O que nos faz ser o que somos | Revista Fleury Ed. 33

​A identidade é o que ajuda a definir nossa cara e nosso jeito de ser no mundo.


A identidade é o que ajuda a definir nossa cara e nosso jeito de ser no mundo.

Apresento-lhes Ana: ela é corintiana, gosta de comer pastel de feira, ouve música eletrônica, é estagiária em um escritório de advocacia, terminará a faculdade ano que vem e, logo depois, pretende fazer uma viagem pelos Estados Unidos – seu sonho sempre foi conhecer a Disney, mas a condição financeira de sua família nunca permitiu que ela saísse do Brasil. Ana é alta, loira, magra e detesta seu nariz sobressalente. Ao ler esse perfil você certamente já formou uma imagem, e uma série de julgamentos, sobre a moça. Ana é só um personagem criado a partir de referências genéricas. Mas são camadas como essas, de pequenas definições sobre nós mesmos que, sobrepostas, formam o que se chama de identidade.

""Apesar de considerar questões genéticas, a identidade não pode ser explicada apenas fisiologicamente. A identidade é um processo que não tem fim, um constante reconhecimento de características familiares e socioculturais"", define o psicanalista Marcos Inhauser Soriano, editor da Revista Vórtice de Psicanálise. Portanto, não nascemos com a identidade pronta, mas com muitas identificações que vão se consolidando ou se alterando ao longo da vida. Christian Dunker, professor titular do Instituto de Psicologia da USP, diz que a identidade pode se dividir em três grandes tipos: as que acontecem com pessoas, as que acontecem com traços ou marcas de algo ou alguém e as que acontecem com o desejo. ""Quando vemos uma criança dizer 'quando crescer quero ser médica como minha mãe', há a ocorrência das três identificações: com a mãe, com um traço representativo dessa mãe (médica) e ainda que o desejo de crescer combina-se com o desejo profissional da mãe.""

A identidade é algo tão maleável que pode até se perder por aí. Há duas situações muito características nas quais as identificações são remanejadas: o luto e o grupo. ""Quando perdemos algo ou alguém, é um conjunto de traços que se vai, e o todo precisa ser redimensionado para que o que sobrou possa se acomodar ao espaço formado por esse vazio"", diz Christian, sobre a primeira. ""A segunda situação é quando colocamos uma pessoa ou objeto na posição de ideal formador de novas identificações, o que acontece frequentemente com líderes, chefes ou mandatários"", diz.

As identificações podem nos enriquecer, quando ajudam a nos tornar responsáveis por nossos desejos e ideais, ou ser empobrecedoras. Nesse caso, o elo com esse líder deixa de ser positivo e não ajuda a compor a identidade, mas a anulá-la: renuncia-se a pensar e desejar por si próprio e passa-se apenas a obedecer ao outro em troca de amor deste líder.

O psicólogo lembra que sistemas totalitários, opressão contra raça e gênero e exercícios de poder institucionais estão usualmente apoiados por identificações deste tipo.

IdentidadeFotos: ISTOCK e SHUTTERSTOCK

Não nascemos com a identidade pronta, mas com muitas identificações que vão se consolidando ou se alterando ao longo da vida.


NÃO É A CARA DO PAI

O best-seller americano Andrew Solomon passou boa parte da sua vida se torturando por não ser o que seus pais esperavam que ele fosse: heterossexual. O escritor, com doutorado em psicologia, decidiu se debruçar sobre a história de pais que, como os dele, se frustraram por ter um filho diferente do esperado. O resultado é o compêndio Longe da árvore – pais, filhos e a busca da identidade (Companhia das Letras, 2012), onde conta a história de pais de filhos surdos, autistas, com Síndrome de Down, anões, entre outros tantos casos que ele classifica como “identidades horizontais”. Ao contrário da identidade vertical – traços físicos, língua, hábitos familiares etc., a horizontal não passa de pai para filho, mas surge de algum traço recessivo, mutações aleatórias ou estímulos sociais e ambientais que estão fora do controle de seus criadores. Solomon conta como esses pais tiveram de se reinventar e se reajustar diante das expectativas – deles mesmos e sociais - gerando uma crise de identidade (em muitos casos, um luto) para seguir adiante.

Mas se, por um lado, os pais desejam tanto filhos que sejam sua continuidade, por outro, os filhos precisam se diferenciar como forma de cortar o cordão umbilical. Esses momentos de ruptura são as chamadas crises de identidade ou, segundo Christian, crises narcísicas. “A identidade precisa passar por certas crises, como os complexos de desmame, de Édipo e de intrusão, quando um irmão chega para nos tirar do lugar de ‘sua majestade, o filho único’”, diz ele. Todas são momentos nos quais a forma como nos reconhecemos difere da forma como os outros nos reconhecem. As crises mais intensas, em especial em relação aos pais, chegam com força na adolescência. “Nessa fase, o jovem passa por turbulentos conflitos identitários que envolvem desde a administração dos instintos sexuais até a luta de firmar-se na quebra das expectativas paternas”, complementa Marcos Soriano.


TUDO PELO SOCIAL

Um estudo em andamento mostra que a identidade também mexe com o cérebro. Tiago Bortolini, biólogo especializado em psicologia evolutiva, analisou a ressonância magnética de 25 torcedores de times variados para descobrir se isso nos torna predispostos a colaborar com nossos pares (Ana, por exemplo, tenderia a ajudar mais os corintianos?). Durante a ressonância, os participantes acionavam um instrumento que hipoteticamente acumulava dinheiro para si, para torcedores de seu time ou para gente sem time algum. Quando Tiago mostrava a torcida do time do voluntário, a área do cérebro com maior atividade neural era justamente a envolvida com o sentimento de pertencimento.

Pertencer a algo maior que nós, a um grupo que tem cara, volume e faz barulho, é uma forma de identificação que mexe de forma profunda com a gente. Muitos grupos se unem em torno de uma identidade para reivindicar condições igualitárias e mais justas para si. Outros, simplesmente para ter uma diversão em comum, ou pela fé. Criar esse tipo de conexão é importante para a evolução individual e para proteção social, desde que não se substitua a identidade própria pela do outro. ""Somos seres civilizatórios, portanto, gregários. Sentimo-nos seguros quando fazemos parte de um grupo, seja ele qual for. É uma necessidade do psiquismo humano ter um lugar e uma localização grupal"", explica Marcos Soriano.

No entanto, o que nos faz verdadeiramente únicos é menos o ponto em comum com os outros e mais aquilo que só as experiências individuais trazem – em especial as traumáticas, angustiantes, que se recusam a fazer parte de nossa identidade por serem dolorosas. São o que Christian apelidou de ""diferencialidades"". ""Todos se perguntam sobre sua identidade, mas muito poucos se intrigam com as 'diferencialidades', que, em geral, é o que nos torna interessantes.""