Elogio à preguiça | Revista Fleury Ed. 24

A tradição nos descreve o preguiçoso como uma figura detestável. Mas, ao acusá-lo de indolente, improdutivo, incompetente, nostálgico, melancólico, indiferente e lento, não se dá conta de que, na realidade, está fazendo um elogio.

Adauto Novaes
Jornalista e professor

A tradição nos descreve o preguiçoso como uma figura detestável. Mas, ao acusá-lo de indolente, improdutivo, incompetente, nostálgico, melancólico, indiferente e lento, não se dá conta de que, na realidade, está fazendo um elogio. É certo que o preguiçoso recusa o trabalho inútil e repetitivo e não quer contribuir para o mundo do “progresso”, que cria objetos admiráveis e indispensáveis, mas que nos deixa, como herança, neuroses, depressões, alienações, desastres, enfim, uma economia de guerra.

Na era do desenvolvimento científico e digital, máquinas “economizam” o trabalho mecânico, mas criam dois novos problemas: primeiro, uma espécie de intoxicação voluntária, isto é, “mais a máquina nos parece útil, mais ela nos torna incompletos”, nas palavras do poeta e ensaísta Paul Valéry.

O homem se entrega voluntariamente a um tempo que não é o da existência “de seus prazeres, desejos e de domínio do próprio corpo, mas a um tempo que é o da continuidade da produção e do lucro”, segundo Foucault. Objetos da especulação, os homens estão sempre ocupados. A reivindicação de tempo livre tornou-se quase que palavra de ordem subversiva: “preciso tanto de nada fazer que não me resta tempo para trabalhar”, conclama o pensador Pierre Reverdy. Daí decorre o segundo problema, bem mais complexo: nunca se trabalhou tanto e nunca se pensou tão pouco, as potências auxiliares mecânicas e digitais tendem a reduzir nossas forças de atenção e de capacidade de trabalho mental, o que produz novos fenômenos, como impaciência, velocidade e volatilidade nunca vistas. Como escreveu Paul Valéry, “adeus, trabalhos infinitamente lentos, catedrais de trezentos anos cujas construções intermináveis acomodavam curiosas variações e enriquecimentos sucessivos... Adeus, perfeições da linguagem, meditações literárias e buscas que tornavam as obras comparáveis, ao mesmo tempo, a objetos preciosos e instrumentos de precisão!”.

O preguiçoso é isso: dedica-se ao lento e permanente trabalho de criação de obras de arte e de pensamento. É por isso que ele presta um grande serviço e ajuda a responder a velha questão moral: “o que devo fazer?”. Dependendo da resposta, teremos diferentes definições do que seja o homem, a política, as crenças, o saber, nossa relação com o mundo e, principalmente, com o trabalho.