Todos os sotaques | Revista Fleury Ed. 33

A maneira como falamos também diz muito sobre quem somos. O português falado no Brasil e suas inúmeras variações regionais têm tudo a ver com a nossa identidade.


A maneira como falamos também diz muito sobre quem somos. O português falado no Brasil e suas inúmeras variações regionais têm tudo a ver com a nossa identidade.

Basta um minuto de conversa para descobrirmos de onde vem a pessoa com quem estamos falando. Nem sempre nosso interlocutor precisa dizer em que cidade nasceu: seu sotaque já entrega se é do interior, do litoral, do Norte ou do Sul do país. “A língua é o principal elemento da identidade cultural de um povo”, explica Manoel Mourivaldo Santiago Almeida, professor associado da Universidade de São Paulo e pesquisador da história do nosso idioma.

Apesar de falarmos o mesmo português, cada região criou um jeito diferente de se expressar e, a partir disso, começou a se diferenciar das outras. Quando ouve algo espantoso, um gaúcho responde com um “bah” – teoricamente uma redução de “que barbaridade” –, enquanto um mineiro vai logo soltar um “nó”, querendo dizer “nossa!”. A influência dos colonizadores portugueses deixou um “s” chiado na fala de quem mora no litoral, enquanto a convivência com os imigrantes italianos faz alguns paulistanos abandonarem o “s” no plural das palavras. “Nenhum idioma é um bloco uniforme, e sim um reflexo da história do povo que o fala”, diz Suzana Alice Marcelino da Silva Cardoso, diretora do projeto do Atlas Linguístico do Brasil e professora associada da Universidade Federal da Bahia.

Quando os portugueses chegaram por aqui, já havia uma língua predominante, o tupi, falada pela maioria das tribos indígenas locais. Conforme os jesuítas e bandeirantes tentavam se entender com os índios, nascia um idioma com um toque bem brasileiro. Nossa criação mais original foi o “r” caipira, bem forte, que se fala encolhendo a língua na hora de dizer “porta”. Ele não é ouvido em Portugal nem fazia parte do tupi falado pelos povos indígenas que habitavam nosso litoral. Esse fonema, chamado de “r retroflexo”, nasceu da mistura entre o português e o tupi na convivência entre os portugueses e os índios de São Paulo de Piratininga (naquela época, a capital paulista tinha esse sobrenome tupi, que significa “peixe seco”).

Conforme os bandeirantes saíram de São Paulo e foram avançando pelo interior do país nos séculos 16 e 17, levaram o “r” caipira para Minas Gerais, para o Centro-Oeste, para o Paraná e até para Sergipe, provavelmente por meio dos que se aventuraram pelo rio São Francisco. “O sotaque caipira, na verdade, nasceu na capital”, afirma Santiago. “Mas o paulistano perdeu essa pronúncia porque mais tarde recebeu outras influências, como a dos italianos e a dos norte-americanos.”

Pouco restou do tupi, hoje considerado uma língua morta, mas ele é a fonte de palavras tipicamente brasileiras, como jacaré, mirim e pipoca, e de muitos nomes dados a lugares, como Pará (rio grande), Itaipu (rio ruidoso de pedras) e Curitiba (grupo de pinheiros). “Nos primeiros anos da colonização, a penetração pelo país tinha muito a ver com os caminhos sugeridos pelos indígenas. Por isso há tanta influência nos nomes de lugares e também de comidas, como mandioca e beiju”, diz Cardoso. O tupi foi parar até no dicionário francês. Depois de ocupar o Rio de Janeiro por duas décadas (entre 1555 e 1575), os franceses incorporaram oficialmente vocábulos tupiniquins como manioc (mandioca), acajou (caju) e jaguar (onça).

Tamanha influência indígena acabou por irritar a metrópole, a ponto de o uso da língua portuguesa ser imposto no Brasil, o que aconteceu em 1758, por um decreto do Marquês de Pombal, então governante de Portugal e de suas colônias.

Mas isso não significou, porém, que passamos a falar a mesma língua aqui e lá. “Em 1826, o Visconde de Pedra Branca já apontava diferenças nas palavras usadas no Brasil e em Portugal para descrever o mesmo objeto”, aponta Suzana, referindo-se ao mais antigo registro conhecido sobre a diferenciação das duas línguas. O Visconde, que viveu em Salvador, mencionou em sua obra várias palavras criadas pelos baianos que eram completamente desconhecidas pelos portugueses, como “cangote”, “capeta”, “farofa” e “mideixe” (me deixe). Ele também listou alguns verbetes típicos da Bahia e inspirados no banto, idioma de origem africana, como “caçula”, “batuque” e “quindim”.

Ainda hoje, o português que falamos no Brasil é bem diferente do que se ouve na Europa e em outros países que também foram colonizados por Portugal. Enquanto no exterior se fala de maneira mais rápida, comendo algumas letras e sílabas, por aqui ainda se conversa em um idioma parecido com aquele que nossos colonizadores usavam no século 16, mais pausado e pronunciando todas as sílabas. “Quem fala devagar, agora, somos nós. Nosso português manteve as características daquela época, enquanto o europeu mudou de ritmo”, afirma Santiago.


Uma história para cada sotaque

O “R” CAIPIRA CHIADO CARIOCA BAH, TCHÊ! DOIS PASTEL UAI, SEI NÃO...
Curiosamente, nasceu na capital paulista. O contato dos índios da região com os portugueses fez surgir o sotaque, que se espalhou para o interior do estado, para Minas Gerais e para a região Centro-Oeste com a expansão dos bandeirantes. O “s” chiado que se fala no litoral do país e no Rio de Janeiro é herança dos portugueses. No Rio, ele ficou mais forte com a presença da família real e de uma elite que considerava sinal de prestígio ter o sotaque dos membros da Corte. O Rio Grande do Sul era terra de espanhóis até os portugueses retomarem sua posse, no final do século 19. Seu jeito de falar vem da convivência com os jesuítas e os povos dos pampas, vizinhos argentinos e uruguaios. A convivência com imigrantes da Itália fez os paulistanos dispensarem o “s” do plural das palavras. Isso acontece porque o italiano deriva de uma vertente do latim que não usa a consoante – e sim as letras “i” e “e” para indicar o plural. Nem os mineiros sabem a origem do “uai”. Alguns dizem que veio do “why” (por que) dos ingleses que se estabeleceram no estado; outros, que era uma senha (a sigla de união, amor e independência) usada pelos inconfidentes para entrar em reuniões secretas.
“A língua é o principal elemento da identidade cultural de um povo”, explica Manoel Mourivaldo Santiago Almeida, professor associado da Universidade de São Paulo e pesquisador da história do nosso idioma.