Comer é celebrar | Revista Fleury Ed. 32

Para a nutricionista Paola Altheia, mais do que contar calorias ou saber tudo sobre carboidratos, gorduras e proteínas, alimentar-se bem é uma história, uma manifestação cultural, é estar em harmonia com o próprio corpo

Para a nutricionista Paola Altheia, mais do que contar calorias ou saber tudo sobre carboidratos, gorduras e proteínas, alimentar-se bem é uma história, uma manifestação cultural, é estar em harmonia com o próprio corpo

“Precisamos fazer as pazes com a comida”, convoca a nutricionista Paola Altheia. Para ela, na tentativa de combater a obesidade, caímos em um cenário de hiperinformação e verdadeiro terrorismo nutricional. Parece um exagero? Pois repare se essa cena não parece familiar. Você sai para comer com amigos e, em pouco tempo, os assuntos na mesa deixam de ser as novidades de cada um, os pensamentos sobre a vida, e a conversa é tomada pelas receitas infalíveis para emagrecer ou para comer de maneira perfeitamente saudável. “Você está pondo açúcar no suco? Um veneno”, alguém diz. “E esse monte de carboidratos?” “Vou te ensinar a fazer um bolo sem farinha, sem açúcar, sem gordura, sem...” Até o bom e velho pãozinho já está na lista negra da patrulha alimentar. “Mas não existe alimentação perfeita”, avisa Paola, que milita pela volta de uma relação de prazer com a alimentação.

O cenário de terrorismo começa pela ideia de que há uma receita única para a alimentação saudável. “Comer bem pode ser comer um quilo de macarrão quando você é maratonista e pode ser tomar uma água de coco na beira da praia quando você está de férias”, diz. Não existe um conjunto de regras e técnicas que todas as pessoas possam seguir para comer bem, porque somos diversos. Somos jovens, adultos, idosos, atletas, obesos, homens, mulheres, em diferentes situações de vida.

Em vez de olhar para essa diversidade, estamos olhando para os alimentos, idolatrando alguns e criminalizando muitos outros. “As pessoas falam ‘ah, o açúcar é veneno, fast-food é veneno’ e eu respondo que veneno é chumbinho, cicuta, arsênico. O açúcar é uma substância que o corpo reconhece satisfatoriamente e não ocasiona a morte de ninguém. Então não é um veneno. Os alimentos não são vilões. Eles são simplesmente alimentos”, diz. Nessa tentativa de categorizar os alimentos entre “saudáveis” e “venenos”, as informações se confundem e se contradizem. Quem não se lembra do ovo, que já foi herói, vilão, depois foi absolvido e ainda hoje não se sabe bem qual é a dele? “É muito confuso, um caos. E a comunidade científica fica confusa também, porque há controvérsias, há linhas de pensamentos distintas”, explica Paola. Para ela, essa é a principal base do terrorismo nutricional. “Nós transformamos a comida em algo técnico, como se você só tivesse direito a uma alimentação saudável se dominasse todos os mistérios científicos em torno dela. A hiperinformação está deixando as pessoas desnorteadas.”

O QUE SÓ PARECE SAUDÁVEL

Enquanto se tenta combater problemas graves de saúde pública como a obesidade e a alta incidência de doenças crônicas, acaba-se agravando outros transtornos. “Eu vejo a preocupação com o emagrecimento, com a alimentação perfeita, com a tríade beleza, magreza e juventude, como um problema de saúde mental pública muito sério”, alerta. O barulho e a confusão de informações nas redes sociais colocam ainda mais lenha nessa fogueira. “Recebo uma enorme quantidade de e-mails falando sobre a influência negativa daqueles perfis que mostram o corpo perfeito, a vida perfeita, a alimentação perfeita. Muitos deles reproduzem, na verdade, uma ilusão que mistura beleza, magreza e saúde, três coisas completamente diferentes”, alerta. “Dizer que alguém é saudável porque é magro é desconhecimento, não se sabe se a pessoa tem triglicérides e colesterol em ordem, se tem anemia, carências nutricionais, se a saúde cardiovascular ou mental está boa.”

Os determinantes da saúde humana são mais complexos que a relação que temos, hoje, com a comida – funcional, científica, dicotômica, de “engorda ou emagrece”, “certo ou errado”, “pode ou não pode”. “Comida é celebração. E esse fator se perde quando a pessoa fica atrelada àquela ideia de dieta e, enquanto vai todo mundo comer pizza, ela aparece com um potinho de batata doce.”

DIETA FUNCIONA?

Quando confundimos magreza com saúde, as dietas “milagrosas” e restritivas ganham espaço facilmente. “É a receita do fracasso.” Paola compara os efeitos da dieta restritiva a uma situação em que é preciso prender a respiração. Você até consegue segurar, mas em algum momento algo em você vai te fazer puxar o ar. “São as reações do corpo em um cenário de privação. É muito cruel falar em força de vontade”, avalia.

Adotando dietas e alimentos da moda, buscando seus supostos benefícios, também esquecemos que comida é cultura. “E a cultura alimentar brasileira é muito rica. Temos alimentos excelentes. Mas fazemos pouco caso disso, adotando dietas que desrespeitam completamente as receitas de família, nossa cultura, nossa história”, lamenta Paola, que sai em defesa do pãozinho. “A sociedade ocidental está fundamentada no pão há milhares de anos. E, de repente, começam a falar que ele é terrível e que faz mal? E a questão cultural? E a questão afetiva? Acho difícil acreditar que um alimento que deu tão certo e trouxe o homem até aqui, de repente, faça mal. Sou a favor do pãozinho, sim.”

O SIMPLES É MAIS

Para Paola, falta simplificar. Todo o estresse em torno da comida só nos distancia de uma alimentação realmente saudável. “A gente fica super estressado e o corpo fica querendo juntar tecido adiposo a qualquer custo. Então a melhor coisa que você pode fazer é simplesmente relaxar. Deixar o seu corpo em paz. Fazer as pazes com a comida e com o corpo.” Aí a receita até parece simples: comer bem é comer quando se tem fome e não comer quando não se tem. “Eu sou nutricionista, mas não vou te dizer quantas colheres de arroz você tem que comer, porque você é dono da sua fome.” No contexto de vida urbana, nas agitações do cotidiano, deixamos de reparar em nossas sensações corporais. “Tem gente que não sente mais os pés no chão quando está de pé. E é o corpo que sabe o volume, a qualidade e até os alimentos específicos de que precisamos”, garante. Sabe aquela súbita vontade louca de comer um doce? Não quer dizer que você precisa sair correndo e comer um. “Essa vontade pode vir porque a pessoa está deprimida e o doce vai ajudar o corpo a produzir neurotransmissores que vão te deixar mais contente. Mas os mesmos neurotransmissores podem ser produzidos com atividade física”, explica. “A gente precisa aprender a observar e então vai saber quando a fome é fisiológica e quando é uma fome emocional, controlando melhor nossa alimentação”, ensina.

“Nós podemos simplificar as coisas. Comida fresca, boa saudável, caseira, comida feita por nós. Vá para a cozinha e faça as comidas que nós sempre fazemos. Se alimentar não deveria ser uma coisa assim tão complicada.”


Paola Altheia
é nutricionista e mantém o blog “Não sou exposição – imagem não determina valor”, onde questiona nossa relação com a comida, com o corpo e com os padrões de beleza.