Mães especiais | Revista Fleury Ed. 25

Autoras do livro Maria de Rodas contam como é possível superar o desafio da paraplegia e viver uma vida plena, com trabalho, filhos e muito amor

"Autoras do livro Maria de Rodas contam como é possível superar o desafio da paraplegia e viver uma vida plena, com trabalho, filhos e muito amor

Imagina-se, conforme o senso comum, que a paraplegia é uma condição gravemente limitante, que impõe a seus portadores restrições sob todos os aspectos – não somente o físico, é claro, mas também o profissional, o emocional, o familiar e assim por diante. Nada mais distante dessa concepção, portanto, do que as histórias de Flávia Cintra, Tatiana Rolim e Carolina Ignarra. Embora uma lesão na medula tenha ocorrido na vida de cada uma dessas mulheres, o que de mais importante elas têm em comum é a visão dessa situação muito mais como um desafio do que como uma limitação. Prova disso é que elas trabalham (duro), têm filhos e encontraram força extra para escrever um livro em que contam suas aventuras, Maria de Rodas: delícias e desafios na maternidade de mulheres cadeirantes. A obra passeia por todas as dimensões de suas vidas, como saúde, autoestima, trabalho, família, amor, superação e, evidentemente, maternidade. É sobre isso que falam na entrevista a seguir Flávia – jornalista de 39 anos, mãe dos gêmeos Mateus e Mariana, de 4 anos –, Tatiana – psicóloga de 35, mãe de Maria Eduarda, de 1 ano e 11 meses – e Carolina – de 33 anos, consultora de inclusão de profissionais com deficiência no mercado de trabalho, mãe, de Clara, 7 anos.

FLEURY: Quais são os principais problemas de saúde enfrentados por mulheres cadeirantes?
FLÁVIA: A saúde da mulher com deficiência é um tema tão importante que ganhou um espaço especialmente dedicado ao assunto na convenção que garante os direitos das pessoas com deficiência, publicada pela ONU. Mulheres com deficiência têm os mesmos problemas das demais, além de algumas questões específicas. Por exemplo: uma mulher que anda em cadeira de rodas tem maior propensão a desenvolver infecções urinárias, que se tornam ainda mais proeminentes durante a gravidez. Essa é, portanto, uma questão que deve ser observada atentamente nas grávidas cadeirantes, pois a infecção urinária é uma das principais causas de aborto espontâneo, podendo gerar também outras complicações. Outra questão importante se deve ao fato de as cadeirantes ficarem sentadas o tempo todo. Com isso, existe a possibilidade de surgirem escaras, que são aqueles machucados provocados pela pressão constante numa região. Isso é também potencializado durante a gravidez, pois o peso da gestante aumenta todo mês. A questão da circulação sanguínea também exige atenção redobrada, porque o fato de você se mexer menos torna a circulação mais lenta. Em alguns casos, a gravidez pode aumentar, inclusive, as chances de desenvolver trombose.

FLEURY: Como lidar com esses problemas?
TATIANA: Esses problemas clínicos decorrentes da lesão medular, intensificados pelo período gestacional, podem ser minimizados. Para isso, é preciso orientação desde o primeiro momento após a lesão, o que inclui programas de reabilitação e informação a respeito da situação da cadeirante. No caso da gravidez, é fundamental o acompanhamento por um médico preparado, que monitore a evolução da gestação, conhecendo a fundo a situação da mulher. Procuramos falar sobre isso no livro.

FLEURY: Que médicos vocês visitam regularmente?
FLÁVIA: Essa rotina é muito particular. O fato de uma pessoa viver em uma cadeira de rodas não significa que ela vai cumprir o mesmo roteiro de outra nas mesmas condições. Depende muito do momento de vida e das necessidades de cada uma. Acho, contudo, que a maior parte das mulheres visita o ginecologista todo ano para fazer os exames de rotina. O fisioterapeuta é um profissional muito importante, especialmente logo após o acidente que leva à lesão. Depois, a cadeirante passa a conhecer tão bem o próprio corpo que nem sempre é necessária a visita constante ao fisioterapeuta. O mesmo vale para o psicólogo. Eu comecei a fazer terapia logo após o acidente que provocou minha lesão medular e segui com ele por dez anos. Nos primeiros meses, eu falava muito sobre a questão da deficiência. Em seguida, passei a tratar de outras questões que não tinham mais relação com o fato de não andar. Então, não tem um roteiro que toda cadeirante deva seguir. Isso depende das circunstâncias pelas quais passa cada pessoa.

FLEURY: Como se dá a superação para voltar à vida cotidiana após a lesão?
CAROLINA: Cada história é uma história. Tem gente que supera a deficiência rapidamente, enquanto outras pessoas demoram mais. No meu caso, foi rápido. Eu não cheguei a ficar triste pela minha condição. E a minha força era o que motivava minha família. Então, minha vida voltou a andar rapidamente: em três meses, voltei ao trabalho, o que ajuda muito, porque o trabalho traz as cobranças, mas também o reconhecimento. Logo depois, vieram meu marido e minha filha. Minha superação, digamos, foi muito rápida. Mas todos passam por situações de superação.

A diferença é que nossas histórias estão marcadas por cadeiras de rodas. Além disso, tomo muito cuidado ao falar em superação. Durante muito tempo, eu pensava que já tinha superado tudo, e precisava falar para todo mundo que estava bem assim. Finalmente, um dia, alguém me alertou que eu não precisava dizer aquilo. Então, percebi que, se eu precisava repetir aquilo a toda hora, não havia superado completamente. Hoje, digo o seguinte: eu superei o que aconteceu? Sim. Mas posso ficar triste e chorar quando não consigo caminhar com minha filha na areia da praia? Posso também. Superar o acidente e todas as limitações não significa que nunca mais eu possa me sentir triste.

FLEURY: Como manter a qualidade de vida?
FLÁVIA: (Risos!) É difícil! Eu tenho um emprego que não tem rotina definida, viajo o Brasil fazendo palestras sobre Maria de Rodas e tenho dois filhos pequenos. Eu vou ao médico quando dá, faço alongamento quando dá, como a maior parte das mulheres. Qualidade de vida, para mim, é saber que meus filhos estão bem, a casa está em ordem e as contas estão pagas. Nesse ponto, acho que nossa vida é muito parecida com a de outras mulheres que têm filhos e trabalham.

CAROLINA: As pessoas me perguntam como manter a qualidade de vida na nossa condição. Brincando, costumo dizer: não dou conta! Eu vivo me cobrando e achando que não dou conta. Vivo achando que não educo minha filha da melhor forma possível, ou que ela cometeu algum erro ou até tropeçou por minha culpa. Então, concluo que é mais difícil ser mãe do que ser cadeirante.
FLEURY: E o relacionamento amoroso, como mantê-lo?
CAROLINA: Minha vida com meu marido é igual à de qualquer outra mulher. Se tem louça para lavar, eu lavo. Se tem que fazer comida, eu faço. E meu marido também, é uma parceria. O namoro também acontece como com qualquer outro casal. Uma das coisas mais legais que meu marido disse sobre ter um relacionamento com uma mulher cadeirante é que tudo se passou de maneira natural: nós nos olhamos e o desejo surgiu. Foi assim que aconteceu. O nosso namoro aconteceu com desejo, com vontade de beijar, de abraçar, de ficar junto.

FLEURY: O que vocês aprenderam como cadeirantes? O que não sabiam antes?
TATIANA: Num primeiro momento, reconhecer-se como uma pessoa com deficiência não é agradável. Eu tinha uma vida muito ativa quando sofri o acidente que provocou a lesão, aos 17 anos. Depois da fase de muito choro, revolta e encontro comigo mesma, acho que retomei minha identidade. Hoje, não me vejo como uma pessoa nem melhor, nem pior, mas como uma mulher de 35 anos amadurecida pela minha história. Isso não provocou mudanças no meu caráter, mas me apresentou para a diversidade do mundo, pois eu não tinha contato com pessoas com deficiência. Isso para mim é um marco.

FLÁVIA: Gostaria de acrescentar uma ideia a isso. A deficiência é só mais uma característica, que uma pessoa pode ter ou não. Ela não define outras características pessoais. Tem gente que sofre um acidente e muda o jeito de ver a vida, aprende a se relacionar melhor com a limitação, fica mais generosa. Tem gente que se revolta e perde a vontade de viver. E tem gente que continua exatamente igual. Não é a deficiência que define isso, mas o jeito com que a pessoa lida com as dificuldades e usa ou não essa oportunidade de autoconhecimento. É importante deixar isso claro. Caso contrário, fica parecendo que todo mundo que anda de cadeiras de rodas tem asinhas nas costas e vira anjinho. Não! Tem bandido que anda de cadeira de rodas. E tem gente do bem. A deficiência é só mais uma característica.

""Todos passam por situações de superação. A diferença é que nossas histórias estãomarcadas por cadeiras de rodas."" Carolina Ignarra

Segundo Flávia Cintra, o fisioterapeuta exerce um papelmuito importante para garantir a saúde da mulher cadeirante

""A deficiência é só mais uma característica, que uma pessoa pode ter ou não. Ela não define outras características pessoais. Tem bandido que anda de cadeira de rodas e tem gente do bem."" Flávia Cintra

Tatiana Rolim afirma ter se reencontrado após o acidente que provocou sua lesão
""Não me vejo como uma pessoa nem melhor, nem pior, mas como uma mulher de 35 anos amadurecida pela minha história."" Tatiana Rolim