Noemi Jaffe é autora do volume de poemas Todas as pequenas coisas, das crônicas de Quando nada está acontecendo, de O que os cegos estão sonhando? e, mais recentemente, de A verdadeira história do alfabeto, um divertido compilado sobre como cada letra foi criada. Também é crítica literária do jornal Folha de S.Paulo e professora de escrita criativa.
Palavras que flutuam
Imaginação, bom humor e leveza na vida e na obra de Noemi Jaffe por Laura folgueira
“Quando antes das palavras existirem, os homens sonhavam com coisas, o tempo ainda não existia. Quando as palavras surgiram, as coisas foram sumindo, e o tempo apareceu. Mais tarde, as coisas quiseram voltar para os sonhos das pessoas, que, então, só faziam falar palavras e fazer passar o tempo. As coisas tramaram uma emboscada para algumas palavras, tomaram-nas de surpresa e prenderam-nas num labirinto, de onde até hoje elas ainda não conseguiram sair. Depois disso, as coisas assumiram o poder das palavras restantes, que eram poucas. O tempo enfraqueceu, pois ele era uma das palavras que foram para o labirinto. As coisas perdoaram o tempo, com a condição de que elas mantivessem a soberania sobre ele, e ele não fez senão concordar. Desde então, o tempo só aparece nos ovos, nas plantações, nos ventres e nos tambores.”
Na obra de Noemi Jaffe, a mistura entre leveza e densidade se dá de maneira natural, da mesma forma que a mistura entre gêneros como poesia, contos e crônicas, que se sobrepõem. Além de crítica literária do jornal Folha de S.Paulo e professora de escrita criativa, a paulistana Noemi é autora do volume de poemas Todas as pequenas coisas, das crônicas de Quando nada está acontecendo, de O que os cegos estão sonhando? e, mais recentemente, de A verdadeira história do alfabeto, um divertido compilado que explica como cada letra foi criada. Falar sobre leveza, para ela, é lembrar de simplicidade, humor e imaginação – na escrita e na vida.
Uma das frases mais conhecidas de Noemi nasceu em um de seus cursos. “Simplicidade não se opõe à complexidade: um texto deve ser complexo em sua leveza.” É que, para ela, ser leve tem relação com alguns excertos de Italo Calvino sobre o assunto no livro Seis propostas para o próximo milênio. “Ele fala sobre dois tipos de leveza: a leveza da pluma e a leveza do pássaro. Diz que é importante ser leve como o pássaro, não como a pluma, porque a pluma é leve, mas não tem direção, é aleatória, cai de acordo com a direção do vento. O pássaro, não: ele é leve, mas tem direção, tem decisão”, lembra a escritora. “Falo nos meus cursos que o tipo de leveza interessante na literatura é esse. Não é uma leveza fútil. Se pensarmos em termos físicos, a leveza e a densidade se opõem. Mas, na literatura, não: uma coisa pode ser densa e leve nesse sentido de decisão, de escolha, mas sem perder a simplicidade e a clareza”, completa.
Contraponto
São conceitos tão complementares quanto contraditórios, que ela própria enxerga, de fato, em suas obras. Noemi começou escrevendo sobre temas um pouco menos densos, mais cotidianos, como no livro Quando nada está acontecendo, que traz o olhar da autora sobre as coisas mais singelas de cada dia. “Sempre falo para meus alunos que as coisas que as pessoas falam e fazem, os gestos, os olhares, as palavras são muito legais. Se você quer dar dinâmica, vivacidade e verossimilhança a um texto, precisa prestar atenção aos detalhes das pessoas, uma pinta no rosto, um jeito de segurar a xícara...” Noemi lembra, ainda, que essa afeição pela leitura do cotidiano vem também do apreço pela poesia de Manuel Bandeira, da crônica de Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, de alguns poetas como William Carlos Williams e Wallace Stevens. “Sempre me senti muito atraída por esse tipo de leitura”, diz.
“A literatura contemporânea fala muito da problemática urbana burguesa, muito do dia a dia, de questões verossímeis, realistas, individuais... Mas eu não gosto disso. Acho que falta imaginação”
No entanto, em O que os cegos estão sonhando?, o tema é bem mais denso. O ponto de partida para o livro foi o diário escrito pela mãe, Lili Jaffe, após ser salva pela Cruz Vermelha do campo de concentração nazista de Auschwitz, onde foi prisioneira por um ano. Mas o retorno dos leitores, segundo ela, não reflete tanto o peso da história. “As pessoas têm me dito que sentem que é um livro positivo, que fala de superação e não é melodramático”, conta Noemi. “O assunto pode ser bem denso, mas tento sempre colocar principalmente a autoironia, alguma personagem meio desajeitada... Tento passar reflexões profundas sobre a existência sem apelar para recursos que deixem aquele texto muito incompreensível.”
Durante o processo de criação de O que os cegos estão sonhando?, Noemi precisou lidar com a forte carga emocional da questão familiar. Ela diz que todo o processo foi dolorido – e continua sendo. “É um processo de recuperação. A escrita me obrigou a ir para Auschwitz, a levar minha filha para lá também, e a ver outros lados da história, visitar vários museus do Holocausto... Você precisa se confrontar com a história ali, cara a cara. E tive que conversar várias vezes com minha mãe, fazer ela reviver coisas que já tinha apagado”, recorda.
A mãe parece ser uma inspiração muito forte para a escritora e sua forma de lidar com questões tão difíceis. Noemi não queria que a dor de ambas fosse determinante no livro. “Eu não queria mais um livro de autovitimização. Uma das coisas que minha mãe me ensinou é a não se autovitimizar. É uma coisa que ela não fez. E se ela, que passou por isso, não se vitimizou, não tem cabimento eu me fazer isso”, diz. Segundo Noemi, a mãe tem um jeito muito leve de lidar com a dor. “Queria que as pessoas também prestassem atenção na construção da superação dela, na ideia da memória, da sobrevivência. Eu não tive só dor nesse processo. Também tive muito aprofundamento, muito prazer e muita superação”, conta.
“Minha mãe nos criou – nós somos três irmãs – de um jeito muito sem frescura, porque ela tinha que trabalhar para se sustentar. Ela confiava na gente e realmente aprendemos a nos virar, sem superproteção. Somos mulheres muito batalhadoras. Acho que minha escrita também é assim, sem frescura”
Outras histórias
Encontrar o tom certo entre as linhas tão tênues da vida também foi um grato desafio na mais recente obra de Noemi, A verdadeira história do alfabeto. Mais imaginativo e cheio de bom humor, ele traz a genealogia ficcional das letras do alfabeto e de algumas palavras da língua portuguesa. A ideia do livro veio da paixão de Noemi por línguas e dicionários. “Fico até lendo livros em outras línguas só para sentir o sabor e o som das palavras, atribuo significados às palavras que não conheço só pelo som delas.” Ela conta que estava lendo um livro de Davi Grossman [escritor israelense], que fala de uma brincadeira de duas crianças em que elas “hospitalizam” as palavras doentes, aquelas que perderam o significado de tanto serem usadas. “Pensei: 'Ah, vou inventar uma brincadeira de criar a origem das letras do alfabeto'. Eu ia no dicionário, escolhia uma palavra que já existe, por exemplo, átomo, e pensava: 'Como alguém precisaria ter criado a letra A e a palavra átomo?'. E assim fui fazendo com todas as letras”, explica.
Apesar do tom divertido do livro, há quem o considere difícil. Noemi discorda. “Acho que é preciso se permitir entrar naquele jogo absurdo de se apropriar de realidades que já existiram e aceitar que haja coisas completamente absurdas dentro dessa realidade. Precisa saber jogar. É uma questão de aprender as regras do jogo.”
Já em Todas as pequenas coisas, Noemi faz uso de diálogos em poemas. Um contraponto de gêneros que ela credita não apenas à intenção, mas também à maneira como exerce o ofício de escritora. “Não sou uma pessoa de escrever durante muito tempo. Escrevo por uma hora, paro, retomo mais meia hora... Acho que a mistura vem por causa desses lapsos de tempo. Acabo fazendo a prosa de um jeito mais poético e a poesia de um jeito mais prosaico.”
Em todas essas histórias em prosa e verso, talvez seja a maneira bem-humorada e simples da autora de viver e passar pelos dias o principal ponto em comum. “Não gosto de causar problemas e sofrer muito por coisas que não merecem. Não gosto de caprichos inúteis, não tenho vocação nem paciência para isso. Não consigo o tempo todo, não sou uma super-heroína para conseguir sempre encontrar leveza em São Paulo! Mas se estou parada no trânsito, por exemplo, fico observando as pessoas...”
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