Doação de vida | Revista Fleury Ed. 29

Pessoas que doaram órgãos e tecidos contam a experiência transformadora de compartilhar algo tão fundamental

Pessoas que doaram órgãos e tecidos contam a experiência transformadora de compartilhar algo tão fundamental
Por Maíra Termero

“Doem por amor e não pela dor”

Essa é a mensagem que Suely Walton costuma deixar nas palestras que faz em campanhas para angariar novos doadores de medula óssea. Ela foi uma das primeiras pessoas a se cadastrar no Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea (Redome), assim que soube de sua abertura, em 1992, no Hospital das Clínicas (HC), em São Paulo.

“O banco tinha três mil cadastros”, lembra. No HC, uma série de exames comprovou que Suely estava em perfeito estado de saúde e era 100% compatível com a receptora, que iniciaria a quimioterapia preparatória para o transplante. “Foi quando meu marido enfartou no avião e foi para o hospital”, conta Suely. “Eu falei para o médico: ‘mesmo ele estando assim, eu quero fazer a doação’.” A equipe médica decidiu esperar por um mês. Do lado de lá, a família rezava pela melhora do marido de Suely. A receptora era Alline, uma menina de 11 anos com Anemia de Fanconi, que não tinha familiares compatíveis.

Suely foi para o HC no dia seguinte à alta do marido. Ficou por dois dias no hospital e passou por cinco horas de coleta, por aférese. Elas ainda não se conheciam, mas puderam trocar mensagens e presentes, com ajuda da assistente social, usando apelidos. Suely e Alline só se encontraram um ano depois. “Acharam por bem a gente se conhecer, porque o banco no HC seria fechado.” Os médicos e as assistentes sociais organizaram o encontro em um restaurante. “Foi muito emocionante. Ela era pequena... Agora casou e está grávida”, conta Suely. Elas viraram amigas desde então e vão juntas a palestras e campanhas.

Apesar de Suely e Alline terem se conhecido, o artigo 18 da Lei nº 8.489 (18 de novembro de 1992) garante a preservação do anonimato a doadores e receptores no caso de doação em vida.

Em vida, é possível doar medula óssea, rim, fígado, pâncreas e até pulmão
Em 2000, Suely foi chamada novamente – caso único no país. Dessa vez, o procedimento foi por punção e o receptor era Jorge, de 29 anos. Eles só foram se conhecer em 2012, homenageados em um evento do Redome. “Em toda campanha que eu fazia, sempre falava que meu sonho era conhecer o segundo receptor. Só soube lá, na hora. É inexplicável a emoção”, diz. “Fui abençoada. Perdi dois irmãos e pude doar duas vidas”, diz Suely, que já havia perdido outro irmão por um infarto. Hoje, aos 62 anos, ela diz que faria de novo, se pudesse – aos 55, o doador é retirado da lista. “Fazer uma doação é uma prova de amor incondicional. Não é um amor materno, da barriga. É de alma.”

Vontade de ajudar

Entre as doações de órgãos em vida – é possível doar um rim e parte do fígado, do pâncreas ou do pulmão –, o mais comum é que sejam feitas entre parentes. O eletricista Sandy dos Santos Carvalho, de 22 anos, doou mais da metade de seu fígado para seu concunhado, José Carlos, de 38 anos. Ele estava em tratamento para hepatite C há oito anos, até que os médicos informaram que o transplante seria necessário. Sandy decidiu se oferecer. “Tive vontade. E minha mãe, que é muito religiosa, me apoiou muito. Corria risco, mas é uma vida”, diz. A cirurgia foi feita em março deste ano e a recuperação dos dois segue bem. “Fui visitá-lo depois e ele estava melhor, chorando quando me via.” Sandy agora precisa seguir uma dieta sem gordura e sem álcool, até seu fígado se recuperar, por cerca de sete meses. “Só de ver a pessoa feliz, com a família, valeu a pena”, diz.


“Fazer uma doação é uma prova de amor incondicional. Não é um amor materno, da barriga. É de alma.” Suely Walton

A doação do rim, em vida, envolve uma cirurgia para a retirada de um órgão inteiro. A orientadora social Cátia Lopes dos Santos, de 37 anos, decidiu enfrentar os riscos e as dúvidas para salvar a vida de sua irmã Leila, de 41 anos. Após perder um filho, Leila descobriu que seus rins não estavam mais funcionais. Dali em diante, passou a depender da hemodiálise. “Ela ficou muito debilitada”, lembra Cátia, que foi visitá-la às pressas em Santa Catarina, junto de outros familiares. “Quando a vimos, parecia em estado terminal. Ela pesava 54 quilos e passou para 34 em um mês”, conta. Como boa parte da família também tem problemas renais, ninguém mais podia doar. “Falei: vou fazer os exames e doo.”

Leila preferia receber o órgão de um cadáver, para não prejudicar nenhum familiar, mas os médicos disseram que não era possível em seu caso. “Fiz todos os exames às pressas. Meu rim funcionava 100% e eu estava com a saúde perfeita. Eu estava apta para doar”, diz Cátia. “Liguei para a Leila e contei. Ela se emocionou bastante ao telefone. Disse: ‘Essa é a maior prova de amor que uma irmã daria para a outra. Eu não sei se eu faria igual’”, lembra Cátia. “Ela precisava mesmo, não poderia ter orgulho. Ela só precisava dizer sim. E disse.” Faltavam só os exames de Leila.

Era dezembro de 2013, quando a cirurgia foi agendada para 21 de fevereiro deste ano, no Hospital São José, em Joinville, com acompanhamento da Fundação Pró-Rim. “Fiquei insegura com o depois.” Essa seria sua primeira cirurgia e a única anestesia geral até então – suas duas filhas nasceram de parto normal. “Eu tinha medo de apagar e não acordar”, conta. Na manhã do dia 21, às 7h, as duas foram para a cirurgia, que correu bem. Elas ficaram no mesmo quarto. “Somos muito brincalhonas, e rir fazia doer os pontos. Esse era o nosso maior sofrimento”, conta Cátia.

Cátia ainda ficou no hospital até o dia 1º de março. Nesse período, as irmãs se aproximaram como nunca. “Conversamos bastante, nos unimos mais. Pedimos muito perdão, falamos muito da infância, da adolescência...” Cátia ainda precisa tomar uma série de cuidados com alimentação. “Só nos primeiros meses. Depois, é vida normal”, diz. A compensação, para Cátia, veio já no primeiro dia após a operação, quando viu Leila beber um copo de água – antes, ela só podia tomar poucos goles por dia. “Valeu a pena. Isso não tem preço”, garante.

Como funciona a doação em vida
O procedimento mais simples é o de transplante de medula. Existe uma lista única de doadores, nacional, o Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea (Redome), instalado no Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). Para ser um doador, é preciso comparecer a um hemocentro, onde uma pequena quantidade de sangue (5 a 10 mil) é coletada para exame de compatibilidade. Quando um doador compatível não é encontrado em família, a busca é feita no Redome e, se necessário, em bancos internacionais. Em maio de 2013, havia 3,1 milhões de doadores inscritos nesse Registro, o que faz do Brasil o terceiro maior banco de dados do gênero no mundo, atrás dos Estados Unidos e Alemanha. Ainda assim, a chance de encontrar uma medula compatível é, em média, de uma em cem mil.

Quando há compatibilidade, o doador cadastrado é consultado para decidir se deseja mesmo fazer a doação. Se aceitar, a retirada de células é feita, preferencialmente em um hospital habilitado mais próximo ao doador. “Se for necessário, o doador viaja até o local do receptor, mas é tudo pago pelo governo. Às vezes, o médico é quem viaja atrás da bolsa para o paciente”, conta Alex Freire Sandes, assessor da Hematologia do Fleury. Existem duas formas de fazer a doação de medula óssea. No primeiro caso, o doador é anestesiado em centro cirúrgico e a medula é retirada do interior dos ossos da bacia por meio de punção com agulhas. O segundo procedimento chama-se aférese, quando o doador toma um medicamento que faz com que as células da medula óssea circulem na corrente sanguínea. Essas células são retiradas pelas veias do braço do doador, com o uso da máquina de aférese. A escolha do procedimento mais adequado é do médico. Não há sequelas. “Em dois a três dias, o organismo do doador já produz o que foi doado”, explica Sandes.

Tanto fígado como pâncreas e pulmão só podem ser doados de forma parcial. “O fígado se expande e compensa o que foi retirado. No caso do pulmão, o mais comum é vir de cadáver, inteiro”, diz Maria Carolina Tostes Pintão, assessora médica da Hemostasia do Fleury. Em 2013, enquanto 76 transplantes de pulmão foram feitos de doador falecido, apenas quatro foram de doador vivo no país. A doação do rim em vida passa por uma cirurgia em que o órgão é retirado por inteiro. “Por isso, geralmente ela é feita para um aparentado. Você não entra em uma lista de doação, como em medula, porque está se arriscando”, explica Maria Carolina. Em 2013, por exemplo, dos 1.373 transplantes feitos no país de doador vivo, 1.121 foram para um parente. A doação é possível porque temos dois rins. “Quando um é retirado, o outro dá conta de fazer todo o trabalho”, explica a hematologista. O risco está na cirurgia em si e na possibilidade de um problema futuro. “Caso o doador se torne hipertenso ou diabético, doenças que são desafiantes para os rins, você tem apenas um para suportar situações extremas”, esclarece Maria Carolina.