O passo a passo para interpretar adequadamente um resultado de FAN e prosseguir – ou não – a investigação com testes específicos
ARQUIVO FLEURY
O passo a passo para interpretar adequadamente um resultado de FAN e prosseguir – ou não – a investigação com testes específicos
Por muito tempo, na história da Medicina, as doenças foram detectadas exclusivamente pelos dados clínicos, obtidos pela história e pelo exame físico. As especialidades em que as afecções se apresentam de maneira indefinida e com quadros superponíveis frequentemente enfrentavam dificuldades para obter um diagnóstico preciso.
Nesse contexto, a Reumatologia muito se beneficiou da evolução das técnicas laboratoriais, especialmente no estudo das doenças autoimunes sistêmicas. No entanto, o crescente avanço científico-metodológico trouxe alguns ensaios de alta sensibilidade e menor especificidade, como o utilizado na pesquisa de anticorpos contra antígenos celulares (FAN), um dos principais exames empregados na triagem dessas afecções, feito por imunofluorescência indireta (IFI) em células HEp-2 derivadas de carcinoma de epitélio humano.
Por se tratar de um teste muito sensível, mas pouco específico, existe uma constante discussão sobre a interpretação adequada de seus resultados, que tem de ser extremamente cautelosa. Mesmo porque um FAN positivo pode ocorrer em 13% a 20% da população geral. Ademais, encontram-se taxas ainda mais altas de positividade em doenças neoplásicas e infecciosas, bem como na vigência do uso de medicamentos.
Assim, para a valorização correta de um resultado positivo, é preciso cotejar com muito cuidado o contexto clínico e, muitas vezes, recorrer a testes complementares para verificar se a reatividade observada no FAN-HEp-2 corresponde ao autoanticorpo sugerido pelo padrão da IFI, que fornece uma razoável indicação da possível especificidade dos anticorpos detectados em função do alto grau de detalhamento citológico das células HEp-2, que exibem claramente o comportamento dos vários autoantígenos ao longo das fases do ciclo celular.
Na suspeita de doença mista do tecido conjuntivo ou de lúpus eritematoso sistêmico, por exemplo, um FAN negativo reduz muito a possibilidade desses diagnósticos. Já na hipótese de esclerose sistêmica, síndrome de Sjögren, polimiosite e dermatomiosite, um resultado negativo até as torna menos prováveis, mas não as exclui. Deve-se ter em mente que alguns autoanticorpos, como anti-SS-A/Ro, anti-Jo-1 e antiproteína P ribossomal, nem sempre positivam um teste de FAN, razão pela qual, diante de manifestações muito indicativas de autoimunidade, convém considerar a pesquisa específica desses marcadores.
O fato é que o FAN não se destina a determinar os autoanticorpos que estão na amostra, pois há exames específicos para esse fim. Entretanto, seu padrão de imunofluorescência pode indicar os autoanticorpos possivelmente presentes, auxiliando o clínico a prosseguir a investigação com testes adicionais, sempre com base no quadro clínico.
Além disso, há características intrínsecas do FAN que ajudam a diferenciar casos patológicos de achados não específicos, já que alguns padrões não se associam a doenças autoimunes sistêmicas, especialmente o nuclear pontilhado fino denso (PFD) em qualquer título. Em contrapartida, o encontro de um FAN em título moderado ou elevado com padrão nuclear homogêneo, nuclear pontilhado grosso, nucleolar ou centromérico indica alta possibilidade de afecção autoimune manifesta ou incipiente.
Anti-LEDGF: para afastar a hipótese de doença autoimune |
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O padrão PFD está fortemente associado à presença de anticorpos anti-LEDGF/p75, do inglês, lens epithelium derived growth fator. Diversas pesquisas, incluindo um grande estudo com casuística brasileira, demonstram que esses marcadores ocorrem predominantemente em indivíduos hígidos e em pacientes sem evidência de doenças reumáticas autoimunes. Portanto, o reconhecimento do PFD e de anti-LEDGF/p75 configura uma informação relevante para melhor ajuizamento de um resultado de FAN positivo. Afinal, mesmo em títulos altos, iguais ou superiores a 1/1.280, um FAN com padrão PFD sugere ausência de afecção autoimune. Uma vez que há subjetividade na definição do padrão de FAN, o Fleury desenvolveu um ensaio objetivo para a detecção de anticorpos anti-LEDGF/p75, que pode ser valioso não apenas para complementar um achado de FAN com padrão PFD, como também para diferenciá-lo de outros padrões assemelhados, como o pontilhado fino com placa metafásica corada. Padrão pontilhado fino denso ARQUIVO FLEURY |
Quando partir para os marcadores específicos
A depender do contexto clínico e do padrão de fluorescência de um FAN positivo, pode estar indicado o rastreamento de autoanticorpos específicos, fortemente associados a determinadas doenças autoimunes. Veja como utilizá-los em cada suspeita:
Anti-SS-A/Ro e anti-SS-B/La - Autoanticorpos anti-SS-A/Ro ocorrem em 35% dos indivíduos com LES e anti-SS-B/La, em 15% dos lúpicos, embora ambos sejam mais frequentes na síndrome de Sjögren. O anti-SS-A/Ro guarda também relação com a esclerose sistêmica, com a polimiosite e com a cirrose biliar primária. A pesquisa do anti-SS-A/Ro serve como recurso auxiliar na investigação de lúpus neonatal e em recém-nascido com bloqueio atrioventricular total. No teste de FAN, o anti-SS-A/Ro geralmente apresenta padrão nuclear fino característico.
Padrão nuclear pontilhado fino associado ao anti-SS-A/Ro
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Padrão nuclear pontilhado centromérico
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Padrão nuclear aglomerado, associado ao antifibrilarina
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Esclerose sistêmica
Anti-Scl-70 - Voltado contra a enzima DNA topoisomerase I, está presente em cerca de 20% a 30% dos pacientes com esclerodermia, sobretudo nos que têm a forma difusa da doença. O encontro do marcador ainda se relaciona com envolvimento visceral mais proeminente, sobretudo de pulmão e coração. O anti-Scl-70 corresponde a um padrão peculiar de FAN composto, no qual há coloração típica de cinco compartimentos celulares: núcleo, placa metafásica, região organizadora de nucléolos, nucléolos e citoplasma.
Anticentrômero - Indica as formas limitadas da esclerose sistêmica, especialmente a Crest. Contudo, aparece também na síndrome de Sjögren e na cirrose biliar primária, bem como em indivíduos com fenômeno de Raynaud isolado, embora ocasionalmente, quando pode sinalizar evolução para esclerose sistêmica. No FAN, mostra seu padrão de fluorescência específico.
Antifibrilarina - Principal componente proteico do complexo U3-RNP nucleolar, a fibrilarina participa do processamento de RNA ribossomal recém-transcrito. O anticorpo que se volta contra essa proteína é observado em 8% a 10% dos pacientes com esclerose sistêmica e associa-se a formas viscerais graves da doença, usualmente com envolvimento cardiopulmonar intenso. No teste de FAN, ocasiona um padrão característico, em que o nucléolo aparece corado de maneira grumosa e a placa metafásica evidencia delicada coloração pericromossômica.
Anti-Jo-1 - É observado em 30% dos indivíduos com polimiosite, notadamente nos que têm pneumopatia intersticial. Sua maior frequência se dá na síndrome antissintetase, definida pelo encontro de miopatia inflamatória, pneumopatia intersticial, poliartrite, fenômeno de Raynaud e erupção hiperceratótica e descamativa na palma das mãos e face lateral dos dedos (sinal clínico denominado “mão de mecânico”). Ocasionalmente, ocorre em pacientes com pneumopatia intersticial isolada, o que pode representar uma manifestação inicial da polimiosite.
Anti-Mi-2 - Está presente em até 20% dos casos de dermatomiosite, sendo considerado um marcador específico da doença. Ademais, está, de modo geral, associado a um quadro mais leve e com boa resposta ao tratamento.
Anti-RNP - Sua presença em altos títulos (>1/1.600), na ausência de outros autoanticorpos, associa-se particularmente à doença mista do tecido conjuntivo, mas esse marcador também aparece em pacientes com lúpus e esclerodermia.
Antiproteinase 3 - A proteinase 3 é uma proteína contra a qual reagem alguns dos autoanticorpos anticitoplasma de neutrófilos (ANCA). De modo característico, observa-se um padrão citoplasmático finamente pontilhado periférico à IFI, com acentuação da região central (c-ANCA). Pesquisado pela técnica imunoenzimática, o marcador costuma ser detectado em 80-90% dos portadores da forma sistêmica e ativa da granulomatose de Wegener. Seus níveis séricos podem refletir o grau de atividade da doença em alguns pacientes, mas não devem ser considerados um parâmetro absoluto. Convém combinar IFI e Elisa, pois 10-15% dos casos são positivos apenas pelo primeiro método e 5%, somente pelo segundo. Por outro lado, em pacientes com FAN positivo, o método imunoenzimático é o de escolha, já que a reação de imunofluorescência do FAN pode mascarar o reconhecimento dos padrões de ANCA.
Antimieloperoxidase (MPO) - Corresponde aos autoanticorpos anticitoplasma de neutrófilo com padrão perinuclear (p-ANCA) na IFI. Encontra-se em 50% dos casos de poliangiites microscópicas e glomerulonefrites rapidamente progressivas com crescentes, em 30-40% dos portadores de síndrome de Goodpasture e em 35% dos casos de síndrome de Churg-Strauss. Pode ainda aparecer na nefrite lúpica, na poliarterite nodosa, em síndromes vasculíticas induzidas por drogas e, raramente, na doença de Wegener. A investigação de MPO deve igualmente ser feita pela combinação de IFI com Elisa porque alguns soros reconhecem o antígeno em apenas um dos exames. O método enzimático é fundamental em casos com FAN positivo, que mascara a interpretação do teste de imunofluorescência. Convém ainda ficar atento a uma variante do padrão p-ANCA, denominada p-ANCA atípico, fortemente associada à hepatite autoimune tipo I, à retocolite ulcerativa e à colangite esclerosante primária.
Anti-RNA polimerase III (anti-RNA pol III) |
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Ocorrendo em 6% a 28% dos pacientes com esclerose sistêmica, mais em ocidentais do que em orientais, o anti-RNA pol III é um biomarcador específico dessa doença. Associa-se à forma difusa da afecção e pode se relacionar com sua atividade, sobretudo em relação ao envolvimento cutâneo e renal, embora também indique menor frequência e intensidade de comprometimento pulmonar e muscular. Níveis baixos podem ser observados em outras doenças autoimunes e mesmo em indivíduos normais, porém de modo mais raro. Um trabalho recente mostrou que a presença desse autoanticorpo condiz com o dobro de chance de neoplasia, em comparação com a dos anticorpos anticentrômero, com predomínio do surgimento do câncer durante os primeiros três anos da esclerose sistêmica. O padrão de imunofluorescência ao FAN sugere a ocorrência do RNA pol III, que é confirmada por imunoprecipitação ou por Elisa. Anticorpos anti-RNA polimerase III: imunofluorescência indireta em células HEp-2 demonstra padrão pontilhado fino no nucleoplasma, poupando os nucléolos e com alguns pontos isolados esparsos ARQUIVO FLEURY |
Glomerulopatias
Autoanticorpo contra o receptor da fosfolipase A2 (anti-PLA2R) |
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A glomerulonefrite membranosa primária (GNMP), ou idiopática, é uma das principais causas de síndrome nefrótica em adultos. Recentemente, demonstrou-se que essa condição tem etiologia autoimune, com participação de anticorpos contra o receptor da fosfolipase A2 (PLA2R), que estão presentes na superfície dos podócitos, localizados na face extracapilar da membrana basal glomerular. Na prática, o anti-PLA2R costuma ser encontrado em 50% a 70% dos pacientes com GNMP em atividade, tendo uma especificidade em torno de 97%. Ademais, seus níveis séricos relacionam-se com a atividade da glomerulonefrite e com a resposta ao tratamento, o que auxilia o monitoramento clínico dos pacientes. Altamente específico e sensível, o marcador pode ser detectado por Elisa com a proteína recombinante ou por imunofluorescência indireta em células HEK-293 transfectadas com o cDNA de PLA2R. |
Micrografia revela glomérulos afetados por glomerulonefrite
SPL DC/LATINSTOCK
Outros marcadores sorológicos de utilidade na investigação e no seguimento das glomerulopatias
Marcador sorológico | Condição clínica associada | Utilidade |
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Anti-DNA nativo | Nefrite lúpica | Diagnóstico e monitoramento |
Antinucleossomo | Nefrite lúpica | |
Antimembrana basal glomerular | Síndrome de Goodpasture | |
ANCA - Antiproteinase 3 - Antimieloperoxidase | Vasculites ANCA-mediadas Granulomatose de Wegener Glomerulonefrite (GN) rapidamente progressiva com crescentes Poliangiite microscópica GN pauci-imune | Principalmente diagnóstico, embora os níveis de antiproteinase 3 possam se correlacionar com a atividade da nefrite |
Crioglobulinas | GN associada a HCV e doenças linfoproliferativas | Diagnóstico |
Antiestreptolisina O | GN pós-estreptocócica | |
Anti-DNase B | ||
Complemento hemolítico total (CH50, C1q, C2, C3 e C4) | Várias GN por imunocomplexos | Monitoramento |
Avaliação funcional da via alternativa do complemento (AH50) | Síndrome hemolítico-urêmica e GNMP por fator C3 nefritogênico | Rastreamento diagnóstico |
Assessoria Médica |
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Dr. Luis Eduardo Coelho Andrade [email protected] Dr. Sandro Félix Perazzio [email protected] |
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Avaliação complementar da análise histológica convencional de lesões pré-neoplásicas e neoplásicas.
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