Pelas curvas e retas da existência | Revista Fleury Ed. 39

Pesquisas sustentam que as pessoas são mais felizes aos 20 que aos 50. Seriam mesmo?

Pesquisas sustentam que as pessoas são mais felizes aos 20 que aos 50. Seriam mesmo?

Aos 20 anos você tem o rosto que a natureza lhe deu e, aos 50, aquele que você merece, dizia a estilista e ícone fashion Coco Chanel, nos anos 1920. Como os traços, o quanto se é feliz também muda ao longo da vida. Mas seria a felicidade maior na juventude, quando estamos pela primeira vez exercitando a liberdade e vivenciando momentos de descoberta e conquista? Ou esse sentimento seria mais presente na meia-idade e na velhice, quando as preocupações aumentam, mas a autoaceitação também? Dezenas de pesquisas, índices e organizações empenham-se há anos em oferecer uma resposta a questões em torno desse tema.

A Organização das Nações Unidas (ONU), por exemplo, não apenas criou o Dia Internacional da Felicidade, em 2012, como também traz uma lista dos países mais felizes do mundo em seu relatório anual, elaborada em parceria com o instituto Gallup e um grupo de universidades liderado pela inglesa Oxford. Esse estudo leva em conta não apenas a expectativa de vida e o PIB per capita – duas cifras relacionadas ao crescimento econômico – como também o bem-estar oferecido pelo governo (saúde, educação e transporte, principalmente), além da confiança no futuro e nas instituições locais.

Na edição de 2017, o Brasil ocupou a pouco animadora 22a posição e, entre os países das Américas, apenas o Canadá figurou nas dez primeiras posições (7a). Os três “campeões da felicidade” foram a Noruega, a Dinamarca e a Islândia. A ideia da ONU é que esses dados sejam usados por governos para implementar políticas públicas que possam melhorar a vida da população. Por outro lado, é no campo privado que esse tipo de estudo vem rendendo mais frutos.

Mesmo estando à frente do levantamento da ONU, os países nórdicos não são formados apenas por cidadãos felizes. Esse contraponto vem de um outro tipo de pesquisa que ganhou força nos últimos dez anos, que aponta para a existência de uma “curva da vida”, na qual as pessoas mais felizes seriam as da faixa dos 20 anos e as idosas, e as mais infelizes, as que estão entre os 45 e 50 anos. A maior parte desses estudos é conduzida por economistas e não leva em conta aspectos psicológicos individuais.?

“Temos de pensar um pouco sobre o conceito de felicidade que nos está sendo vendido. Não existe felicidade intermitente e, sim, momentos felizes que podem acontecer ao longo da vida, em todas as fases dela.”
Gláucia Araújo, psicanalista e coordenadora do Instituto Brasileiro de Ciências e Psicanálise (IBCP)

A idade infeliz

Uma das pesquisas dessa linha foi conduzida pelos economistas ingleses David G. Blachflower e Andrew J. Oswald. A dupla entrevistou mais de 500 mil pessoas nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa Ocidental, de todas as faixas etárias e extratos sociais, perguntando-lhes em que grau de contentamento se encontravam naquele determinado momento da vida (entre mais ou menos feliz). A maior parte dos entrevistados entre os 45 e os 50 se declarou menos contente por ter muitas preocupações com o bem-estar dos filhos adolescentes (ou jovens adultos em início de carreira) ou dos pais idosos, com suas futuras aposentadorias ou possíveis dívidas.

Já no caso dos mais jovens, houve maior incidência de identificação com a felicidade. Isso porque, entre os 20 e os 30 anos, acontece um “choque de reminiscência”, termo usado por psicólogos para definir o impacto causado por primeiras experiências como um relacionamento amoroso, entrar na universidade, viver longe dos pais e, mais tarde, casar e/ou ter filhos. Os idosos (dos 60 anos em diante) também fariam parte desta faixa mais feliz, por sentirem-se mais livres das obrigações que tinham antes (com o trabalho, a família e as interações sociais) e menos preocupados com os julgamentos alheios, que lhes incomodavam quando eram mais jovens ou de meia-idade.

O lugar da individualidade

Tanto as pesquisas dos ingleses quanto as de outros economistas encontraram padrões que se repetem também em continentes com ambientes socioeconômicos bem diferentes dos países mais ricos, como América Latina e Ásia. Nas áreas menos favorecidas, foi observada a mesma ocorrência de felicidade concentrada nos primeiros 30 anos, enquanto a meia-idade era o ponto mais baixo da curva.

Entretanto, para o sociólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Ribeiro, não há como colocar no mesmo patamar um homem branco europeu, com renda anual maior que R$ 500 mil e outro negro, brasileiro, desempregado, ambos com a idade de 46 anos. “Por mais que possam surgir alguns pontos de semelhança, é impossível que duas pessoas que vivam em ambientes tão opostos tenham percepções de felicidade iguais”, explica. “Esse tipo de pesquisa tem uma tendência generalizante que eu considero pouco confiável”, avalia.

Mas mesmo os estudos conduzidos por economistas sugerem que essa generalização nem sempre existe. Um idoso que viveu a época da Segunda Guerra terá sentimentos diferentes de um outro da mesma faixa etária que viveu sempre em lugares pacíficos, apontou a pesquisa de Blachflower e Oswald. O mesmo se aplica a jovens que se tornam responsáveis pela renda familiar muito cedo, se comparados aos que que tiveram a oportunidade de cursar a universidade na faixa dos 20 anos. “É certo que existe um grande número de levantamentos desse tipo que confirmam alguns padrões, mas não podemos deixar de fazer uma reanálise desses dados levando-se em conta as particularidades da vida daquela pessoa e naquele lugar”, reforça Ribeiro.

Entre os psicanalistas e psicólogos, a curva da vida é também tema de discussão. A psicanalista paulista Miriam Goldemberg vem realizando pesquisas sobre o tema entre suas pacientes e comentou recentemente, em artigo no jornal Folha de S.Paulo, que observa que maior parte de suas pacientes entre os 45 e 50 está passando por uma fase em que não se identifica mais com a juventude, mas também não se vê como idosa, o que aumenta a percepção de infelicidade. Já a psicanalista e coordenadora do Instituto Brasileiro de Ciências e Psicanálise (IBCP) Gláucia Araújo não concorda com a teoria surgida dessa classe de pesquisa. Para a psicanalista, cada momento da vida traz uma carga de alegrias diferente. “Temos de pensar um pouco sobre o conceito de felicidade que nos está sendo vendido. Não existe felicidade intermitente, e, sim, momentos felizes que podem acontecer ao longo da vida, em todas as fases dela”, comenta.

Glaucia conta que, entre seus pacientes, o que observa é que a maneira de lidar com as dificuldades naturalmente muda com o tempo e, com isso, as fontes de alegria também migram para outras ações ou momentos. “Há quem era muito feliz em sair para dançar todas as semanas aos 20 anos, mas aos 60 sente-se igualmente pleno viajando com os filhos e netos, por exemplo. A mesma pessoa poderia se preocupar mais na juventude em crescer na carreira ou formar uma família, enquanto na terceira idade o foco é poder usufruir de um bom plano de previdência que lhe permita aproveitar melhor seu tempo. As ‘capas’ das alegrias e dos problemas são diferentes, mas sua essência continua a mesma”, reflete.

Mesmo sem consenso entre economistas, sociólogos e psicanalistas, uma coisa é certa: os momentos felizes estão à nossa espera aos 20, aos 50 ou aos 75, a expectativa de vida atual no Brasil. Entre tantas lições e aprendizagens que o exercício do viver nos apresenta, desenhar nossa própria curva da felicidade pode estar entre as principais.