O corpo revelado | Revista Fleury Ed. 25

Veja como a evolução do diagnóstico por imagem mudou o jeito de se fazer medicina

Veja como a evolução do diagnóstico por imagem mudou o jeito de se fazer medicina

Era 1895 quando o físico alemão Wilhelm Roentgen descobriu os raios X. Enquanto investigava as propriedades dessa radiação, notou que o uso de diferentes materiais era capaz de alterar a maneira como os raios marcavam uma espécie de chapa fotográfica. Depois de testar vários objetos, Roentgen pediu à sua esposa que posicionasse a mão entre o tubo emissor dos raios e a chapa. A foto revelou a estrutura óssea da mão, e essa foi a primeira radiografia da história. “No começo, a notícia saía no jornal como curiosidade, informando que era possível ver o corpo humano por dentro. Depois começaram a ver que os raios X poderiam auxiliar a fazer diagnósticos e descobrir doenças”, conta a radiologista Claudia da Costa Leite, chefe do Departamento de Radiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Uma nova era do diagnóstico, baseado em imagens, iniciava-se ali.

Do final do século 19 para cá, novas tecnologias aprimoraram as formas de se gerar imagens do corpo, e a qualidade das imagens continua melhorando, com mais segurança. A própria radiografia convencional evoluiu e é usada até hoje. Inicialmente muito utilizada para análises do tórax e dos ossos, passou a ser usada também para estudos vasculares após a descoberta do contraste iodado. A mamografia, exame recomendado para detectar precocemente o câncer nas mamas, é feito com o mamógrafo – aparelho de radiografia adaptado para esse fim. “Esse é um exame que evolui todo ano”, diz Rogério Caldana, médico radiologista do Fleury Medicina e Saúde. “Já houve uma evolução do analógico para o digital, que facilita a manipulação da imagem após a obtenção.”

No embalo dos Beatles
Em 1972, o engenheiro britânico Godfrey Hounsfield criou a tomografia computadorizada. O projeto foi, de certa forma, embalado pelo sucesso da banda The Beatles, pois recebeu financiamento da sua gravadora, a EMI Records. A tomografia segue os mesmos princípios da radiografia convencional mas, enquanto uma chapa diferencia apenas quatro tipos de tecidos, a tomografia mostra milhares de tons de cinza. Além disso, o tubo de raios X gira em torno do paciente examinado lançando raios em um detector, que gera imagens de “fatias” do corpo.

O boom da técnica chegou em 1976, quando foi feito o primeiro exame de abdome. “Nessa época, levava uma hora e meia para se fazer o exame. Conseguíamos ver se havia uma infecção no abdome e, nos detalhes, mais errávamos do que acertávamos”, lembra o radiologista Xavier Stump, coordenador da área de musculoesquelético do Fleury. “Hoje, não queremos só ver o que tem. Queremos ver a função, o fluxo, o detalhe do detalhe, se o tumor tem um centímetro ou um centímetro e meio, se pega a artéria”, completa Stump.

Tal nível de exigência condiz com o avanço dos tomógrafos. A neurologia foi uma das áreas mais beneficiadas por essa imagem, que mostra não só as formas, mas as funções. “No cérebro, é possível ver se tem uma área que usa mais glicose em determinado momento”, exemplifica Stump. Enquanto isso, a evolução das máquinas persegue a maior eficácia. “Os tomógrafos mais modernos têm imagem com mais qualidade, com menor dose de radiação”, explica Rogério Caldana [leia mais sobre o iDose na página 40]. Ainda não se sabe exatamente até que ponto a radiação acumulada no organismo pode contribuir para o aparecimento de tumores, mas há consenso de que o melhor é expor o paciente a menor dose possível. “Já trabalhamos com doses seguras há muito tempo. O que tem sido feito é aumentar essa segurança”, esclarece o médico. A cada geração, os tomógrafos também fazem os “cortes” mais rapidamente, mais finos e com mais precisão. “Há dez anos, eram apenas quatro cortes. Hoje, temos aparelho com 64. E existe, para casos muito específicos, um aparelho com 256”, ilustra Caldana.

Imagem e som
Um dos exames de imagem mais versáteis, a ultrassonografia tem uma história que remonta a 1794, quando o padre italiano Lazzaro Spallanzani demonstrou que os morcegos se orientavam mais pela audição que pela visão. O uso médico do ultrassom, porém, só avançou depois da Segunda Guerra, impulsionado pelos estudos militares da técnica. O sonar, instrumento de navegação marítima baseado em emissão de ultrassom, foi um dos frutos desse período. A primeira imagem do corpo produzida com objetivo médico é de 1950 e tinha apenas branco e preto, sem gradações. Foi só em 1971 que a imagem ganhou tons de cinza.
Por não usar radiação, o ultrassom é considerado um exame sem riscos e pode ser usado até em gestantes. “É um dos primeiros exames feitos, porque é em tempo real, mais rápido e mais barato”, diz Sergio Ajzen, radiologista do Fleury. No entanto, o exame tem suas limitações. “Tudo o que é gás não é bom no ultrassom. Os efeitos não deixam ver direito o que está atrás”, explica.
A evolução da técnica envolve a melhor resolução da imagem e a inclusão de recursos adicionais. O Doppler, por exemplo, é um recurso do ultrassom colorido que permite uma avaliação mais completa do sistema sanguíneo, incluindo densidade e velocidade do fluxo. Uma associação interessante é a da endoscopia feita com ultrassom endoscópico, a ecoendoscopia. “Enquanto a câmera avalia visualmente a mucosa, o ultrassom avalia através da parede se tem alguma lesão”, explica Rogério Caldana.


Por não usar radiação, o ultrassom é considerado um exame seguro até mesmo em gestantes

Spins e ímãs: a ressonância
Em 1971, o médico norte-americano Raymond Damadian fazia parte da equipe que realizou o primeiro exame de ressonância magnética. A técnica, bastante sofisticada, baseia-se em princípios do magnetismo e radiofrequência, gerando uma imagem com características diferentes para cada tecido. As primeiras imagens levavam horas para serem geradas – hoje levam minutos. Há médicos que já se dedicam a uma das mais importantes ramificações da área, a ressonância magnética funcional. “O paciente é colocado no aparelho e pede-se que ele faça uma ação motora específica. Conseguimos ver, no cérebro, as alterações causadas por essa movimentação, localizando a área responsável por essa ação”, diz Claudia da Costa Leite, da USP. “Saímos do momento em que a imagem era só estrutural, mostrando a anatomia e a patologia, e passamos a ver a função”, diz a radiologista.

A limitação principal da técnica fica por conta de uso do magnetismo em seu funcionamento. “Todos os objetos que são ferromagnéticos não podem entrar no campo magnético do exame, porque podem causar dano ao paciente”, explica Claudia. Estão vetados, entre outros itens, próteses antigas de ouvido, feitas de metal, e marca-passo. Uma evolução aguardada pelos profissionais da oncologia é o PET-RM, aparelho que usa a ressonância em lugar da tomografia. “A ressonância não usa radiação, e vai ser melhor para avaliar alguns tipos de tumores”, explica Rogério Caldana.


Em 1971, as primeiras imagens para diagnóstico levavam horas para serem geradas. Hoje, levam minutos

Caixa de ferramentas
O avanço da tecnologia traz à disposição dos profissionais de saúde uma verdadeira caixa de ferramentas. Se a tecnologia avança, trazendo imagens mais precisas, o trabalho do especialista também se torna mais complexo. “Estamos sempre atrás do último método, o que vai resolver tudo. Os métodos novos são importantes, mas mais importante é ter o conhecimento e usar no momento certo”, lembra Xavier Stump. As técnicas avançam no sentido de se complementarem e não se substituírem. Algumas fraturas ainda são melhores detectadas com a boa e velha radiografia do que por uma ressonância, por exemplo. “A arte é tirar as informações corretas de cada método e somar. Nenhum é perfeito”, reforça Stump. É parte do desafio do radiologista identificar, em imagens cada vez mais nítidas, o que é de fato indicação de alguma doença. “É preciso cuidado. Não posso, como radiologista, ser um criador de doenças. É preciso interpretar a imagem e fazer o diagnóstico a partir de exame físico, de laboratório e de imagem”, diz.

Como boas ferramentas, é comum que as técnicas sejam usadas em conjunto para a obtenção de um diagnóstico mais preciso. “A associação de métodos é o caminho mais promissor”, afirma Rogério Caldana. As pesquisas na área envolvem equipes altamente especializadas e multidisciplinares. São engenheiros, físicos e outros especialistas trabalhando em conjunto com médicos radiologistas em busca das melhores soluções. “O PET-RM, por exemplo, envolvia um desafio grande, porque um método interferia no outro quando agiam no mesmo equipamento. Resolveram esse dilema de dois anos para cá”, conta o médico.

A cada avanço da técnica e do conhecimento, a medicina dá mais um passo. “O diagnóstico por imagem deu a chance para a medicina conhecer melhor o corpo. Conseguimos reconstruir digitalmente e de forma fidedigna como o corpo é, sem ter de ver por partes como antigamente, com a anatomia”, avalia Sergio Ajzen. O jeito de se fazer medicina também sofreu mudanças. “Com a imagem, como conseguimos fazer mais diagnóstico, ter mais informações, muda completamente o que se faz na terapêutica: conseguimos entender melhor a evolução das doenças”, finaliza Claudia da Costa Leite.Tudo em um só lugar

As novas técnicas de diagnóstico permitiram o avanço dos procedimentos guiados por imagem, uma das áreas mais promissoras da radiologia. “Você pode ter um nódulo hepático e, em vez do paciente ser aberto em uma cirurgia para o médico descobrir o tipo de nódulo, é possível fazer uma biópsia orientada por ultrassom ou por tomografia”, diz Claudia da Costa Leite, da USP. Em março deste ano, o Fleury Medicina e Saúde inaugurou o Centro de Procedimentos Guiados por Imagem, na unidade Higienópolis, em São Paulo (SP). Os procedimentos já eram oferecidos antes, mas agora estão em um lugar só. Além disso, em uma biópsia de pulmão, por exemplo, o patologista já pode dizer se a amostra está boa para permitir um diagnóstico. Antes, essa amostra era mandada para outro setor e, caso não estivesse boa, o paciente precisaria voltar para repetir a coleta. “Hoje em dia, os procedimentos são feitos com pouquíssimo risco para o paciente, que antes precisava ficar internado. Com menos internação, diminuímos também os riscos associados”, explica Sergio Ajzen, do Fleury.