘Bichos do Brasil’, a vida da companhia mudou completamente. Montamos outros elencos e viramos uma companhia de repertório. Como artista no palco, minha performance não é boa. Meu talento está em ter ideias legais e conseguir realizá-las com um bom padrão. Eu me doo de outro jeito. Essa é a minha boa performance. Então, quanto mais eu realizo, melhor. E, hoje, tem dias em que o Pia Fraus está em sete lugares ao mesmo tempo.”

“Com 17 anos, vi Paulo Autran fazendo um solo. Quando acabou, tive uma iluminação de queeu queria fazer teatro, mas de outro tipo. Porque eu nunca vou fazer igual a ele. Foi um reconhecimento de talento. Esse talento aqui, essa naturalidade e essenaturalismo, eu não sei fazer. Por isso fui para essa linha mais lúdica, que é mais fácil – para mim.”

“Boa performance é quando você consegue ser competente. Se você é ator, tem que transmitir o que espera transmitir com intensidade. Eu tenho que ver em você verdade de intenção e domínio. Tenho que ver intensidade junto com técnica. O que eu vi ontem [na peça “A Velha”, com Baryshnikov e Willem Dafoe] é perfeito. Dois caras com técnica profunda e com amor profundo pelo que estão fazendo. É uma entrega profunda.”

“No teatro sem texto, você sugere, mas não é dono da conduta. O significado da palavra é muito mais preciso, de uma maneira geral. Sem texto, as interpretações são as mais variadas. Pessoas vêm narrando o que elas enxergaram e é uma delícia. Quando você entende outra coisa do que eu estou fazendo, mas no fundo é a mesma coisa: o mesmo significado, a mesma emoção.”

“ ‘O Vaqueiro e o Bicho Frouxo’ nasceu de uma maneira espontânea. Eu chegava da Bolívia e criei com a Doroty Marques, que queria fazer coisa pra criança, a primeira versão. Veio o Beto Lima com a experiência nordestina. Então, nasceu das experiências individuais com cultura popular. Em 1990, tivemos um assombramento com o ambiente do teatro de bonecos europeu. Os temas eram outros. Ficamos encantados. E fizemos ‘Olho da Rua’, dramaturgia nossa. Com cenas esparsas, bem sensorial. Era um bêbado que vimos numa rua. Um boneco que perdia a cabeça. Então, é assim que nasce. A vida te traz algumas coisas e você propõe algumas coisas para a vida.”


Henrique Rodovalho é coreógrafo, diretor artístico e sócio-fundador da
Quasar Companhia de Dança, grupo goiano de dança contemporânea criado em 1988

“A voz artística vai se construindo a partir de um tempo, longo ou não, mas que existe. Acompanhar, ter uma certa consciência sobre seu valor, sua qualidade, contribuem pra que a identidade se estabeleça. Identidade vem com o tempo. O bailarino, assim como a plateia, direta ou indiretamente, acaba absorvendo essa identidade.”

“Desde a estreia ao longo das apresentações, a performance vai se transformando, já que é uma obra viva, uma linguagem, e as pessoas vão se modificando, evoluindo. Faço questão disso, que ela se transforme, que dependa do tema e da relação com o público. Nos meus espetáculos, estou sempre, de alguma forma, pensando em modificações, renovações.”

“Pretendemos diminuir a distância entre a dança e as pessoas. Procuro estabelecer um mundo mais próximo, nunca gostei muito da ideia da dança ser algo mágico. A interação acaba sendo mais um instrumento para essa relação do meu trabalho com o público, uma relação mais direta.”

“Os processos de pesquisa e preparação são bastante específicos, diferenciados. Às vezes, começo com a parte teórica, explicando aos bailarinos o que pretendo, estabeleço uma troca para desenvolvermos juntos. É uma conversa mesmo, para levantar possibilidades, estudar caminhos, para então experimentar na prática os efeitos da coreografia. Concretamente,
as coreografias vão sendo elaboradas até o espetáculo final, por etapas.”

“A dança é uma arte com a particularidade de ser dividida. Desenvolver, criar em conjunto, pressupõe a existência da troca. É uma obra que será interpretada por outras pessoas, e todos devem ter consciência disso. Quando se trabalha em grupo há muita contribuição, a relação de envolvimento, de interação, beneficia a confluência de várias linguagens.”

“Para que uma performance seja boa no palco é preciso haver uma relação de saber o que está se dizendo e a qualidade disso. Uma coreografia pode tratar sobre qualquer assunto, tudo pode se transformar num ótimo espetáculo. São movimentos, ideias, ensaios até o acabamento no palco, com luz, figurino, plateia. Contribui muito acreditar naquilo que se faz, se envolver. A perfeição é muito relativa, a imperfeição também faz parte da nossa existência. Tem mais a ver com uma verdade que você propõe e que as pessoas acreditem.”