Com a diminuição da mortalidade relacionada à aids, outras causas de morbidade e mortalidade se tornaram relevantes em pacientes infectados pelo HIV. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, em 2030, as doenças cardiovasculares estarão entre as três principais causas de morte em indivíduos HIV positivos. Diversos fatores contribuem para o risco cardiovascular entre estes indivíduos, como o próprio vírus, a terapia antirretroviral (Tarv), o aparecimento de dislipidemia, o desenvolvimento de alterações do metabolismo da glicose, além dos hábitos de vida. Apesar da evolução do conhecimento nessa área, o aumento de risco cardiovascular entre os portadores do HIV não é explicado apenas pelos fatores enumerados, de modo que mecanismos ainda desconhecidos possivelmente estejam envolvidos.
O efeito direto do HIV, ou da flutuação da viremia, foi evidenciado pelo Strategies for Management of Antiretroviral Therapy Study Group (Smart). Este estudo mostrou aumento de 60% do risco relativo de eventos cardiovasculares em pacientes que interromperam a Tarv. Em outro estudo, Samaras e colaboradores (2008) demonstraram que pacientes HIV positivos apresentam um risco cardiovascular dobrado quando comparados a indivíduos sem infecção por esse vírus. Tal risco parece ser ainda maior em mulheres. Contudo, nem todos os estudos confirmam este achado, embora muitos deles apresentem limitações metodológicas. Quando se avaliou o aumento da espessura íntima média – marcador substituto de doença cardiovascular – os dados também foram controversos. A disfunção endotelial também foi investigada e se mostrou mais intensa em indivíduos portadores do HIV, positivamente associada à maior carga viral.
Se por um lado ainda é discutível o efeito direto do HIV sobre o risco cardiovascular, por outro, os efeitos da Tarv são mais conhecidos. Um estudo evidenciou aumento de 26% na taxa de infarto agudo do miocárdio (IAM) por ano de exposição aos antirretrovirais, o que faz com que esse tratamento, tanto prévio quanto atual, deva ser observado.
Diversos mecanismos podem explicar o papel da Tarv no aumento do risco cardiovascular: aumento da resistência periférica à insulina, alterações na distribuição de gordura corporal e dislipidemia.
A prevalência de hipercolesterolemia e hipertrigliceridemia em portadores do HIV é de 27% e 40%, respectivamente, enquanto na população não infectada a prevalência de dislipidemia de um modo geral é de 8% a 15%. Habitualmente, a dislipidemia associada ao HIV inclui baixos níveis de colesterol total, LDL, e HDL, além de níveis elevados de triglicérides. Contudo, o uso da Tarv, particularmente dos inibidores de protease, frequentemente se associa à elevação de LDL, e também de triglicérides, o que dobra o risco de doença arterial coronariana (DAC) nessa população, em comparação aos indivíduos HIV negativos.
Com base nesses dados, as Diretrizes Brasileiras sobre Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose (2007) recomendam a dosagem do dos lipídios séricos e a avaliação do risco cardiovascular pelo escore de Framingham em pacientes portadores do HIV antes do início da Tarv. Nos pacientes com indicação desse esquema terapêutico, recomenda-se a repetição do perfil lipídico em um mês após a sua introdução e a cada três meses.
A incidência de diabetes mellitus (DM) em pacientes em uso de Tarv varia de 5% a 10% e de intolerância a glicose, de 10% a 25%, principalmente entre os usuários de inibidores da protease.
Os inibidores da protease (IPs) induzem resistência à insulina in vitro e in vivo. Em voluntários sadios, a sensibilidade à insulina medida pelo clamp euglicêmico hiperinsulinêmico diminui em 30% após a administração de uma única dose do IP indinavir. Os mecanismos envolvidos possivelmente incluem alterações na sinalização pós-receptor de insulina, além de diminuição da translocação do GLUT4. O indinavir também é capaz de diminuir a diferenciação de pré-adipócitos em adipócitos, favorecendo a produção de adipocitocinas metabolicamente deletérias, como discutiremos adiante. Os IPs também diminuem a secreção de insulina em culturas de células, um efeito que pode ser mediado pela diminuição do GLUT2.
Os inibidores da transcriptase reversa análogos de nucleosídeos (ITRNs) também aumentam o risco de DM, devido a mecanismos ainda não completamente conhecidos, mas que possivelmente incluem toxicidade mitocondrial com alteração da relação ADP/ATP. A própria dislipidemia relacionada ao uso de antirretrovirais pode aumentar a resistência à insulina em virtude da lipotoxicidade, resultante do acúmulo intracelular de lipídios que alteram o metabolismo celular.
O tratamento antirretroviral aumenta em quatro vezes o risco de desenvolver DM. As principais alterações da composição corporal relacionadas à Tarv são a lipoatrofia periférica e a deposição de gordura abdominal. A diminuição do tecido celular subcutâneo está relacionada com aumento de pré-adipócitos, diminuição da produção de adiponectina (protetora) e aumento de interleucina-6, TNFα, interleucina-1b, substâncias pró-inflamatórias. Pacientes HIV positivos com lipoatrofia apresentam mais dislipidemia e resistência à insulina. O a lipo-hipertrofia abdominal com acúmulo visceral de gordura também está envolvida nessa disfunção.
Mesmo em conjunto, os fatores acima descritos não explicam completamente o aumento do risco cardiovascular na população vivendo com HIV. Outras teorias abordam o possível envolvimento de um estado crônico de hipercoagulação e/ou inflamação sistêmicas, condições já verificadas nesses indivíduos, e intensificadas naqueles com carga viral (CV) alta. A infecção pelo vírus da hepatite C (VHC), comorbidade frequente nessa população, também contribui para o aumento da incidência de DM, dislipidemia e, consequentemente, do risco cardiovascular.
A correta avaliação do risco cardiovascular e o tratamento dos fatores de risco são fundamentais. É interessante ressaltar que a prevalência do uso de tabaco entre pessoas infectadas por HIV é de 45% a 70%. A bupropiona, importante droga empregada no tratamento do tabagismo, interfere com a função do citocromo p450 e seu potencial de interação medicamentosa com os antirretrovirais deve ser levado em consideração.
Com o objetivo de estimar o risco cardiovascular, pode ser usado o escore de estratificação de risco de Framinghan, como dito anteriormente, a despeito de este ainda não ter sido adequadamente validado no contexto da infecção pelo HIV. Uma alternativa é o uso do D:A:D Five year estimate calculator (http://www.cphiv.dk/tools.aspx).
Para o tratamento das alterações metabólicas do paciente HIV positivo, as mudanças no esquema antirretroviral, introduzindo agentes terapêuticos com melhor perfil metabólico, devem ser consideradas, desde que não haja prejuízo para a supressão da replicação viral. A abordagem dos diversos fatores de risco cardiovascular deve seguir as mesmas recomendações existentes para a população geral, sem, no entanto, deixar de contemplar as possíveis interações medicamentosas.
A abordagem deve começar pela instituição de hábitos saudáveis de vida, com ênfase no controle do peso, na alimentação balanceada, na prática de atividade física e na cessação do tabagismo.
A despeito da importância da terapia comportamental, mesmo com a adesão a todas as medidas recomendadas, frequentemente esses pacientes necessitam de tratamento farmacológico hipolipemiante para atingir metas lipídicas adequadas (classe de recomendação IIa, nível de evidência C). Nesse contexto, a terapia deve seguir as recomendações gerais sugeridas pelo National Cholesterol Education Program, Adult Treatment Panel III (NCEP ATPIII), porém com algumas particularidades.
As estatinas continuam sendo a primeira escolha para o tratamento da dislipidemia nesses pacientes, porém a sinvastatina e a lovastatina devem ser evitadas, por compartilharem os mesmo sítios de metabolização hepática das drogas antirretrovirais. As interações dessas drogas na via do citocromo P3A4 pode elevar as concentrações séricas dessas estatinas e aumentar o risco de miopatia e de rabdomiólise. Embora o aumento dos níveis de atorvastatina também possa ocorrer, esse fármaco pode ser usado com cautela e em dose baixa. A rosuvastatina é também uma opção. Para pacientes que não toleram as estatinas, o ezetimibe é uma alternativa.
O uso de fibratos é geralmente recomendado para pacientes com hipertrigliceridemia de grau importante, para prevenir a pancreatite aguda. Os ácidos graxos do tipo ômega-3 também podem ser utilizados para reduzir os níveis de triglicérides. Por outro lado, as resinas ou sequestradores de ácidos biliares devem ser evitadas pelo possível efeito dessas drogas sobre a absorção dos antirretrovirais.
Para o DM, drogas sensibilizadoras de insulina devem ser a primeira escolha: metformina ou pioglitazona. As sulfonilureias podem ser usadas, com exceção da glibenclamida e da clorpropamida. A insulina também é uma opção. As demais drogas hipoglicemiantes também podem ser úteis, mas carecem de estudos específicos na população com HIV.
A dosagem da hemoglobina glicada pode ser prejudicada e subestimar a glicemia dos pacientes portadores do HIV, principalmente das mulheres. Este efeito, no entanto, parece não ser clinicamente significativo. A meta de hemoglobina glicada deve respeitar as diretrizes e ficar entre 6,5% e 7% para a maioria dos pacientes.
O aumento significativo da sobrevida dos pacientes infectados pelo HIV permitiu que outras doenças se tornassem relevantes nessa população. Destacam-se o diabetes mellitus e as doenças cardiovasculares. A identificação precoce destas condições, o manejo dos fatores de risco e o adequado tratamento medicamentoso são fundamentais para reduzir a sua morbimortalidade.
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*Sobre os autores:
Dr. Pedro Saddi é endocrinologista e médico do grupo de Gestão de Saúde Fleury.
Dra. Viviane Zorzanelli Rocha Giraldez é cardiologista e médica do Check-Up Fleury.
Positividade para o vírus chegou a 15% antes mesmo do fechamento de setembro.
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