Quem é você na internet? | Revista Fleury Ed. 31

No mundo virtual, podemos assumir personalidades variadas – às vezes, parecidas com o que somos na vida real; às vezes, personagens de pura ficção.

No mundo virtual, podemos assumir personalidades variadas – às vezes, parecidas com o que somos na vida real; às vezes, personagens de pura ficção. É fácil lembrar daquela figura tímida no dia a dia, mas que fica extrovertida nas redes sociais. Ou pensar naquela pessoa contida que se revela agressiva em comentários de portais e discussões em fóruns da internet. Para os especialistas no assunto, estamos todos aprendendo a navegar nesses mares de um mundo que integra o chamado ciberespaço no cotidiano.

“A internet não traz nada de novo no comportamento humano”, afirma a psicóloga Rosa Maria Farah, coordenadora do Núcleo de Pesquisas da Psicologia em Informática da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Os comportamentos que a gente observa no mundo virtual, apesar de surpreendentes, muitas vezes têm a sua versão presencial. A principal diferença é que na virtualidade essas atitudes ficam mais exaltadas, potencializadas”, avalia a especialista.

A pesquisadora Lídia Oliveira, membro do Centro de Estudos das Tecnologias e Ciências da Comunicação (Cetac.Media) e professora na Universidade de Aveiro, em Portugal, concorda. “Nós todos sempre fizemos, enquanto humanos, esse jogo das máscaras, das performances, conforme os contextos. Quando estou na praia com amigos, por exemplo, faço coisas que não faria fora dali. A encenação do eu ajustado ao contexto é uma marca dos sujeitos humanos. E é bom que as pessoas consigam fazer essa gestão do eu em contexto”, afirma a especialista. Mais uma vez, não há novidade alguma nas questões comportamentais. “A rede tem um efeito amplificador: amplia fenômenos que já aconteciam.”


O perfil que alimentamos nas redes se distancia cada vez mais de um “eu real”, especialmente quando as fronteiras entre real e virtual se rompem. “É muito complicado falar em identidade virtual e fictícia”, avalia Cíntia Dal Bello, doutora em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Em sua dissertação de mestrado, Cíntia investigou a identidade nas plataformas virtuais. “No fundo, temos várias identidades, ou fragmentos de identidade, que brigam por um espaço de visibilidade. Eles ficam aguardando o momento de aparecer, numa situação presencial ou na internet”, diz.

Mas o que faz da rede virtual esse território de exageros e de comportamentos exacerbados? “A internet cria um contexto sem contexto”, diz Lídia. “Com a possibilidade de não ser reconhecida, uma pessoa pode expressar dimensões de si que seriam socialmente reprováveis”, explica. O anonimato das redes – ou, cada vez mais, a sensação de anonimato – serve de escudo e também de arma. “A sensação de não ser identificado é um dos fatores que geram essa exaltação”, opina Rosa. Para ela, há também uma dificuldade na avaliação do alcance que as ações na internet têm. “Muitas vezes, as pessoas se comportam no virtual como se estivessem na sala da própria casa. Agem como se estivessem na intimidade, quando na verdade estão se expondo para o mundo”, afirma.

Cultura da exposição, mas com filtros

Essa avaliação fica mais difícil quando a exposição é justamente o que é incentivado e esperado na internet, principalmente nas redes sociais, com o crescimento da cultura do selfie e da busca por seguidores e “fãs”. Nesse jogo de conquistar audiência, é até aceito que nossa imagem se desconecte da realidade. Os estudiosos desse tema falam que vivemos em uma era de simulacros. “Com os filtros todos, não apenas manipulamos a imagem nos arrumando e maquiando para a foto, mas podemos nos transformar numa atriz de Hollywood dos anos 1950. Ficamos mais bonitas nas fotos, porque estamos hiper-reais, com o ar midiático”, explica Cíntia. “As pessoas se sentem mais importantes, mais sujeitos da própria vida e da própria história. Mas, no fundo, estão se oferecendo como objetos para o olhar do outro.”

Por outro lado, as redes podem servir como um bom espaço para exercitar aspectos de nossa personalidade. É o que aponta a psicóloga Rosa Maria Farah. Uma pessoa que tem dificuldade de se comunicar frente a frente com alguém pode descobrir, nas redes, uma habilidade escrita que ela desconhecia. “Cultivar uma identidade virtual não necessariamente representa uma cisão ou um desequilíbrio. Eu posso estar, com isso, ampliando a construção do meu eu”, afirma.

Essa visão tem mudado até mesmo o modo como psicólogos trabalham com a questão da identidade. “Tradicionalmente, na psicologia, sempre se falou que a condição de equilíbrio, saudável, é a daquele indivíduo que se expressa de uma forma unívoca, sem contradições. Atualmente, começa-se a se questionar isso. Ou seja, quem disse que eu não posso conter em mim aspectos que aparentemente são contraditórios, e, não necessariamente isso é patológico, um desequilíbrio?”, questiona Rosa.

Tempo de transição

Estamos, certamente, numa transição. As relações entre as pessoas, mediadas pela internet, se transformam. “O perigo é quando o sujeito transforma o outro numa mercadoria. Quando procuram relações muito efêmeras, no fundo agarradas aos ‘eus de ocasião’: para determinada ocasião, a pessoa faz uma apresentação de si que visa apenas se relacionar com o outro como se fosse uma coisa, um objeto de manipulação”, alerta Lídia.

As novas gerações são de vínculos frágeis. Porém, uma mudança interessante, aponta Lídia, é como elas se apresentam nas redes. “Sinto que não se escondem tanto atrás do anonimato. Eles têm uma presença pública. Mas, como usam o Facebook como rede social, eles são eles: não estão atrás de um nickname, de um pseudônimo”, lembra.

“Comportamentos perversos sempre existiram, assim como aqueles que se escondem atrás de identidades falsas. Mas as pessoas que tentam se conhecer de formas genuínas também são reais desde sempre. A luz e a sombra sempre existiram e sempre vão continuar a existir. Mas, agora, com um poder maior. Porque estamos em uma escala global”, conclui Lídia.