Miocárdio não compactado | Revista Médica Ed. 2 - 2016

Após afastar obstrução coronariana, cascata de testes cardíacos chega a essa hipótese, que é confirmada pela RM de coração

O CASO

Paciente do sexo masculino, 57 anos, procurou o cardiologista por ter tido, 30 dias antes, um episódio de síncope após carregar caixas pesadas por dois lances de escada. Relatava também um quadro isolado de tontura e sintomas sugestivos de pré-síncope seis meses antes da consulta, sem intercorrências anteriores a esses eventos. Como informação relevante obtida na anamnese, havia história familiar de morte súbita em dois parentes de primeiro grau (tios). Ademais, exames séricos pregressos levados à consulta revelaram uma dislipidemia, ou seja, colesterol total e LDL elevados, com valores de 264 mg/dL e 190 mg/dL, respectivamente.

Ao exame físico, o paciente mostrou-se em bom estado geral, corado e hidratado, com frequência cardíaca de 72 bpm e pressão arterial de 140 x 100 mmHg. A ausculta cardíaca evidenciou bulhas rítmicas, sem sopros nem outras anormalidades.

Devido à queixa, o especialista solicitou inicialmente o eletrocardiograma de repouso (ECG), o eletrocardiograma dinâmico e o ecocardiograma. Enquanto o primeiro não apontou nenhuma alteração significativa, o segundo flagrou vários episódios de taquicardia ventricular não sustentada. Por sua vez, o ecocardiograma assinalou discreto aumento tanto da espessura parietal quanto do padrão de trabeculação do ventrículo esquerdo.

Classificação da síncope de acordo com suas causas principais
  • Síncope reflexa ou neuromediada
    • Vasovagal (mediada por estresse emocional ou ortostase prolongada)
    • Situacional (tosse/espirro, estímulo gastrointestinal, pós-micção, pós-exercício e pós-prandial)
    • Hipersensibilidade do seio carotídeo
    • Formas atípicas (sem estímulo aparente ou com apresentação atípica)
  • Síncope cardiovascular
    • Arritmias como causa primária (bradicardias, taquicardias e outras, por exemplo, provocadas por drogas)
    • Doenças estruturais (valvopatias, infarto do miocárdio, isquemia, cardiomiopatias, massas e tumores, doenças do pericárdio, anomalias congênitas nas coronárias e disfunção de próteses valvares)
    • Embolia pulmonar, dissecção aguda da aorta e hipertensão pulmonar
  • Síncope decorrente de hipotensão ortostática
    • Disfunção autonômica primária
    • Disfunção autonômica secundária
    • Induzida por drogas
    • Hipovolemia

A DISCUSSÃO

Caracterizada por perda súbita e transitória da consciência e do tônus postural, seguida de recuperação espontânea e completa, a síncope resulta de hipofluxo cerebral transitório, geralmente decorrente de queda na pressão arterial, determinada pela redução do débito cardíaco, da resistência vascular periférica ou de ambos.

As doenças cardiovasculares constituem a segunda causa de síncope, com destaque para as arritmias primárias e secundárias a doenças estruturais. O distúrbio do ritmo pode levar a alterações hemodinâmicas, com diminuição do débito cardíaco e, consequentemente, do fluxo sanguíneo cerebral.

Métodos iniciais para a investigação de síncope

Desenvolvida em 1949 e usada na prática clínica desde a década de 60, a eletrocardiografia dinâmica, ou holter, registra a atividade elétrica do coração por meio de um monitor portátil que detecta distúrbios do ritmo cardíaco e alterações relacionadas à isquemia miocárdica, além de analisar a regulação autonômica.

Os episódios de síncope, de pré-síncope e de tonturas sem causa aparente estão entre as principais indicações para a realização do teste, de acordo com as diretrizes do American College of Cardiology e da American Heart Association (ACC/AHA). Nessas situações, o holter costuma ser bastante útil, uma vez que diagnostica, quantifica e classifica os episódios arrítmicos e determina as pausas e variações no segmento ST, além de avaliar a variação da frequência cardíaca. A monitoração é feita habitualmente por 24 horas contínuas, mas também há possibilidade de efetuá-la por um período maior, conforme a necessidade clínica.

O padrão-ouro para o diagnóstico da síncope derivada de arritmias é a ocorrência dos sintomas típicos simultaneamente ao registro do ritmo cardíaco alterado, capaz de produzir tais manifestações. Ademais, a ausência de arritmia durante um episódio sincopal apresenta grande valor para excluir a condição como mecanismo causador do evento.

Ainda entre os exames iniciais na investigação da síncope de origem cardíaca, o ecocardiograma merece destaque por ser essencial para o diagnóstico de doenças estruturais do coração. No esclarecimento dessas condições, a presença isolada de uma alteração estrutural cardíaca, como a evidenciada no caso relatado, auxilia o raciocínio clínico, embora não permita a elucidação completa da causa, implicando frequentemente a realização de outros testes. O método de imagem também fornece dados do desempenho cardíaco e tem importante papel na estratificação de risco, com base na fração de ejeção do ventrículo esquerdo.

Hipótese de doença arterial coronariana

Uma vez que o paciente em avaliação era hipertenso e dislipêmico, a exclusão de uma doença coronariana obstrutiva se impôs na investigação do caso. Nessas situações, a tomografia computadorizada (TC) com o uso de radiação ionizante e contraste iodado deve ser considerada porque, devido à sua elevada resolução espacial e à sua adequada resolução temporal, possibilita a análise das artérias coronárias com sucesso, com alto poder preditivo negativo para afastar a condição em indivíduos de baixo ou moderado risco. Além disso, o exame tem sido usado para caracterizar alguns tipos de cardiomiopatias, com o benefício de se tratar de um teste rápido e bem tolerado.

A TC de coronárias realizada no paciente não revelou calcificação nem obstruções significativas (figura 1). Contudo, as imagens reforçaram a presença de expressivo aumento do padrão de trabeculação do ventrículo esquerdo, o que já havia sido suspeitado pelo ecocardiograma (figura 2).

Miocárdio não compactado – uma doença distinta ou parte de outras cardiopatias?

O miocárdio não compactado foi primeiramente descrito em 1932, em associação com outras alterações congênitas, tendo sido relatado, de modo isolado, apenas em 1984. Caracteriza-se clinicamente por palpitações ou arritmias, sintomas de insuficiência cardíaca, tromboembolismo, síncopes ou mesmo morte súbita. Contudo, existem casos que permanecem assintomáticos por muito tempo. Com frequência, há história familiar positiva e, por vezes, o diagnóstico resulta do rastreamento de parentes de pacientes portadores da cardiopatia.

A ecocardiografia com Doppler é quase sempre capaz de identificar a doença. Amplamente disponível, o exame mostra o excesso de trabeculação característico do quadro, com relação de, pelo menos, 2,3:1 entre a espessura da porção esponjosa e o miocárdio compactado, apesar de alguns autores considerarem uma relação igual ou superior a 2,5:1. A função contrátil geralmente está preservada. A RM, por sua vez, complementa o diagnóstico, confirmando a presença das trabeculações e fornecendo dados prognósticos relacionados à presença de fibrose miocárdica.

Embora a maior parte dos relatos associe o miocárdio não compactado a pacientes jovens, sua incidência em adultos, como no caso apresentado, tem aumentado em trabalhos mais recentes. Diversas mutações relacionadas com maior trabeculação ventricular vêm sendo descritas. Como algumas dessas mutações se assemelham às vistas em outras cardiomiopatias, ainda há certa controvérsia se essa é uma doença distinta do músculo cardíaco ou se constitui uma forma menos típica de outras cardiopatias.


Da esquerda pra direita (Figura 1): TC de coronárias aponta dominância esquerda e tronco da coronária esquerda virtualmente ausente. Não há obstruções significativas nesses vasos.

Da esquerda pra direita (Figura 2): Excesso de trabeculação, em especial nas paredes dorsal e inferior do ventrículo esquerdo, fica mais evidente à TC de coronárias.


Da esquerda para direita (Figura 3): RM de coração confirma a presença de trabeculação aumentada, com relação entre os segmentos compactados e não compactados superior a 3:1, interessando às mesmas paredes vistas à tomografia.

Da esquerda para direita (Figura 4): Presença de pequena zona de intensidade de sinal aumentado à RM de coração, caracterizando realce tardio. A imagem indica pequenas áreas de fibrose, que não são suficientemente extensas para deteriorar a contratilidade, mas que podem estar associadas a arritmias de origem ventricular.

O diagnóstico de miocárdio não compactado

Diante das alterações evidenciadas, a investigação foi complementada pela ressonância magnética (RM) de coração, cuja importância vem aumentando no esclarecimento de condições cardíacas diversas.

As propriedades de resolução espacial, resolução temporal e, em especial, de resolução de contraste, além da possibilidade de revelar a existência de fibrose por meio da técnica de realce tardio, desde logo sugeriram que o método se destaca na exploração diagnóstica e na caracterização da etiologia em pacientes com diferentes tipos de doenças do miocárdio. Soma-se a isso a definição, com exatidão, dos volumes ventriculares, da fração de ejeção e do débito de ambos os ventrículos, o que garante uma avaliação complementar eficaz de casos selecionados, como o aqui descrito.

No paciente em estudo, o exame confirmou a presença de trabeculação aumentada, com contratilidade preservada e mínima área de realce tardio, compatível com pequena região de fibrose, provavelmente o foco responsável pelas arritmias.


CONCLUSÃO

O esclarecimento da etiologia da síncope é vital para avaliar o risco do indivíduo, permitir um tratamento direcionado e adequado e evitar recorrências. A integração dos exames, no caso clínico, confirmou o diagnóstico de miocárdio não compactado. Além disso, a determinação dos episódios de taquicardia ventricular associados ao achado de fibrose na ressonância, elemento considerado o substrato para o desenvolvimento de arritmias – podendo, inclusive, estar intimamente relacionado à ocorrência de morte súbita –, mostrou-se fundamental para a tomada da decisão terapêutica. O paciente foi encaminhado para colocação de desfibrilador implantável, com boa evolução clínica.



ASSESSORIA MÉDICA
Dr. Afonso Y. Matsumoto
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Dr. Andrei Skromov de Albuquerque
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Dr. Antonio Sergio Tebexreni
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Dr. Gilberto Szarf
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Dr. Ibraim Masciarelli Francisco Pinto
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Dra. Ivana Antelmi
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Dra. Paola Emanuela P. Smanio
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Dr. Valdir A. Moisés
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