Árduos rascunhos | Revista Fleury Ed. 32

Quer escrever um conto, arriscar uma crônica, mergulhar na criação de um romance? Os escritores Xico Sá e Ivana Arruda Leite lembram: o processo criativo envolve pouco bem-bom e muito trabalho

Quer escrever um conto, arriscar uma crônica, mergulhar na criação de um romance? Os escritores Xico Sá e Ivana Arruda Leite lembram: o processo criativo envolve pouco bem-bom e muito trabalho

Os escritores Ivana Arruda e Xico Sá
FOTO: EDSON KUMASAFOTO: DANIEL MARENC


Quem gosta muito de ler está sempre flertando com a ideia de se dedicar a seus próprios escritos e, quem sabe, um dia publicar um poema, um conto, uma crônica... Talvez até um romance? Algumas pessoas têm uma ideia na cabeça, mas não sabem por onde começar. Outras tentam desenrolar uma história, mas param por falta de inspiração. Mas será que basta estar inspirado para criar? Os bons textos surgem como resultado de uma vida tranquila à espera da criatividade?

Faça essas perguntas a qualquer escritor e a resposta será: não. O segredo, segundo eles, é não ficar parado esperando a inspiração chegar. Escrever é mais do que ser contemplado com uma ideia que naturalmente vira uma história. A literatura é um ofício como qualquer outro: um bom texto só nasce como fruto de muitas horas de trabalho por dia.

O processo de escrever se divide em duas etapas, segundo os autores. A primeira é a investigação de um tema para desenvolver; a segunda envolve redigir e revisar textos várias vezes até que a história pareça finalmente boa para ser lida pelos outros. A escritora Clarice Lispector resumiu bem esse trabalho: “anoto a qualquer hora do dia ou da noite coisas que me vêm. O que se chama inspiração, não é? Agora, quando estou no ato de concatenar as inspirações, aí sou obrigada a trabalhar diariamente”, disse a autora na última entrevista que concedeu, à TV Cultura.

“A literatura tem essa aura de ser resultado de um momento de iluminação, e os próprios autores alimentam esse mito. A minha produção é muito pé no chão”
Xico Sá

Essa inspiração, porém, não aparece magicamente. “A literatura tem essa aura de ser resultado de um momento de iluminação, e os próprios autores alimentam esse mito. A minha produção é muito pé no chão”, afirma o cronista Xico Sá, que tem 12 livros publicados, o mais recente deles “O Livro das Mulheres Extraordinárias” (Ed. Três Estrelas). Ele busca ideias em várias fontes, como em conversas na mesa do bar, nas páginas de sua coleção de dicionários regionais e na leitura de seus autores favoritos. “Anoto tudo o que leio e ouço de bom. Outro dia, uma expressão dita por um amigo me deu uma ideia para um romance.” A paulista Ivana Arruda Leite, autora de 14 obras e que acaba de lançar “Cachorros”, de contos inéditos, e a antologia “Contos Reunidos” (ambos pela editora Demônio Negro), conta que quando percebe um tema rodeando insistentemente seus pensamentos, dedica dias a investigá-lo para amadurecer uma reflexão. “Se estou obcecada por algo, leio muito sobre isso. A munição do escritor é a leitura, não a contemplação”, afirma.

Em alguns momentos, porém, a mente parece mais uma folha em branco. Se o assunto rareia, Xico Sá sai literalmente à caça do que escrever. “A crônica só nasce da observação da vida alheia. Ando muito a pé e gosto de conversar com as pessoas, especialmente com garçons. Se não tenho um tema, saio para tomar um café e acabo me deparando com ele”, diz.

ESCREVE, REESCREVE

Com uma ideia em mente, chega a hora de escrever uma primeira versão. Alguns autores só sentam ao computador quando já têm toda a estrutura de uma obra pronta, mas Ivana prefere deixar espaço para mudar a narrativa conforme escreve. “Sei para onde vou, mas não faço um esquema. De repente, a história pode tomar um rumo que você não esperava”, conta. Em outras ocasiões, a ideia vem de uma vez – mas isso não significa que ela já nasça pronta. “Às vezes escrevo de uma levada e deixo dormir alguns dias para depois revisar”, comenta Xico Sá, que costuma dedicar seis horas por dia à escrita. Para ele, essa é a primeira das duas pequenas felicidades de ser um escritor: o momento em que frases encadeadas vêm à cabeça e fica claro o que se vai escrever, mesmo que o texto fique horrível. “É uma catarse, um momento muito animador. Nesse fluxo, muitas vezes acho que escrevi algo genial e depois descubro que o texto ainda precisa ser muito trabalhado para ser fluido e para expressar de maneira clara o que eu queria”, completa.

A próxima etapa é a de reescrever e revisar as primeiras ideias, um processo que vai além de apenas checar a ortografia e a gramática. Ivana, por exemplo, procura dar um tom uniforme à narrativa, o que requer ir e voltar ao mesmo texto várias vezes. “O primeiro jorro escrito está muito longe do que vai ser o texto final. A linguagem vai se formando conforme se avança. Não tem como escrever o primeiro parágrafo com a mesma voz do fim do livro, por isso a obra inteira vira um grande rascunho”, diz. Para ela, escrever um romance é um trabalho que leva mais de um ano – a autora dedica duas horas e meia por dia a fazer essa revisão. Preocupado com o ritmo das frases, Xico gosta de ler em voz alta o que escreve. “Também releio meus textos várias vezes para procurar palavras frouxas e diálogos fracos”, diz. “Uma palavra estranha desvia a atenção do leitor, atrapalha a fluidez da leitura”.

Durante esse processo, é muito verdadeira a máxima de que a prática leva à perfeição. Para Xico, a melhor maneira de se desenvolver como autor é exercitar a escrita todo dia, mas livremente, sem pensar em publicar. Ler com muita frequência é outro hábito considerado essencial pelos dois autores. “Conforme nos tornamos leitores mais ávidos, nosso estilo vai amadurecendo, a técnica vai mudando. No começo, você quer botar sua emoção pura no papel, como se fosse uma confissão. Mas, ao longo do tempo, a escrita transcende sua experiência pessoal e o autor aprende a criar um universo alheio, mais complexo”, diz Ivana.

O trabalho, no entanto, não termina quando a revisão chega ao ponto final. Ainda há uma derradeira tarefa: a de achar uma editora que publique sua obra. “É chato bater em tantas portas, e muito estressante ser recusado. Mas isso é natural e não deve desanimar ninguém, porque a resposta tem a ver com a estratégia da empresa naquele momento, e não necessariamente com a qualidade do seu livro”, diz Ivana. Quando dá certo, o escritor chega ao seu segundo momento de felicidade, segundo Xico. “É o maior prazer ver o texto publicado e sentir que ficou danado”, diz.

FOTO: EDSON KUMASAFOTO: DANIEL MARENCO

“O primeiro jorro escrito está muito longe do que vai ser o texto final. A linguagem vai se formando conforme se avança. Não tem como escrever o primeiro parágrafo com a mesma voz do fim do livro, por isso a obra inteira vira um grande rascunho”
Ivana Arruda Leite



DICAS DOS AUTORES PARA COMEÇAR A ESCREVER

Leve a leitura a sério: programe-se para ler ao menos um livro por mês e faça anotações sobre pontos da narrativa e do estilo do autor que mais chamarem sua atenção. “Quem não lê não forma juízo crítico para ser um bom escritor”, comenta Ivana Arruda Leite.

Leia uma crônica ou um conto e depois escreva sobre o mesmo tema; um exercício mais complexo para a inspiração é sair para dar uma volta, observar pessoas e depois escrever algo sobre essa experiência.

Escolha um gênero e escreva livremente, sem o compromisso de mostrar a alguém e sem a pressão de publicar. “Praticar sem pensar muito é um exercício que ajuda a escrever com mais naturalidade”, diz Xico Sá.

Para exercitar a criatividade, faça uma lista com dez palavras aleatórias e tente escrever um texto usando todas elas.