Deve-se investigar aterosclerose subclínica? | Revista Médica Ed. 8 - 2007

Algoritmo proposto pelo grupo de trabalho Shape sugere investigação por imagem de aterosclerose e medidas de redução do LDL-colesterol em população com algum fator de risco.

Algoritmo proposto pelo grupo de trabalho Shape sugere investigação por imagem de aterosclerose e medidas de redução do LDL-colesterol em população com algum fator de risco.

A doença cardiovascular aterosclerótica é a principal causa de morte e de incapacidade no mundo, sendo muitas vezes fatal em sua primeira manifestação. Por que, então, não fazer o rastreamento de aterosclerose? Essa é a proposta formulada pelo grupo de trabalho Screening for Heart Attack Prevention and Education, mais conhecido como Shape, que sugere um roteiro com recomendações de investigação e de intervenção para prevenir a ocorrência de isquemias. O algoritmo proposto tem, como eixo principal, a avaliação mais intensiva de adultos sem história de eventos isquêmicos prévios para determinar a probabilidade de haver problemas dessa natureza no futuro. Segundo esse fluxograma, a existência de um fator de risco, a exemplo de hipertensão arterial, diabetes ou tabagismo, já levaria à aplicação de algum teste para a pesquisa de aterosclerose, como a medida da espessura das camadas média e íntima da carótida por ultra-som e a detecção de cálcio nas coronárias por tomografia multislice. Após esse passo, seria possível estratificar o risco em cinco faixas, de baixo a muito alto, e propor então um alvo para o LDL-colesterol, que, de acordo com o Shape, teria de ser tanto mais baixo quanto maior o risco. Para a faixa de pacientes com chance muito elevada de desenvolver fenômenos isquêmicos, ainda deveria ser considerada a realização de exames não-invasivos para a detecção de isquemia miocárdica, como o teste ergométrico e a cintilografia miocárdica, com o intuito de indicar ou não a execução de uma angiografia de coronárias.


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A outra face do Shape: bastidores e controvérsias
O Shape foi veiculado em 2006 como suplemento de uma publicação de prestígio, o American Journal of Cardiology, e desde então a controvérsia jamais o abandonou:
1) A proposta não passou por um processo de revisão competitiva por pares e sua publicação foi financiada integralmente por um laboratório fabricante de estatina. Ao mesmo tempo, muitos de seus autores declararam receber apoio financeiro da indústria de medicamentos e insumos diagnósticos ou ter participação acionária nessas empresas. Finalmente, o fluxograma não foi referendado por nenhuma das principais sociedades científicas da área.
2) O Shape recomenda valores-alvo de LDL que, por vezes, só são atingíveis com medicamentos que inibem a síntese de colesterol, sem que se conheça de modo profundo o impacto da redução agressiva isolada do LDL na diminuição da morbimortalidade cardiovascular. Por outro lado, a eliminação do tabagismo, o combate ao sedentarismo e a mudança dos hábitos alimentares, que comprovadamente reduzem o risco cardiovascular, não estão contempladas de forma clara no fluxograma, tampouco possuem metas.
3) Somente nos EUA, há 50 milhões de pessoas na faixa etária da população-alvo incluída no Shape. Nesse grupo, pelo menos 5 milhões já sofreram um evento isquêmico e outros 5 milhões não possuem nenhum dos fatores de risco apontados na proposta, não sendo elegíveis para a investigação. Mas o número de candidatos a rastreamento segue muito alto, da ordem de 40 milhões. Isso é economicamente viável?
Uma das principais virtudes do Shape foi a de ter chamado a atenção para a criação de estratégias de prevenção de doenças cardiovasculares. Os caminhos sugeridos, porém, talvez não sejam os mais efetivos e de maior custo-benefício. A controvérsia permanece.