Uma porta para o desconhecido | Revista Fleury Ed. 38

Nosso lado curioso também nos leva a explorar terrenos misteriosos e, por vezes, arriscados, como o desejo alheio, as mentiras que nos contam e as aventuras que desafiam a nossa zona de conforto.

Nosso lado curioso também nos leva a explorar terrenos misteriosos e, por vezes, arriscados, como o desejo alheio, as mentiras que nos contam e as aventuras que desafiam a nossa zona de conforto, aponta o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e vencedor do prêmio Jabuti na área de Psicologia e Psicanálise


Curiosidade patológica


A curiosidade também pode assumir uma forma patológica, alerta Dunker. “Uma delas é a curiosidade inconsequente; a outra é a curiosidade com o outro como forma de manter a ignorância sobre si mesmo”, esclarece. A curiosidade inconsequente, explica o psicanalista, é aquela que dirigimos a todas a coisas, de modo errático e indeterminado, criando um estado em que apenas consumimos informação em vez de investigar o mundo. “Muitos curiosos querem que sua curiosidade seja gerenciada pelo YouTube ou pelas redes sociais, onde passivamente se alimentam de mais saber, sem consequência. É o saber sobre a vida dos outros para criticá-los, para se comparar, para viver uma vida por procuração, como no filme A vida dos outros. É um reflexo e o meio mais simples para manter sua vida em estado de irrelevância e impessoalização. Nessa medida, não estamos falando em curiosidade para enfrentar o risco, mas apenas para fingir que ele não existe, para nos defendermos da experiência. Essa é a segunda forma de curiosidade patológica: saber sobre tudo para não saber sobre o que implica aquela pessoa em seu desejo.”


Explorando as fantasias

Quem dá vazão à curiosidade começa uma jornada sem saber onde vai chegar. “A complexidade do mundo decorre de que ele não é bipolar nem tem regiões seguras e pontos que não possamos rever, questionar e reinventar”, afirma Dunker. Por isso mesmo, a curiosidade nos prepara para gerenciar a incerteza e mexe com nossos sentimentos de segurança. “A curiosidade é a mãe da aventura. Não é assim que começam muitos problemas de gerenciamento da vida familiar ou conjugal? A curiosidade sobre onde anda aquele seu velho amor da sétima série, a curiosidade sobre como seria se sua vida fosse outra ou se você resolvesse explorar o lado B de sua vida e de suas fantasias?”


Risco ou controle?

Não gostamos muito de pensar nisso, mas a curiosidade também nos leva a correr riscos. “Saudamos a curiosidade, mas ao mesmo tempo a punimos. Afinal, não se diz que ‘a curiosidade matou o gato’? Adoramos que nossas crianças se interessem pelo mundo e deem livre curso às suas investigações, mas como reagimos quando essas investigações recaem sobre drogas, pessoas de que não gostamos ou temas e contextos que consideramos perigosos?”, questiona o psicanalista. Em uma cultura de aversão a riscos, chegamos a um dilema: “Queremos que a criança vá em frente, mas queremos controlar onde é esse ‘em frente”.


Mentiras em xeque

O psicanalista observa que, na infância, a curiosidade vira uma ferramenta poderosa para duvidar da palavra de pais, professores e autoridades – e considera essa uma atitude saudável para toda a vida. “Eles mesmos, os adultos, nem sempre sabem algo sobre seus próprios desejos. Além disso, habitualmente mentem, especialmente em torno de certos assuntos em relação aos quais acham importante proteger as crianças: a maldade, a morte, a sexualidade, os vícios e as incoerências dos adultos”, afirma Dunker.


A descoberta do desejo

A curiosidade é essencial para o desenvolvimento das crianças porque encoraja a criação e a descoberta, pondera Dunker. Nesse processo, revela-se o nosso querer. “A curiosidade é uma das modalizações possíveis do nosso desejo. Freud dizia que a origem da curiosidade em geral é a curiosidade sexual. Não devemos entender por isso o coito nem o interesse em compreender a reprodução humana, mas o desejo de saber sobre o desejo dos outros. O que eles querem de nós? O que eles esperam de nós?”, questiona.