Mieloma múltiplo | Revista Médica Ed. 3 - 2014

Neoplasia maligna caracterizada por proliferação descontrolada de plasmócitos na medula óssea e produção monoclonal de imunoglobulina, o MM acomete preferencialmente adultos ao redor de 60 anos.

Associação de dados morfológicos, imunofenotípicos, citogenéticos e de imagem favorece o estadiamento e a definição prognóstica dessa neoplasia plasmocitária.

O CASO

Paciente do sexo feminino, 51 anos, com quadro de astenia e dispneia aos grandes esforços, iniciado dois meses antes, e dores ósseas em quadril, além de radiografia com lesões líticas em bacia, fêmur e calota craniana. No hemograma, foi detectada anemia normocrômica/normocítica (Hb = 7,9 g/dL), associada ao achado de hemácias empilhadas (rouleaux). A eletroforese de proteínas demonstrou a presença de componente monoclonal na região de gamaglobulinas. Diante de tais dados, o hematologista pediu um mielograma, que evidenciou medula óssea hipercelular, com 45% de plasmócitos, o que sugeriu a hipótese de mieloma múltiplo (MM). Confira os resultados:

 

Por dentro do Mieloma Múltiplo
Neoplasia maligna caracterizada por proliferação descontrolada de plasmócitos na medula óssea e produção monoclonal de imunoglobulina, o MM acomete preferencialmente adultos ao redor de 60 anos. Uma vez que o tratamento passou por enormes avanços nos últimos anos, graças à introdução de novos medicamentos, há necessidade de um diagnóstico preciso para oferecer ao paciente todas as alternativas possíveis. Além disso, estudos citogenéticos indicam que o MM é uma doença heterogênea, o que sugere abordagem terapêutica adaptada ao risco de cada indivíduo. Isso significa que, em conformidade com o prognóstico estratificado pelos testes genéticos, pode-se fazer a seleção e a sequência das medicações mais apropriadas.

 

Amostra de medula óssea com mais de 40% de plasmócitos, caracterizando o MM
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A DISCUSSÃO

Exames iniciais


Na suspeita de neoplasia plasmocitária, deve-se investigar a presença de proteína monoclonal no soro e na urina – no caso, a proteinúria de Bence-Jones em urina de 24 horas. 

A eletroforese em gel de agarose ou a eletroforese capilar em amostras de soro e de urina configuram os métodos de eleição para uma triagem inicial. Quando há pico monoclonal no soro, sua quantificação precisa ser feita por análise densitométrica para permitir a comparação com avaliações subsequentes.

As imunoglobulinas séricas também têm de ser quantificadas por nefelometria, pois esta consegue dosar as não envolvidas, em especial quando diminuídas, um achado comum no mieloma múltiplo (imunoparesia). Por outro lado, a técnica costuma hiperestimar a concentração da proteína monoclonal, sobretudo quando muito elevada, razão pela qual convém preferir a densitometria para esse seguimento evolutivo.

A imunoeletroforese, ou imunofixação, é o método de escolha para confirmar a presença de proteína monoclonal e para definir o subtipo envolvido de imunoglobulina de cadeia pesada (IgG, IgM e IgA) e leve (kappa ou lambda). Preconiza-se seu uso diante de hipogamaglobulinemia – um achado frequente no mieloma de cadeia leve – ou quando a eletroforese de proteínas séricas se encontra normal, mas há suspeita de amiloidose primária ou de outras neoplasias plasmocitárias que cursam com baixa proteína monoclonal.

Já a dosagem de imunoglobulinas de cadeia leve livres no soro está indicada para todos os pacientes recém-diagnosticados com neoplasia plasmocitária, tendo especial relevância no seguimento de amiloidose primária, mieloma de cadeia leve e mieloma não secretor ou oligossecretor. O exame igualmente pode ser útil nos casos de gamopatia monoclonal de significado indeterminado, mieloma assintomático e plasmocitoma solitário, já que resultados anormais predizem um risco aumentado de progressão para MM sintomático.

Biópsia de medula óssea

No mieloma, os plasmócitos aparecem como grupamentos intersticiais ou nódulos focais, ainda com hematopoese preservada, ou exibem infiltrado difuso intersticial, com substituição do tecido hemato¬poético. Quando correspondem a 30% ou mais dos elementos celulares, pode-se confirmar o diagnóstico, embora raros casos de plasmocitose reativa igualmente atinjam tal percentual.

A hipótese de mieloma múltiplo ainda deve ser sugerida quando os plasmócitos formam efeito de massa que desloca os elementos normais da medula óssea, mesmo que sua porcentagem seja menor que 30% do contingente celular.

As atipias nos plasmócitos, que se caracterizam por imaturidade nuclear e pleomorfismo, raramente ocorrem em situações de plasmocitose reativa, sendo, portanto, um indicador valioso para diagnosticar a neoplasia plasmocitária. Da mesma forma, é possível observar atividade osteoclástica na biópsia de medula dos pacientes com mieloma múltiplo, o que resulta em lesões ósseas líticas à radiografia.

O exame imuno-histoquímico no material de biópsia tem indicação para quantificar precisamente o número de plasmócitos, por meio do marcador CD138, e para confirmar a monoclonalidade, com a pesquisa das cadeias leves kappa e lambda de imunoglobulinas.

O marcador CD56 apresenta expressão aberrante em 67% a 79% dos casos de mieloma múltiplo, entretanto é negativo em cerca de 80% das leucemias de plasmócitos. Alguns pacientes podem ser positivos para ciclina D1, o que se correlaciona com a presença da t(11;14)(q13;q32) e com o padrão morfológico linfoplasmocítico no mieloma múltiplo.

Citrometria de fluxo

Atualmente, a imunofenotipagem por citometria de fluxo consiste em uma ferramenta importante no diagnóstico e no monitoramento de pacientes com suspeita de mieloma múltiplo, uma vez que identifica e discrimina, de modo inequívoco, plasmócitos normais e neoplásicos na medula óssea, com sensibilidade de detecção de um plasmócito em 100 mil células.

A análise do presente caso demonstrou 40% de plasmócitos clonais, que expressavam o antígeno CD38 com elevada intensidade e também o CD138, além das imunoglobulinas de cadeia leve kappa e de cadeia pesada IgG, ambas intracitoplasmáticas. Os plasmócitos clonais expressavam de forma anômala o antígeno CD56 e apresentavam perda de expressão dos antígenos CD45 e CD19. Não foram identificados plasmócitos normais.

Indicações da imunofenotipagem nas gamopatias monoclonais
  • Diagnóstico primário de MM e diagnóstico diferencial com gamopatia monoclonal de significado indeterminado (GMSI) e plasmocitose reacional por meio da quantificação de plasmócitos na medula óssea e da demonstração da proporção de células fenotipicamente monoclonais e anômalas (a exemplo de expressão de CD56 e CD20 e de ausência dos antígenos CD19 e CD45). Pacientes com MM apresentam mais de 95% de plasmócitos monoclonais do total da população dessas células

  • Avaliação prognóstica de pacientes com mieloma sintomático por meio da expressão de antígenos como CD56, CD45, CD20, CD117 e CD81

  • Predição de evolução de pacientes com mieloma assintomático e GMSI por meio da quantificação de plasmócitos anormais, com porcentagem em relação ao total de plasmócitos

  • Estudo de doença residual mínima para avaliar a eficácia de tratamento e a predição de evolução, assim como para definir resposta completa rigorosa, como definido pelo International Multiple Myeloma Working Group



Gráficos bivariados de citometria de fluxo mostram a presença de plasmócitos neoplásicos (em azul) para cadeia leve de imunoglobulina kappa, com expressão aberrante do antígeno CD56 e perda anômala de CD45
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Cariótipo e FISH

O cariótipo deve ser feito na avaliação inicial da doença, pois oferece informação prognóstica relevante, tanto ao permitir a separação dos pacientes no grupo hiperdiploide e no grupo não hiperdiploide quanto ao demonstrar deleções, adições ou translocações cromossômicas. É importante que o exame seja complementado pela hibridação in situ por fluorescência (FISH), realizada nos plasmócitos clonais com sondas para investigar as alterações del(13q), del(17p), t(4;14), t(11;14) e t(14;16).

A del(13q) exerce efeito amplificador na expressão de genes reguladores do ciclo celular e se associa a uma curta sobrevida global ou livre de eventos. A del(17p), por sua vez, leva à perda de heterozigose do TP53 e é considerada característica de mieloma múltiplo de alto risco. Alterações estruturais no gene IGH, localizado no 14q32, também implicam risco elevado.

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Os pacientes são divididos em subgrupos identificados com base nas translocações envolvendo 14q32, tais como t(4;14)(p16;q32), que confere prognóstico desfavorável, t(11;14)(q13;q32), considerada de prognóstico favorável, e t(14;16)(q32;q23), que apresenta dados conflitantes, ora adversos, ora indiferentes.

É comum ainda a ocorrência de alterações no cromossomo 1, que estão associadas a deleções, quando se encontram no braço curto, e a amplificações, quando no braço longo. Ganhos no 1q21 aumentam o risco de progressão do mieloma múltiplo. Já a incidência de amplificações costuma ser mais observada em recaídas. 

Métodos de imagem

Os pacientes com mieloma múltiplo devem ser inicialmente avaliados com radiografia de crânio, coluna e ossos longos. Contudo, essa técnica tem baixa sensibilidade para detectar alguns focos osteolíticos, além de não identificar a maior parte das lesões extramedulares e ser limitada para verificar a resposta ao tratamento. Dessa forma, a tomografia com baixa dose de radiação, a ressonância magnética e o exame de PET/CT com glicose marcada com FDG têm sido cada vez mais usados nesses casos por apresentarem sensibilidade e especificidade superiores à radiografia. O estudo por PET/CT, em particular, ainda diferencia lesões ativas de inativas e contribui para a avaliação da resposta à terapia e para a investigação de suspeita de recorrência ou progressão da doença.

TC da bacia demonstra lesão lítica comprometendo o sacro (setas). As imagens de PET/CT evidenciam intenso aumento da atividade metabólica na lesão.
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TC aponta massa com atenuação de partes moles paravertebral esquerda (setas), em íntimo contato com o músculo psoas, que apresenta captação da glicose marcada (setas) nas imagens de PET/CT
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Critérios para o diagnóstico de discrasia plasmocitária, de acordo com o International Multiple Myeloma Working Group

Mieloma múltiplo sintomático (três critérios presentes)
Mieloma múltiplo assintomático (dois critérios presentes)
Gamopatia monoclonal de significado indeterminado(três critérios presentes)
  • Proteína monoclonal no soro <3 g/dL
  • Plasmócitos clonais na medula óssea <10%
  • Ausência de lesão orgânica, como hipercalcemia, insuficiência renal, anemia ou lesão lítica, atribuível à doença de plasmócitos
  • Proteína monoclonal sérica =3 g/dL e/ou plasmócitos clonais >10%
  • Ausência de lesão orgânica, como hipercalcemia, insuficiência renal,anemia ou lesão lítica, atribuível à doença de plasmócitos
  • Plasmócitos clonais na medula óssea =10%
  • Proteína monoclonal sérica ou urinária (exceto no MM não secretor)
  • Evidência de lesão orgânica atribuível à doença proliferativa de plasmócitos, como hipercalcemia (cálcio sérico >11,5 mg/dL) e insuficiência renal (creatinina >2 mg/dL)
  • Anemia normocrômica/normocítica (Hb <10 g/dL ou <2 g/dL do limite inferior da normalidade)
  • Lesão lítica, osteopenia grave ou fratura patológica


CONCLUSÃO

No caso avaliado, os mais de 40% de plasmócitos clonais detectados pelos estudos morfológicos e imunofenotípicos, o componente monoclonal em 8,25 g/dL e a presença de anemia e de lesões ósseas líticas confirmaram o diagnóstico de mieloma múltiplo. As dosagens séricas de ß2-microglobulina (10,5 mg/L) e albumina (4,4 g/dL) correspondem ao estágio III do Sistema Internacional de Estadiamento de Mieloma Múltiplo, conforme descrito:

EstágioCritérioSobrevida média
Iß2-microglobulina <3,5 mg/L e albumina =3,5 g/dL62 meses
IIII Não se classifica como estágio I e III44 meses
IIIIII ß2-microglobulina =5,5 mg/L29 meses

* Greipp PR, et al. J Clin Oncol. 2005; 23:341


O caso apresentado também ilustra situação de prognóstico desfavorável do ponto de vista citogenético, dada a presença da t(4;14). O tratamento desenhado para esses pacientes inclui quimioterapia e transplante de células-tronco hematopoéticas.

Assessoria Médica
Citogenética e Hematologia
Dra. Maria de Lourdes Chauffaille
[email protected]
Hematologia e Citometria de Fluxo
Dr. Alex Freire Sandes [email protected]
Dr. Matheus Vescovi Goncalves [email protected]
Dr. Edgar Gil Rizzatti [email protected]
Anatomia Patológica
Dra. Flávia Fernandes Silva Zacchi [email protected]
Dra. Leda Viegas de Carvalho [email protected]
Imagem
Dr. Gustavo Meirelles [email protected]