O olhar da cineasta | Revista Fleury Ed. 31

Única mulher entre os diretores do Cinema Novo, Helena Solberg construiu uma trajetória consistente, do cinema militante e feminista dos anos 1970 aos longas de ficção e documentários contemporâneos.


Única mulher entre os diretores do Cinema Novo, Helena Solberg construiu uma trajetória consistente, do cinema militante e feminista dos anos 1970 aos longas de ficção e documentários contemporâneos

Inspirada e embalada

por filmes como Rio, 40 graus, de Nelson Pereira dos Santos, e por toda a produção do neorrealismo italiano, de Roberto Rossellini e Vittorio De Sica, a chamada segunda geração do Cinema Novo produziu obras fundamentais como Cinco vezes favela, de Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman. Entre tantos homens, uma única mulher, que começava ali uma carreira consistente como cineasta e uma trajetória corajosa, traduzindo questões relevantes do país e do continente, no calor do momento. Helena Solberg é uma cineasta conectada ao mundo e ao seu tempo. Seu olhar, sempre contemporâneo, segue recortando e montando a realidade, filtrando o mundo que vê e comunicando-o para nós por meio de seus filmes. Tornando esse olhar único, está a expressão da trajetória de vida de Helena, que vê o mundo como mulher e como estrangeira, ocupada com as questões de construção de identidades.

Quando conheceu a turma do Cinema Novo, já tinha a intenção de fazer disso uma carreira?
Não. A vida... ela  acontece. O que eu queria muito, quando estava na faculdade [Helena ingressou, em 1957, no curso de Línguas Neolatinas da PUC do Rio de Janeiro], era escrever. Cheguei a começar a escrever uma novela, quando tinha 16 ou 17 anos. Tinha umas 300 páginas. E levei para o Rubem Braga dar uma olhada. Ele ficou com ela uma semana e me chamou, falando: “Helena, a ideia é ótima, mas você tem de trabalhar muito isso. Você escreveu quantas vezes?”. Eu disse “uma”. E ele: “Não, não é assim que se escreve. Você vai ter de trabalhar isso”. Aí, fiquei tão desesperada que voltei pra casa e queimei tudo. Queimei, num gesto romântico. E me arrependo até hoje. Então, essa necessidade de comunicação mudou de foco. Eles estavam começando o movimento todo do Cinema Novo e eu pensei: “por que não aproveitar esse caminho?”

Como é o processo para definir os temas para seus filmes?
Nunca imagino que estou num processo. As coisas acontecem. Por exemplo, Carmem Miranda [tema do filme Carmem Miranda: Bananas Is My Businness]. Ela vai para o exterior e tem de se traduzir. Eu entendi isso muito bem quando li a biografia dela. As pessoas repudiavam porque era o samba, que era uma música de negros, e a elite achava que o negócio aqui tinha de ser música clássica, aquela coisa europeia. Entrevistei Tom Jobim para o filme e ele disse: “é jealousy”. Ciúmes. E é mesmo. O Brasil tem um pouco disso, de não acreditar quando o brasileiro vai para fora e é bem-sucedido. Tem um mal-estar.  

Mas você tem de se identificar, de alguma forma...
Certamente. Sempre tem de ter alguma coisa que fala a você. Por exemplo, Helena Morley [autora de Vida de menina]. Tem uma geração que leu o livro dela na adolescência. Eu, não. Fui ler muito mais tarde e fiquei encantada com a personagem. Comecei a fazer pesquisa e fui achando que tinha essa questão da mulher, que sempre me interessou. Os filmes que eu fiz antes sobre isso eram talvez mais didáticos, e aqui eu tinha a possibilidade de fazer ficção, que eu queria muito experimentar. Mas você não quer ficar o tempo todo sendo confessional, fazendo uma coisa que é sobre você. Sempre me interessou muito entender a realidade do outro. Isso é uma das coisas mágicas do cinema.

Documentário e ficção. Fazem sentido essas classificações para você, que transita de um estilo para o outro no mesmo filme?
É no fazer que acontece. Em A entrevista, tive uma situação muito curiosa. Nenhuma das moças que entrevistei queria ser filmada. Então, acabei com cerca de 70 horas de entrevista e nenhuma imagem. O filme se tornou o ritual de uma noiva sendo preparada para o casamento, e as entrevistas vão desconstruindo aquela imagem romântica. Era para ser um documentário, que acabou tomando essa outra forma e deu supercerto. E elas não queriam ser filmadas porque falavam sobre sexo, amor, casamento, política... Naquela época, as mulheres não diziam muito o que pensavam.

Já os filmes que fez nos Estados Unidos, nasciam como documentários?
Aí, sim. Eram reportagens em filmes de uma hora. Estando lá, tomei consciência da visão errada que os americanos tinham da América Latina e isso me motivou a tratar daqueles temas. Meu filme sobre a Nicarágua foi uma denúncia. Saiu em todos os jornais. Eu achei que ia ser expulsa dos Estados Unidos por causa dele. Mas aí, ele ganhou um Emmy Award, que eu acho que foi uma maneira de os independentes de lá mostrarem que era necessário continuar fazendo esse tipo de filme, porque senão se instalava a censura. O Brazilian Conection era um filme que tinha de ser feito naquele momento. As coisas estavam acontecendo. Não sei se faria hoje. As coisas estão correndo muito agora. A narrativa é totalmente diferente. A tecnologia também. Tem muita gente jovem que pode pegar uma câmera e sair fazendo filme.

Isso retoma, de certa forma, o que vocês tinham com o Cinema Novo?
Acho que tinha mais rigor. Porque você está lidando com negativo, que tem um preço altíssimo. Você tem uma lata de 40 pés e tem de saber o que você está filmando. E, hoje, você pode filmar sem parar. E depois eu vejo os montadores desesperados, porque chega material na mão deles de 100 horas de filme para editar. Não tem uma disciplina de saber o que é o filme, um pensamento por trás.

Que Brasil foi esse que você viu de fora?
Olha, foi incrível. Foi um outro Brasil. Principalmente olhar como eles viam a gente. Os equívocos todos. Tinha essa questão da tradução, que é uma coisa essencial: no esforço de você se traduzir, você se trai, acaba perdendo o eixo. E isso foi uma coisa que eu insisti muito no Carmem. Porque acho que isso ocorreu com ela também. Uma certa forçação de barra. Ela ter de ser uma caricatura, uma palhaça. Uma coisa humilhante. Mas ela que era muito esperta, muito inteligente. E tinha os equívocos todos, daí que eu entro numa fase de filmes mais políticos sobre a América do Sul: a Nicarágua, o Chile, e mesmo o Double Day, que viajei pela América Latina.

E isso transformou também seu olhar para o exterior?
Para mim, foi muito interessante conhecer a cultura americana e a cabeça deles. Quando cheguei lá, em 1970, não conhecia ninguém e quis saber logo se havia uma comunidade de cineastas. Nisso, começaram os protestos contra a guerra do Vietnã e fomos filmar. Acho que fui presa no mesmo dia. Eles nos levaram para um campo de futebol, uma coisa imensa, cheio de gente presa. Uma confusão, todo mundo fumando um baseado. Cheguei a entrar com uma câmera e vi que tinha gente lá dentro interessantíssima para entrevistar. Então essa foi a minha primeira experiência americana. Mas eu tinha saído daqui com a barra pesada. Era ditadura e, aqui, quando te prendiam, você não ia fumar um baseado, nem ficar tocando música enquanto estava preso.

O olhar do cineasta é sempre um olhar estrangeiro?
O cinema é sempre uma interferência. O cinema não é a vida. Ele é um recorte. Você escolhe o que está filmando, para que lado dirige a sua câmera. Quando se escolhe determinada direção, já está fazendo um corte. Por isso que aquela velha história do cinema verdade, em que você está filmando e as pessoas não sabem, isso não é verdade. Porque quando você entra com uma câmera num lugar, você já mudou a situação. As pessoas já sabem que estão sendo filmadas.

O que lhe mantém em movimento, trabalhando?
Ué. Vou ficar sem trabalhar? Nem sei o que isso quer dizer. Deus me livre. Que chatice. Enquanto a gente puder fazer alguma coisa, tiver alguma coisa para dizer, a gente tem de dizer, não é? Estou escrevendo um roteiro de ficção, sobre uma personagem que é uma pessoa que viveu fora e volta. Mas também estou com muita vontade de fazer um documentário sobre o aborto, que é uma questão que estou começando a investigar, a escolher um caminho.

O que você acompanha do cinema atual?
Aqui no Brasil, o cinema pernambucano. Acho fantástico. O Marcelo Gomes, o Claudio Assis. Tem umas coisas muito fortes acontecendo. Tem o Kleber Mendonça Filho, de O som ao redor. De mulheres, em São Paulo, a Lina Chamie, a Tata Amaral e a Liliane Café vêm com filmes muito interessantes. Aqui no Rio, a Lucia Murat, e a filha dela também, a Julia. E é importante assistir tudo que está acontecendo fora também. Os filmes argentinos. Relatos selvagens é uma coisa fantástica. E os seriados americanos. O cinema hollywoodiano está ficando no cinema e os independentes foram para a televisão, com muito mais liberdade nos seriados do que eles tinham no cinema de blockbusters.

Os filmes de Helena

Ela foi a homenageada do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade deste ano, que também lançou o livro da jornalista Mariana Tavares sobre sua obra, Helena Solberg – do Cinema Novo ao documentário contemporâneo.

A entrevista (1966), documentário em curta-metragem que mostra imagens do ritual de uma mulher se preparando para o casamento, sobrepostas com o áudio de entrevistas feitas por Helena com mulheres sobre suas insatisfações, angústias e dúvidas a respeito do casamento.

Meio-dia (1970), primeira ficção da diretora, em curta-metragem, inspirado em Zero de Conduta, do cineasta francês Jean Vigo.

The Emerging Women (1974), The Double Day (1975) e Simplesmente Jenny (1977) fazem parte da trilogia feminista, feita nos Estados Unidos, a partir do trabalho com o coletivo de mulheres que formavam o núcleo do International Women’s Film Project.

A fase do Cinema Militante, também do período em que Helena morou nos Estados Unidos, inclui os filmes: From the Ashes... Nicaragua Today (1982), The Brazilian Conection (1982-3), Chile, By Reason or by Force (1983), Portrait of a Terrorist (1985), Home of the Brave (1986) e The Forbidden Land (1990).

Carmen Miranda: Bananas Is My Businnes (1994), feito ainda nos Estados Unidos, reconstrói a trajetória de Carmem Miranda.

Vida de menina (2004), longa-metragem de ficção feito já no Brasil, é uma adaptação do livro de Helena Morley (Alice Dayrell Caldeira Brant), Minha Vida de Menina.

Palavra (En)cantada (2009), documentário em longa-metragem que traça um panorama da música popular no Brasil.

A alma da gente (2013), acompanha a trajetória de adolescentes que participam do projeto Corpo de Dança da Maré, coordenado pelo coreógrafo Ivaldo Bertazzo.



1 Helena e Nonato Estrela (cinematógrafo) gravando para a HBO; 2 Durante filmagens de Meio Dia; 3 Com Michael Anderson (cinematógrafo) na Nicarágua, filmando From the Ashes… Nicaragua Today; 4 No set de Vida de Menina, em Diamantina (MG); 5 Com Christine Burril, gravando The Double Day.