O psicanalista Contardo Calligaris busca mais que o tempo contemplativo, à espera do passar das horas. Ele quer mesmo é se deixar seduzir pelas demandas da vida
O psicanalista Contardo Calligaris busca mais que o tempo contemplativo, à espera do passar das horas. Ele quer mesmo é se deixar seduzir pelas demandas da vida.
Psicanalista, doutor em psicologia clínica, colunista, autor de 11 livros, Contardo Calligaris é um pensador do mundo contemporâneo. Ao ritmo já acelerado de atendimento aos seus pacientes, em São Paulo, ele acrescentou a atividade de roteirista (ao lado de Thiago Dottori) e diretor geral da série Psi, produção original da HBO Latin America que está em sua segunda temporada. Para ele, desacelerar não é uma necessidade. O que Contardo busca é o tempo e a disponibilidade para ser seduzido pela aventura, como ele mesmo explica em uma conversa sobre as questões do tempo.
Você nasceu em Milão, na Itália, e viveu em diversos lugares do mundo. Suíça, Estados Unidos, Brasil são só alguns deles. Cada lugar tem seu tempo, seu ritmo próprio?
Cada época da minha vida tem tempos diferentes. Os lugares nos quais eu vivia se confundem um pouco com o momento da minha vida. Mas, sem dúvida, de Nova York me ficou uma tremenda dificuldade com tempo desperdiçado. É engraçado falar isso para uma revista que as pessoas leem justamente quando têm de esperar. Sou tremendamente intolerante com esperas. Se não vejo razões pelas quais a espera é necessária, vou embora. E Nova York é um lugar onde há menos tolerância para isso. As pessoas chegam a ser grosseiras, coisa que eu adoro. Você termina de ser atendido e a pessoa, antes de você sair da frente, já está chamando “neeext”, e os outros vêm quase empurrando você para fora. Em supermercado, eu não aguento que a pessoa do caixa ajude o outro a empacotar em vez de atender o seguinte. Que o cara empacote sozinho. Fico irritadíssimo.
Mas quando estava para vir o outono quente de 1968, fui passar o mês de agosto na Ilha de Panarea, ao norte da Sicília. Naquela época, o lugar não tinha luz elétrica. O barco da água chegava uma vez por semana. Aquilo era realmente outro tempo. Lembro também de um longo passeio a cavalo que fiz duas vezes na região do Urucuia, do Grande sertão veredas, de Guimarães Rosa. Você chega em uma fazenda às 11h e te oferecem um café. Você diz sim e vê o cara pegar uma mão de grãos de café, colocar em um pilão mecânico e começar a bater para produzir o café em pó, que vai ser passado e servido às 13h30. Você fica para o almoço e o cara sai para escolher uma galinha viva que ele vai matar. Aí eu adoro. Eu estou lá para falar com as pessoas, para escutar histórias de onças que não existem, ou então para falar nada e escutar nada, só olhar e ver o tempo dessa galinha ser preparada.
No fundo, é interessante porque esses dois exemplos dizem o essencial: o tempo da gente é um tempo subjetivo. Mesmo em Nova York teve épocas em que eu passava horas em um café qualquer, em cima de um café só. O seu tempo subjetivo é o que acaba prevalecendo.
E por que São Paulo?
Excelente pergunta, porque São Paulo é um lugar feíssimo. Não é o único. Tem outros lugares muito feios, mas eu tenho um extremo carinho pela feiura de São Paulo. São Paulo corresponde a uma série de coisas que para mim são cruciais. Só consigo realmente viver bem numa megalópole. Nasci em uma cidade grande, que é Milão, mas que era uma cidade de um milhão e meio de habitantes. Megalópole é Londres, Paris, Nova York, São Paulo, Buenos Aires. Pela variedade não só de pessoas, mas de desejos, gostos, ritmos de vida, objetos, numa espécie de caleidoscópio. Gosto que uma cidade tenha a cara da [rua] 25 de março, vibrante, com uma variedade de oportunidades de encontro. Eu sou um bicho de cidade grande. Posso ter aspirações de “ah, que maravilha, estou no campo”. Cinco dias. Tem um prazo muito curto.
A gente vê movimentos de “slow”, pedindo para desacelerar. Você, por outro lado, se adapta bem ao ritmo acelerado.
Não sou muito fã de um ritmo mais lento de vida. Mas tenho momentos do dia nos quais eu não posso me privar de um ritmo mais lento. Primeiro, é quando acordo. Não gosto de pular da cama e ir para a vida ativa. Eu preciso de um tempo, de dois cappuccinos. Preciso percorrer o jornal. Existe um ritual de entrada no dia.
O que me custa mais é falta de disponibilidade de um tempo que realmente não seja hipotecado. Vou me explicar. Tudo bem que eu tenha de viver freneticamente, e eu atendo sem intervalo os meus pacientes. Mas sinto falta da possibilidade de me deixar seduzir, de ter disponibilidade para a aventura. E aventura aqui não implica nenhum quixotismo. É qualquer coisa que seduz o seu olhar.
O fim de semana, pra mim, seria um tempo em que gostaria de realmente estar aberto para todas as seduções da rua. Mas que também pode ser a sedução de sentar aqui e ter um livro que está na estante e que me chama. Na quarta página tem uma frase que me faz pensar em uma coisa que li no jornal na quinta-feira e que está acontecendo hoje de tarde. Saio, pego o carro e vou. Esse uso do tempo que supõe que você ou não marcou nada ou, se marcou, não está nem aí. Tanto pior para quem marcou com você. Isso é realmente o tempo com o qual eu sonho. É uma espécie de disponibilidade e curiosidade absoluta para a vida. O melhor exemplo de estar no presente.
Como vê a questão da longevidade?
É um lado da medicina preventiva que interessa à questão do tempo e que ouço bastante em consultório. Qual é o tempo que devemos dedicar ao projeto de longevidade, ao projeto de uma saúde melhor? Eu conto essa história com frequência, porque é uma história verdadeira. A pessoa diz: “não consigo encontrar ninguém com quem possa ter uma relação simpática e companheira. Faço um enorme esforço para, apesar dos anos que passam, estar em forma, para que minha vida se prolongue”. Ótimo. Aí essa pessoa te conta: “na última noite estava em uma festa e encontrei alguém, foi superinteressante, ficamos conversando, e às 23h30 dei carona. Embaixo da casa dela, ela convidou para subir. E eu disse que não posso porque amanhã às 5h tenho que correr no Ibirapuera”. É um clássico. Afinal de contas você está correndo para o quê? Em nome de quê? Qual é o equilíbrio disso e o espaço de disponibilidade para a vida que perdemos por causa disso?
Como as diferentes culturas se relacionam com o tempo?
A relação com o tempo nas Américas e na Europa é muito diferente. A subjetividade é construída de uma maneira diferente. Os americanos todos, no Norte ou do Sul que sejam, são filhos de uma migração – às vezes de uma migração forçada, como a escravatura. Mas são sempre filhos de uma viagem e de alguma dimensão de desespero, mas também de alguma dimensão de esperança num futuro melhor. O europeu não está nessa posição. Ele está lá porque sempre esteve. Porque é o seu lugar, onde o avô nasceu, a bisavó nasceu. Então o presente tem mais peso que o sonho de um futuro diferente.
Como é lidar, por conta de Psi, com o tempo da televisão?
Com esta conversa, me dei conta de que o meu herói, o protagonista da série, embora seja um profissional que atenda os pacientes, apesar de toda a rotina de trabalho, é um cara que tem na vida aquele tipo de disponibilidade para o mundo do qual eu falava antes. No episódio seis dessa segunda temporada, por exemplo. Ele chega ao hospital onde vai levar uma paciente da ONG da qual é diretor clínico. Uma menina que está mal numa maca ao lado lhe parece falar alguma coisa, ele fica escutando. Consequência: ele vai passar o episódio inteiro tentando entender o que aconteceu com essa menina, que foi um acaso. Mas ele não consegue sair dessa, porque tem uma curiosidade pelo mundo, pela vida, em cima da qual ele atua e entra numa aventura realmente. Eu o amo porque lhe atribuo a possibilidade de ter essa disponibilidade o tempo inteiro, que eu só consigo em momentos privilegiados.
Como é definido o tempo da terapia?
Freud estabeleceu esse tempo de pouco menos de uma hora porque era o tempo que lhe convinha. Há estantes inteiras de coisas escritas sobre a duração da sessão. Mas eu acho que no fundo a primeira questão é decidir se você escolhe o tempo médico ou o tempo radiológico. Se você acha que uma psicoterapia é radiológica, ou seja, é um tempo de exposição ao terapeuta, como se ele fosse um material radioativo, então você está fazendo uma radioterapia, e a prescrição é 50 minutos de exposição ao plutônio do terapeuta, e isso vai curar, então tudo bem. Se você acredita no tempo médico, não tem nada a ver com isso. Porque se você precisa de um ato médico, como uma ablação da vesícula, e se eu consigo fazer isso por laparoscopia em sete minutos, você não vai me dizer: “por favor, me abra a barriga por 40 minutos porque eu paguei por isso.” Então se for tempo médico, cada sessão teria que corresponder a um ato: pelo menos uma interpretação que faça sentido e que ajude o tratamento a continuar. Mas alguém poderia dizer que a psicoterapia é uma mistura dos dois. É possível. Tem momentos em que realmente há o que se chama em inglês de um “holding”, e aquilo tem um tempo próprio, efetivamente. Talvez tenha uma mistura dos dois. Mas são dois tempos bem distintos.
E o tempo do tratamento?
Aí não tem critério. Eu acredito mesmo que a psicanálise pode ser muito comprida. A psicoterapia mais ainda. Porque a psicanálise tem o seu lado intensivo, que a encurta de alguma forma, porque é de no mínimo três vezes por semana. E isso acaba sendo um tal peso na vida de alguém – não estou falando só financeiro, mas de deslocamentos, engajamentos – que a pessoa vai pensar quando isso pode parar. Eu acho que o critério do sofrimento em campo psíquico é a queixa do paciente. No sentido de que ele pode se queixar de alguma coisa que nos parece completamente normal, e não se queixar de outra que nos parece totalmente bizarra. O critério é que se ele não se queixa não é patológico, não temos motivo para reconhecer aquilo como patológico. Freud, quando lhe perguntaram sobre isso, disse que o tratamento se interrompe quando paciente e terapeuta não se encontram mais. Muito bem. Aí terminou.
Na Europa, o presente tem mais peso que o sonho de um futuro diferente.
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