Ser Feliz é... | Revista Fleury Ed. 30

​O filósofo e psicanalista Pedro Ribeiro de Santi fala da relação entre felicidade, realização pessoal e performance pessoal, e provoca: “Quem disse que temos de ser felizes?”


O filósofo e psicanalista Pedro Ribeiro de Santi fala da relação entre felicidade, realização pessoal e performance pessoal, e provoca: “Quem disse que temos de ser felizes?”
Por Paula Ungar

Viver é mais que buscar a melhor performance; ser feliz é mais que mostrar que se é feliz. Se fosse possível resumir o pensamento do psicanalista paulistano Pedro de Santi sobre as “peças” que o mundo moderno prega no ser humano, essas duas máximas certamente estariam presentes.

Nas prateleiras das livrarias, nas bancas de jornal ou numa rápida busca na internet, encontramos diversos textos que prometem revelar o caminho para a realização. “Vinte e dois hábitos das pessoas felizes”, “Quatro técnicas para se sentir realizado” e assim por diante. Num deles, o enunciado diz: “O que é preciso para ser bem-sucedido na vida? Não há uma resposta simples, mas experiências mostram que existem práticas que podem maximizar as chances de ter uma vida feliz, produtiva e bem-sucedida”.

Repare que a relação que se faz entre ser bem-sucedido e feliz é direta. Ou seja, se você tem sucesso e é produtivo, encontrou a fórmula mágica da felicidade. Mas será que é mesmo assim? Desde quando é preciso ter uma boa performance para se sentir uma pessoa de bem com a vida?
E o que é ter performance, afinal? Segundo Pedro de Santi, esse tipo de discurso é uma grande armadilha do mundo moderno. “Ser ativo, mostrar-se realizado, são valores ocidentais que podem funcionar para muitos como um motor, como um incentivo, mas frequentemente se revertem em depressão”, afirma o especialista.

“Quando você perguntava para as pessoas, 20, 30 anos atrás, ‘Você é feliz?’, onde elas buscavam a resposta?”, pontua de Santi. “Basicamente, na vida amorosa, afetiva.” Hoje, segundo o psicanalista, passou a ser comum procurar a resposta também no meio profissional. Quer dizer, sentir-se feliz diz respeito a sentir-se bem amorosamente assim como bem-sucedido profissionalmente. A questão é que essa busca vem se tornando um fardo muito pesado de se carregar – e quase condenada ao fracasso – estimulada por uma literatura de autoajuda que diz: todo mundo pode ser feliz, só depende de você. “Essa é uma mentira horrorosa”, afirma de Santi. “Na vida humana, nada depende só da gente. Somos seres de relação. A minha felicidade depende da minha relação com meus companheiros de trabalho, com minha família, com meus inimigos. Quando se coloca essa ideia, o grande efeito é encher-nos de culpa. Afinal, se ser feliz depende só de mim e eu não estou feliz, portanto eu errei, eu falhei”, afirma o especialista.


Não há um ideal que valha para todo mundo. A riqueza, o carro, a casa bonita... O que faz uma pessoa muito feliz pode matar a outra de tédio.


Para entender

A angústia e a cobrança – interna e externa – que sentimos por ser feliz não vêm de hoje. Trata-se da conseqüência mais atual de uma construção que remonta ao início da Modernidade (século 16 para 17), com o surgimento do individualismo e do capitalismo. O discurso entre o final do Renascimento e o começo da era moderna dizia: o homem é livre. Isso quer dizer que, quando nascemos, não somos predestinados a nada – Deus nos deu a liberdade e um dia ele julgará se a usamos direito ou não. “Quando apareceu esse pensamento, surgiu a constatação de que cada um de nós é um projeto e que somos livres para ser o que fizermos de nós”, explica de Santi. O jeito bonito de falar isso na Renascença era “cada um é sua própria obra de arte”. Hoje não é muito diferente: cada um é sua pasta, seu currículo, seu post nas redes sociais. “O individualismo atual é uma aceleração do que ocorreu há 500 anos”, afirma de Santi. “Ou seja: faz 500 anos que nós, sobretudo no Ocidente, nos sentimos incompletos. Nunca está bom”, completa o filósofo.

A própria relação entre ser feliz e bem-sucedido já aparecia ali – mais precisamente no calvinismo, de acordo com de Santi, ainda que de forma “escondida”. Essa doutrina dizia: ninguém sabe quem, mas Deus já elegeu quem vai para o paraíso. Se eu for bem-sucedido, portanto, é sinal de que Deus gostava de mim de antemão. “Passa então a ser um grande ideal do homem capitalista se realizar, ter sucesso, comprar sinais externos visíveis da boa aventurança e, com isso, mostrar que Deus gostava dele”, conta de Santi. Ao longo de 300, 400 anos, esse ideal transferiu-se do “provar que Deus gosta de mim” para o “ser o número 1”. Ou seja, ser rico, ativo, estar constantemente produzindo, mostrar desempenho, até se chegar às exigências do mundo contemporâneo, onde não basta existir, é preciso construir. “Não se considera bacana hoje deitar na rede e ficar vendo a ondinha ir e vir. Você tem de ser ativo, tem de melhorar, tem de progredir”, comenta de Santi.


Para não cair na armadilha

Há quanto tempo você está no mesmo cargo ou ganhando o mesmo salário? Profissionalmente, em muitas áreas hoje exige-se que você não passe mais do que dois anos na mesma posição, ou será considerado um acomodado. Já reparou? Você tem de estar mudando o tempo todo para mostrar que possui uma atitude proativa, que quer crescer. Isso acaba atingindo todos os setores de nossas vidas. O problema é que essa busca demanda tempo e energia. “É necessário ganhar consciência de como somos manipulados pela mídia, por ideais econômicos e sociais. Se conseguir observar isso, começa a desenvolver uma espécie de contracontrole e acaba percebendo que os ideais que se vendem são simplesmente ilusórios”, pontua de Santi.
É preciso se descolar dos imperativos coletivos e tentar construir reflexivamente um caminho só seu, pois não há um ideal que valha para todo mundo e certamente o seu desejo não é igual ao de seus colegas, ao que a novela e a propaganda vendem. A riqueza, o carro, a casa bonita...
O que faz uma pessoa muito feliz pode matar a outra de tédio. De Santi vai além e provoca: “Quem foi que disse que nascemos para ser felizes?”. “A nossa cultura mordeu essa isca. Nos tornamos tão compulsivos por experiências, sensações, dinheiro, coisas que justifiquem a vida. Freud diz que possivelmente não existe a Felicidade, com f maiúsculo. Existem sim muitas felicidades com f minúsculo. Quando se espera pelo absoluto, não se desfruta das boas coisas que aparecem no caminho. É preciso perder a ilusão e parar de esperar pelo absoluto. Senão você vai gastar a vida inteira nessa busca”, finaliza o filósofo.

Mini Bio:

Pedro Luiz Ribeiro de Santi é psicanalista, professor, mestre em filosofia pela USP e doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Entre outros livros, escreveu A Construção do Eu na Modernidade – Da Renascença ao Século XIX (Holos Editora, 1998).