Infecção congênita pelo citomegalovírus

Quando e como fazer o rastreamento durante a gravidez

Quando e como fazer o rastreamento durante a gravidez e qual a conduta na gestante e no recém-nascido com suspeita ou confirmação do quadro.

O citomegalovírus (CMV) é um vírus DNA de dupla fita, pertencente à família Herpesviridae e considerado a etiologia mais comum de infecção congênita em todo o mundo. Como outros agentes dessa família, o CMV entra em estado de latência intracelular após o fim da fase aguda da doença e pode ser subsequentemente reativado em condições fisiológicas, como a gestação, ou patológicas.

Na forma adquirida, a transmissão ocorre por via respiratória (gotículas), por contato com saliva, urina, fezes e fômites, por via sexual e, eventualmente, por meio de transplante de órgãos e transfusão sanguínea. A infecção primária pode ser assintomática ou cursar com sintomas inespecíficos como febre, dor de garganta, adenomegalia e, algumas vezes, exantema; nesses casos, o período de incubação varia de 21 a 31 dias.

Já a forma congênita ocorre quando a transmissão se dá por via transplacentária, seja decorrente da infecção primária adquirida pela mãe durante a gestação, seja como consequência de infecção não primária, isto é, por reativação do vírus latente ou reinfecção por uma cepa exógena do vírus, em gestantes previamente infectadas e reagentes para IgG específica.

Epidemiologia

A soroprevalência da infecção pelo CMV, definida pela presença de anticorpos IgG específicos, é maior nos países em desenvolvimento (superior a 90%) em comparação aos desenvolvidos (de 50% a 60%). No Brasil, estudos recentes demonstraram IgG contra CMV reagente em 95% a 98% das gestantes testadas. Pode haver, entretanto, heterogeneidade entre diferentes segmentos socioeconômicos de uma mesma população. No Grupo Fleury, a proporção de resultados reagentes entre mulheres de 18 a 45 anos foi de 77,6% nos últimos cinco anos.

O risco de transmissão maternofetal do CMV é maior como consequência de infecção primária adquirida durante a gestação e gira em torno de 30%, sendo progressivo à medida que a idade gestacional avança e a placenta se torna mais permeável. As taxas de transmissão são notavelmente consistentes entre numerosos estudos, variando de 30% a 40%, de 40% a 45% e de 60% a 70% para o primeiro, segundo e terceiro trimestres, respectivamente.

Para infecções pré-concepcionais (entre 1 e 12 semanas antes do último período menstrual) e periconcepcionais (uma semana antes a cinco semanas após o último período menstrual), o risco de transmissão do CMV alcança cerca de 5-10% e 20-30%, respectivamente.

As infecções não primárias, por sua vez, representam um risco de transmissão em torno de 1,5%, não sendo possível a estratificação por trimestre, dada a dificuldade em determinar o momento exato da reativação ou reinfecção. Contudo, são relevantes epidemiologicamente por responderem pela maioria dos casos de infecção congênita nas regiões de alta soroprevalência, onde a maior parte das mulheres atinge a idade fértil já tendo sido exposta anteriormente à primoinfecção.

Rotina sorológica

Na maioria dos países desenvolvidos, a sorologia de rotina para a infecção por CMV não é recomendada. Em nosso meio, embora as taxas elevadas de soroprevalência em mulheres em idade fértil tornem discutível o rastreamento rotineiro, vários protocolos de acompanhamento pré-natal incluem exames sorológicos para CMV. Na prática, para as pacientes cujos obstetras optem por esse rastreio, preconiza-se a pesquisa de IgG e IgM específicas em alguns momentos predeterminados.

Quando há um resultado reagente de IgM sem que tenha sido documentado o momento da soroconversão, o teste de avidez da IgG pode ajudar a estimar quando a infecção ocorreu. Essa pesquisa avalia a afinidade entre o anticorpo e seu antígeno específico, que aumenta à medida que a produção da imunoglobulina específica amadurece no decorrer do tempo, a partir da primoinfecção. Desse modo, a presença de alta avidez permite inferir se o episódio se deu há mais de 12 semanas, enquanto a baixa avidez sugere episódio mais recente, em geral há menos de três meses. Vale ressaltar que se trata de uma estimativa, já que existem fatores individuais que podem interferir na maturação da IgG, e que os valores de corte a partir dos quais se considera a avidez alta ou baixa variam conforme a técnica padronizada em cada laboratório. O que realmente define a infecção primária é a documentação de soroconversão de IgG nas gestantes anteriormente soronegativas. A presença de IgG de alta avidez no primeiro trimestre exclui a possibilidade de uma primoinfecção periconcepcional ou durante a gravidez, mas não uma infecção não primária a qualquer momento.

Quando rastrear?

  • Durante o planejamento da gestação, idealmente, para determinar o status sorológico pré-concepcional e avaliar os riscos;
  • Na primeira consulta de pré-natal;
  • Entre 13 e 14 semanas de idade gestacional, para aquelas com IgG não reagente na primeira consulta;
  • A qualquer momento subsequente, particularizado conforme o risco epidemiológico da gestante ou se houver sintomas inespecíficos de infecção.

Medidas profiláticas

Para a prevenção primária da infecção por CMV, recomenda-se orientar todas as gestantes não imunes (IgG não reagente) e, principalmente, aquelas consideradas de maior risco epidemiológico para a infecção – por exemplo, não imunes com filhos que frequentam a educação infantil ou que trabalhem nesse ambiente, já que 50% dessas crianças excretam o vírus na saliva e na urina – sobre as medidas higienodietéticas.

A correta orientação e a adoção de tais estratégias podem reduzir a taxa de soroconversão em cerca de seis vezes. Para a infecção não primária, essas medidas têm potencial de diminuir o risco de reinfecção.

Medidas higienodietéticas contra a infecção por CMV

  • Evitar contato direto com saliva ou urina de crianças pequenas.
  • Não compartilhar pratos, copos e talheres.
  • Não beijar crianças diretamente nos lábios.
  • Lavar as mãos após contato com urina ou saliva.

Confirmação diagnóstica pré-natal

A ultrassonografia exibe valor preditivo positivo para o diagnóstico de infecção fetal por CMV ao redor de 35%, sendo os principais achados as calcificações intracranianas, a microcefalia e o intestino hiperecogênico.

Achados ultrassonográficos sugestivos de infecção congênita pelo CMV: 

  • Calcificações placentárias ou placentomegalia
  • Restrição de crescimento fetal
  • Oligoâmnio/polidrâmnio
  • Ventriculomegalia cerebral
  • Ventriculite
  • Cistos porencefálicos periventriculares
  • Microcefalia
  • Calcificações intracranianas
  • Alterações cerebelares
  • Cistos subependimários
  • Vasculopatia do leucoestriado
  • Sinéquias intraventriculares
  • Ascite/efusão pleural
  • Hidropsia fetal
  • Intestino hiperecogênico
  • Calcificações hepáticas
  • Efusão pericárdica
  • Cardiomiopatia
  • Alterações oculares
  • Rins hiperecogênicos
  • Hepatomegalia

Quando há suspeita ultrassonográfica de comprometimento fetal e não é possível determinar o momento da infecção primária pela sorologia ou mesmo descartar a infecção não primária, está indicada a amniocentese para a pesquisa do CMV no líquido amniótico por meio de técnicas moleculares, em especial a reação em cadeia da polimerase (PCR, na sigla em inglês).

A sensibilidade da pesquisa do DNA de CMV no líquido amniótico para o diagnóstico pré-natal de infecção congênita pode chegar a 90%, embora seja influenciada por diversos
fatores. O teste é mais sensível e, consequentemente, exibe mais alto valor preditivo negativo quando a amniocentese é realizada com, pelo menos, 21 semanas de gravidez, ocasião em que o estabelecimento da diurese fetal determina a excreção de altas cargas virais no líquido amniótico, e ao menos entre 6 a 8 semanas depois do início estimado da infecção materna, período mais provável para o feto infectado já ter iniciado essa excreção. Vale salientar que, nos casos com DNA indetectável no líquido amniótico, o seguimento ultrassonográfico deve ser particularizado, considerando que não está excluída a possibilidade de transmissão com a evolução da gestação, após o procedimento, ainda que seja instituída profilaxia com antiviral.

A pesquisa do DNA do CMV no sangue materno tem pouca utilidade diagnóstica no contexto da infecção congênita. Embora possa confirmar o diagnóstico caso o DNA seja detectável, um resultado negativo não afasta a hipótese de infecção materna ou fetal. Em geral, no momento em que a mãe apresenta sorologia reagente e/ou estão presentes sinais ultrassonográficos de infecção fetal, a viremia já não ocorre e o DNA do CMV não pode mais ser detectado.

Tratamento

Nos casos de infecção recente diagnosticada no primeiro trimestre, com IgM e IgG reagentes, com baixa avidez de IgG ou soroconversão documentada durante a gestação, o uso de valaciclovir 2g, quatro vezes ao dia (total de 8g/dia), é recomendado para a prevenção da transmissão vertical.

Com 21 semanas de gestação, se a PCR do líquido amniótico obtida por amniocentese for negativa, o valaciclovir pode ser descontinuado. Caso a PCR seja positiva, pode haver benefício em manter o antiviral até o termo.

Na presença de sinais ultrassonográficos de infecção fetal no pré-natal, o tratamento com valaciclovir tem sido recomendado por alguns centros para reduzir o risco de sintomas neonatais. Nessa situação, a indicação terapêutica deve ser feita de acordo com a individualização de cada caso.

Avaliação do RN de mãe com soroconversão

A proporção de recém-nascidos (RN) sintomáticos entre aqueles com infecção congênita por CMV confirmada varia de acordo com a soroprevalência local, mas possivelmente é afetada por outros fatores coletivos e individuais. Estudos realizados em países onde a soroprevalência em gestantes foi superior a 90%, e que rastrearam mais de 1.000 bebês com PCR na urina ou saliva, constataram prevalência de infecção congênita de 3 a 61 por 1.000 RN, além de uma proporção de sintomáticos entre 0% e 23%. No Brasil, um grande estudo que rastreou mais de 24.000 RN encontrou soroprevalência entre as gestantes testadas, prevalência de infecção congênita e proporção de sintomáticos ao nascer de 96,7%, 8/1.000 e 11,1%, respectivamente.

O método preferencial para o diagnóstico neonatal de infecção congênita por CMV é a detecção de DNA por PCR na urina – exame mais amplamente disponível em nosso meio – ou na saliva, dentro das primeiras três semanas de vida. Essa investigação é mandatória em todos os bebês com exposição intrauterina ao CMV suspeita ou diagnosticada. Nos casos confirmados, estão indicadas avaliações auditiva, oftalmológica e de imagem do sistema nervoso central por ultrassonografia ou tomografia. A sorologia do RN contribui pouco para o diagnóstico, visto que a IgG pode ser derivada de transferência passiva materna e a IgM tem sensibilidade inferior, além de existir a possibilidade de decaimento dependente do momento da gestação em que a transmissão ocorreu.

Quanto às sequelas em longo prazo, o déficit auditivo neurossensorial é o mais
comum e passível de detecção ainda no período neonatal ou mais tardiamente, na infância. De qualquer modo, ocorre com mais frequência entre os bebês sintomáticos (de 20% a 65%) do que nos assintomáticos ao nascer (de 5% a 25%), embora possa ser desenvolvido por ambos os grupos posteriormente, razão pela qual se recomenda a manutenção do monitoramento auditivo para esses RN. Vale ressaltar que a sequela auditiva pode surgir em crianças com infecção congênita decorrente tanto de infecção primária quanto não primária e independe da gravidade dos sintomas apresentados ao nascer. Por outro lado, tem maior incidência nas crianças infectadas durante o primeiro trimestre de gestação.

Consultoria médica

Dra. Carolina Lázari
Consultora médica em Infectologia
[email protected] 

Dr. Celso Granato
Consultor médico em Infectologia
[email protected] 

Dra. Joelma Queiroz Andrade
Consultora médica em Medicina Fetal
[email protected] 

Dra. Luciana Carla Longo e Pereira
Consultora médica em Medicina Fetal
[email protected] 

Dr. Mário H. Burlacchini de Carvalho
Consultor médico em Medicina Fetal
[email protected] 

Referências bibliográficas
• Mussi-Pinhata MM, Yamamoto AY, Aragon DC, Duarte G, Fowler KB, Boppana S, Britt WJ. Seroconversion for Cytomegalovirus Infection During Pregnancy and
Fetal Infection in a Highly Seropositive Population: “The BraCHS Study”. J Infect Dis. 2018 Sep 8;218(8):1200-1204. doi: 10.1093/infdis/jiy321. PMID: 29868783; PMCID: PMC6129109.
• Costa GB, de Oliveira MC, Gadelha SR, Albuquerque GR, Teixeira M, Raiol MR da S, Sousa SMB, Marin LJ (2018) Infectious diseases during pregnancy in Brazil: seroprevalence and risk factors. J Infect Dev Ctries 12:657–665. doi: 10.3855/ jidc.9492