Sons do corpo | Revista Fleury Ed. 30

Entre palmas e batuques, ouvir um ao outro e buscar a comunhão. Conheça o trabalho do Grupo Barbatuques ao fazer música baseada em percussão corporal

Entre palmas e batuques, ouvir um ao outro e buscar a comunhão. Conheça o trabalho do Grupo Barbatuques ao fazer música baseada em percussão corporal
por Maíra Termero
fotos Flávio Santana

No grupo paulistano Barbatuques, cada músico leva seu corpo como instrumento. Cada um dos 15 integrantes com suas particularidades forma, no palco, o que se parece com uma complexa orquestra de instrumentos diversos – cada corpo produz, afinal, sons únicos. Mas é também como se fosse um grande coletivo de crianças brincando de bater palmas, estalar os dedos, batucar. São misturas como essa que dão o tom e a força do Barbatuques. Os músicos trazem uma bagagem de estudos musicais e buscas pessoais próprias. Todos eles têm projetos artísticos paralelos. A performance no palco conversa com o trabalho enquanto grupo de pesquisa em percussão corporal e também enquanto educadores. Uma atividade alimenta a outra.

Essa caminhada vem desde a fundação do Barbatuques, em 1995. A brincadeira de procurar sons no corpo começou com Fernando Barba e cativou amigos. Na faculdade de música da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), os sons ganharam ritmos e novas possibilidades Formado, Barba montou o Auê Núcleo de Ensino Musical, que oferecia oficinas de percussão corporal. Muitos dos atuais integrantes passaram por lá.

No Colégio Oswald de Andrade, em São Paulo, onde ensaiam duas vezes por semana, Barba contou a trajetória do Barbatuques e falou sobre sua vivência em busca de boas performances. Luciana Cestari e Giba Alves, a novata e o veterano no grupo, também dividiram conosco o olhar sobre a experiência de construir uma performance artística tão única.


Fernando Barba
Multi-instrumentista, compositor, arte-educador e diretor musical,fundou o Barbatuques em 1995


Fleury: Como o grupo se formou?
Fernando Barba: A história do Barbatuques começou não como um grupo fazendo performance, como show. Eu que encabecei essa ideia, apesar de sempre ter sido um trabalho coletivo também, de começar a procurar sons e ritmos no meu corpo, como uma brincadeira. O grupo mesmo se iniciou com uma formação de 11 pessoas, e começamos a ser convidados pelo músico Luiz Gaiotto para fazer números. Não era um show inteiro do Barbatuques. Mas já tinha a sensação de subir no palco, de tocar, e perceber uma identificação que o público criava. De ver as pessoas batucando no corpo. Já era um marco ver que esse tipo de prática e de pesquisa nos interessava muito. Era compensador quando a gente subia no palco e tocava. Parecia que era uma nova – e antiga – maneira de fazer música e que chamava muito a atenção do público.

FL: E como a linguagem do grupo evoluiu?
FB: Um marco importante foi a atuação da [diretora cênica] Deise Alves, que começou a fazer um trabalho cênico e nos ajudou a ter um aproveitamento no palco. Nós fazíamos apresentações em rodinha, numa meia lua, e já era muito legal. Mesmo parado, já é uma coreografia, porque já é uma dança, já é um movimento. Mas ela nos viu e tentou, de uma maneira muito respeitosa e aproveitando o que já era sugerido por nosso corpo, nos colocar no espaço. Junto com a pesquisa dos microfones do André Magalhães e com um desenho de luz da Miló Martins, a gente foi entrando nesse mundo profissional do espetáculo. Nós já estávamos como músicos, mas o Barbatuques é um grupo de música que tem um cuidado no palco como se fosse de teatro ou de dança.

FL: E na música?
FB: Desde o começo a gente se perguntava: “Será que o público vai aguentar?”. E isso era o estímulo pra gente pensar: agora vamos usar mais o pé, mais a voz, agora vamos fazer um solo, agora uma coisa com a plateia, agora uma coisa só da gente, aí figurino, a cena. Então, ao mesmo tempo que desenvolvemos esse lado artístico da performance, o lado educacional pedagógico também foi sendo desenvolvido da mesma maneira. Nós fazemos oficinas para crianças, empresas, grupos vocais e trabalhos com pessoas com deficiência, com alguma limitação motora ou mental. O corpo é uma coisa única sempre. Cada um tem um timbre de voz, por exemplo. Então, a gente parte do princípio de que todos têm limites e todos têm qualidades. Quando a gente trabalha com grupos específicos, sejam crianças, adultos, terceira idade, a gente tem só que sintonizar com aquele universo. O que dá para fazer? Dá para mexer o pé? Dá para usar voz? Sempre tem muita coisa a ser feita.

FL: Vocês incorporaram influências de fora do grupo?
FB: No começo, as músicas eram resultado das nossas pesquisas. Desenvolvendo técnicas com peito, estalo, palma, rosto, vinham ritmos, grooves, colagens e melodias. A partir do contato com o [músico] Stênio Mendes, a gente passou a incorporar mais a improvisação como uma criação. Diversos exercícios que nos faziam criar em grupo – ouvir o outro e encaixar o nosso som no outro – passaram a servir como base para criar uma música em cima. E depois o próprio palco passou a ser encarado como um lugar de composição, com a improvisação. Stênio virou um parceiro e nos trouxe um repertório de sons que a gente não sabia fazer. Tivemos muito a aprender, pesquisando e aos poucos desenvolvendo uma técnica mais diversa, usando todos as partes do corpo. Por fim, lá por 2005, ficamos amigos do Keith Terry, um músico norte-americano que tinha uma pesquisa sólida de percussão corporal e tinha essa noção do que tem ao redor do mundo. Apoiamos um sonho dele de desenvolver um festival internacional de música corporal. E isso realmente nos transformou.

FL: O que vocês buscam provocar no público?
FB: Uma espécie de comunhão, no sentido de quebrar essa quarta parede, de mostrar que eles estão juntos, que podem tocar. Que é simples, que eles podem fazer, que eles têm o instrumento. Todo mundo tem uma musicalidade instintiva. E também o lado do contato com o coletivo, do encontro. Porque a gente vive num mundo muito individualizado, então, quando tem um momento em que se pode sentir de novo esse ritual humano de estar num grupo, de estar numa roda, é uma bela compensação.

FL: O que é uma boa performance?
FB: Quando a gente está bem ensaiado, bem preparado tecnicamente no show, para poder brincar. Tudo isso é só um pré-requisito para você entrar com uma atitude de presença, de escuta do outro, e de uma vontade de comunicação com o público, de interação. E, pra gente, o erro faz parte. É poder estar lá se olhando, provocando o público, recebendo dele, e dentro da improvisação estar preparado para coisas que podem ser os deslizes, ou os erros, mas que isso traga uma emoção.

“Então, ao mesmo tempo que desenvolvemos esse lado artístico da performance,
o lado educacional pedagógico também foi sendo desenvolvido da mesma maneira”

Prestes a completar 20 anos, o grupo tem três CDs, o mais recente para o público infantil, “Tum Pá” (2012), além de “Corpo do Som” (2002) e “O seguinte é esse” (2005) e dos DVDs “Corpo do Som ao Vivo” (2007) e “Tum Pá ao Vivo”, recém lançado. O grupo também participou da trilha sonora dos filmes “Rio 2”, de Carlos Saldanha, e “O Menino e o Mundo”, de Alê Abreu. Enquanto isso, a técnica tem sido usada em escolas e empresas para atividades de desenvolvimento de criatividade, coordenação psicomotora e percepção corporal.

Giba alves
37 anos, é o veterano Músico do grupo desde a formação, Giba estudou bateria no Auê e participou dos primeiros batuques.


Fleury: Qual foi sua trajetória com o grupo?
Giba Alves: Estudo música desde os 9 anos. Fui alfabetizado musicalmente no Centro Livre de Aprendizagem Musical [CLAM]. Com 16 anos, conheci o Barba dentro de uma loja de piano que tinha na esquina da minha casa. A gente se trombou, conversamos e ele estava abrindo a Auê. Fui estudar bateria lá. E o Barbatuques era uma coisa que a gente fazia nos intervalos, na sala de café. Meu primeiro encantamento veio porque eu estudava bateria, mas não tinha uma. E tudo o que meu professor de bateria me ensinava na época, eu conseguia passar para o corpo. Depois, toda a minha formação musical foi em tempo real com eles. Tudo o que eu fiz, eu já estava com o grupo.

FL: O que é uma boa performance para você?
GA: Envolve a prontidão, a reciclagem da excelência técnica, precisão, concentração. E, ao mesmo tempo, certo despojamento. Para que, se alguma coisa der errado no caminho, você esteja presente o suficiente para tornar o erro parte do acerto.

FL: Como é ser o veterano do grupo?
GA: Quem chegou depois, eu já conhecia de longa data.
E você aprende com as pessoas novas. É sempre bom, pra mim, que estou há muito tempo, um olhar menos viciado que o meu. Às vezes a pessoa é mais nova no grupo, mas mais velha na música. Sempre tem troca. Não tem nenhum integrante que não tenha entrado e acrescentado alguma coisa que o grupo não tinha sem essa pessoa.

“Não tem nenhum integrante que não tenha entrado e acrescentado alguma coisa que o grupo não tinha sem essa pessoa”

Luciana cestari
42 anos, é a novata
De volta ao grupo em julho de 2011, Luciana chegou a fazer parte do Barbatuques em seu início.

Fleury: Como foi sua trajetória de idas e vindas com o grupo?
Luciana Cestari: Estudo música desde pequena: piano, violão, e sempre cantei bastante. E a minha história na música está muito ligada à história do Barbatuques, porque eu conheci o Barba muito cedo, quando era menina. Logo que eles abriram a escola de música, fui estudar canto lá. Eu participei desse processo de experimentação do grupo, quando o Stênio chegou. Quando fui ter filho, saí e fui trabalhar com a minha formação – eu estudei Ciências Sociais e Jornalismo. E sempre fiquei na dúvida se eu ia seguir a música. Até que decidi e fiz faculdade de música na Unesp. Há dois anos e meio, estava fazendo meu TCC e voltei a frequentar o grupo de estudos de percussão corporal que o Barba coordena. Substituí no show “Tum Pá”, e acabei voltando.

FL: Como a sua bagagem pessoal conversa com a do grupo?
LC: Eu tenho trazido um pouco da minha experiência com escrita, ajudando em um livro educacional. E o canto. O Barbatuques tem cada vez mais incluído o canto de uma forma bem presente nos shows e nos espetáculos.

FL: Como é ser a novata no grupo?
LC: É bacana. A gente sempre chega com dedos, apesar de conhecer todo mundo há muitos anos. Vai dando opiniões aos poucos. Se sentindo um peixe fora d’água por um tempo. Mas o grupo é muito receptivo e aberto. E democrático. As pessoas se respeitam muito. Se gostam muito. Nesse sentido, me senti bem recebida. Apesar de me sentir insegura se estou acertando, se estou correspondendo à expectativa. Será que estou errando? Será que estou fazendo boa performance no palco? Será que estou cantando direito?

FL: Quando você sente que a apresentação foi boa?
LC: Quando tudo funciona bem tecnicamente e a gente consegue se ouvir musicalmente, acho que a gente consegue essa mágica da música que toca o outro e a plateia devolve isso pra gente.