Amigo ou inimigo | Revista Fleury Ed. 23

Imagine se seu corpo começasse, de forma oculta, lenta e gradual, a se autossabotar. Se, inesperadamente, ele passasse a agredir suas próprias estruturas, confundindo células, tecidos e órgãos com perigosos invasores que devem ser combatidos a todo custo.

Imagine se seu corpo começasse, de forma oculta, lenta e gradual, a se autossabotar. Se, inesperadamente, ele passasse a agredir suas próprias estruturas, confundindo células, tecidos e órgãos com perigosos invasores que devem ser combatidos a todo custo. Essa guerra pode parecer impossível e distante da realidade, mas é exatamente o que acontece no organismo de quem é portador de doenças autoimunes, que afetam cerca de 7% da população mundial.

A medicina já catalogou mais de 30 doenças autoimunes. “O sistema imune reage contra tecidos e órgãos do próprio indivíduo sem que haja uma infecção ou um agente estranho ao organismo, como vírus ou bactérias”, explica Luis Eduardo Coelho Andrade, assessor médico em Reumatologia e Imunologia do Fleury Medicina Diagnóstica. Segundo o médico, as doenças autoimunes podem ser classificadas como localizadas, sistêmicas ou intermediárias. No primeiro caso, atingem uma região restrita do corpo – caso de diabetes mellitus tipo I, vitiligo, miastenia gravis e tiroidite. As enfermidades sistêmicas comprometem diversos órgãos e tecidos – lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide, polimiosite e esclerodermia são os principais exemplos. Hepatites autoimunes, doença celíaca e cirrose biliar primária são consideradas intermediárias.

Causas

As principais vítimas das doenças autoimunes são mulheres em idade fértil. Em menor frequência, também atingem homens, crianças e idosos. As causas definitivas ainda são um mistério para a medicina, mas os especialistas chegaram a um ponto em comum: a autoimunidade tem um componente genético. “Algumas pessoas têm certa predisposição genética, mas isso não quer dizer que irão desenvolver inexoravelmente uma doença autoimune; é preciso que haja a interação de elementos ambientais com o terreno genético propício”, afirma Coelho Andrade.

Dessa forma, as doenças autoimunes podem ser desencadeadas pela combinação de fatores genéticos com influências externas – como o ambiente no qual se vive, estilo de vida, infecções, estresse e uso de medicamentos – ou internas, como anormalidades no órgão-alvo ou desregulação hormonal. “Para alguns indivíduos, a exposição ao tabaco pode aumentar a chance de desenvolver artrite reumatoide. Para outros, não. Em algumas mulheres, o uso de determinados contraceptivos pode favorecer o aparecimento de lúpus, o que não acontece em outras. Mas não há estudos conclusivos”, avisa.

Coelho Andrade lembra ainda que as emoções podem influenciar o funcionamento do sistema imunológico. “Uma pessoa com doença autoimune frequentemente piora em períodos de maior estresse, e tende a melhorar quando está tranquila e psicologamente equilibrada”, explica.

Diagnóstico e tratamento

Ao ser diagnosticado com uma doença autoimune, o mais importante é que o paciente mantenha a calma. Afinal, apesar de ainda não terem cura, os tratamentos são eficazes, sobretudo se a enfermidade for descoberta precocemente. Muitas vezes, os sinais podem ser confundidos com os de uma doença comum – fraqueza no corpo, cansaço, perda de peso e de memória, anemia, náusea e diarreia. Quando não regridem espontaneamente ou com o tratamento habitual, o paciente deve fazer exames laboratoriais específicos, pois os exames de rotina não são suficientes para confirmar uma doença autoimune. “É fundamental que um médico treinado para o diagnóstico dessas enfermidades faça a integração das manifestações clínicas, como sintomas e alterações físicas, e de exames laboratoriais específicos”, alerta.

O tratamento das doenças autoimunes não é padronizado, mas obedece às particularidades do paciente. “Antes de tudo, o paciente precisa ser cuidadosamente supervisionado por um médico, que progressivamente vai conhecendo a fundo a doença e seus efeitos naquele paciente”, avisa Coelho Andrade. “As doenças autoimunes variam muito entre si e de um doente para outro. Assim, para cada paciente, o médico recomendará um conjunto de medicamentos e de medidas gerais, no que diz respeito aos hábitos de vida, alimentação, atividade física e laboral”, explica.

Em alguns casos, os pacientes podem receber medicamentos imunossupressores, que combatem a influência do sistema imunológico sobre o organismo. É recomendado utilizar esses medicamentos com cautela e, sobretudo, sob supervisão médica. Isso porque o uso em excesso pode desencadear complicações graves. Também é possível tratar a doença com medicamentos que combatem alvos específicos do sistema imunológico, como citocinas, fatores de crescimento celular, receptores e coestimuladores. “Essa é uma área que está em crescimento e traz a promessa de terapêutica mais eficiente e menos perigosa para o paciente”, avalia o médico.