Epilepsia em casos de demência

Piora da condição cognitiva deve levar à suspeita de crises epilépticas em idosos.

CASO CLÍNICO

Mulher, 86 anos, em acompanhamento ambulatorial havia quatro anos por dificuldade de memória recente, com piora gradual, associada a comprometimento da orientação espacial. Apresentava também quadro progressivo de dependência para as atividades de vida diária e, cerca de seis meses antes, episódios de confusão mental. No início, foi medicada apenas com rivastigmina, associada, atualmente, à memantina. Tinha, como antecedentes pessoais, hipertensão arterial e diabetes controladas. Enquanto os testes laboratoriais estavam normais, o exame neurológico revelou os seguintes achados:

  • Miniexame do estado mental: 20/30, caracterizado por dificuldade de memória e de orientação, assim como de desenhar e escrever frases;
  • Dificuldade no teste do relógio;
  • Fluência verbal com nomes de animais: três.


Dessa forma, a paciente, com diagnóstico de doença de Alzheimer (DA), foi encaminhada para nova investigação de piora abrupta do quadro, incluindo realização de eletroencefalograma (EEG), devido ao agravamento da função cognitiva com flutuação do nível de consciência.

O EEG (figuras 1 e 2A, 2B e 2C) flagrou oito crises, com duração de 40 a 70 segundos, que ocorreram sem evidência de alteração no comportamento da paciente. No seguimento clínico, o neurologista optou pela introdução de lamotrigina. A paciente evoluiu com melhora do quadro e cessação das crises, conforme EEG controle (figuras 3A e 3B), retornando ao estado basal anterior.

Eletroencefalogramas

EEG inicial para investigação de piora abrupta do quadro

A atividade elétrica cerebral de repouso mostrou-se simétrica, de baixa voltagem e desorganizada, constituída por ritmos teta e, menos frequentemente, delta.

Não foram registrados ritmo dominante posterior nem elementos próprios do sono.

Após 42 minutos do início do exame, foram observadas, durante 15 minutos, oito crises eletrográficas, caracterizadas por atividade beta ritmada de baixa voltagem de projeção no hemisfério direito, predominando na região centroparietotemporal, que evoluiu em frequência e amplitude. A duração de cada crise variou de 40 a 70 segundos, mas os acompanhantes não perceberam mudança no comportamento da paciente.


Figura 1 – EEG mostra alentecimento da atividade de base.

(A)

(B)

(C)

Figuras 2A, B e C : EEG com três amostras em sequência de uma crise eletrográfica.


EEG controle, após dois meses de tratamento com lamotrigina
Exame obtido em vigília e sono evidenciou alentecimento difuso da atividade elétrica cerebral de base, de grau leve.  Em relação ao EEG prévio, observou-se melhora do padrão de organização da atividade elétrica cerebral de base, não tendo mais havido crises eletrográficas. A paciente retornou ao estado basal, antes da piora.


Figura 3A – EEG em vigília.


Figura 3B – EEG em sono.


DISCUSSÃO

A epilepsia pode  começar em qualquer faixa etária, sendo dois os picos de incidência: na infância e nos idosos. Nestes, está principalmente relacionada às doenças cerebrovasculares e degenerativas.

Em pacientes com DA e outras síndromes demenciais, é frequente a piora aguda e subaguda da função cognitiva durante a ocorrência de distúrbios toxicometabólicos e infeccções, que, mesmo quando de baixa gravidade clínica, podem causar grande repercussão nessa função. No mesmo contexto de piora, especialmente diante de flutuações do padrão cognitivo de base, deve-se suspeitar da possibilidade de epilepsia subjacente.

Os cuidadores e familiares podem relatar que o paciente parece mais confuso do que o normal, com variação ao longo dos dias. Essas mudanças merecem atenção, uma vez que novas evidências indicam que existe a possibilidade de ocorrerem crises epilépticas nos estágios iniciais da DA, as quais contribuem para o declínio cognitivo.

Opções de tratamento com fármacos anticrises (FAC) estão disponíveis, mas a decisão de tratar a epilepsia e a escolha do medicamento em um indivíduo com DA podem ser difíceis, assim como a de controlar, com FAC, a atividade epileptiforme (AE) , ou seja, a ocorrência de AE interictal na ausência de padrão ictal no EEG e de crises clínicas indubitáveis. A AE está frequentemente associada à DA e essa relação pode ter implicações terapêuticas, pois a atividade epiléptica pode ocorrer nos estágios iniciais da doença e contribuir para a patogênese e para maior declínio cognitivo.

Vale ressaltar que, na prática clínica, crises em pacientes com DA podem facilmente não ser reconhecidas, visto que geralmente se apresentam sem manifestações motoras e têm chance de se sobrepor a outros sintomas da doença. Dessa forma, para a detecção da AE, idealmente, é necessário o monitoramento eletroencefalográfico prolongado, com registro de períodos de vigília e de sono.

O tratamento de crises clínicas com FAC, em doses baixas, é geralmente bem tolerado e eficaz. Além disso, estudos sobre DA em modelos de camundongos sugerem que certas classes de tais fármacos, como o levetiracetam e a lamotrigina, reduzem a hiperexcitabilidade da rede e podem ter propriedades modificadoras da doença. Esses medicamentos têm, como alvo, os mecanismos de epileptogênese que envolve o amiloide beta e tau. Os ensaios clínicos direcionados à hiperexcitabilidade de rede em pacientes com DA ainda devem identificar se os FAC ou estratégias relacionadas podem melhorar os sintomas cognitivos ou reduzir seu declínio.

CONCLUSÃO  

O caso clínico ilustra a importância da investigação de crises epilépticas em pacientes com demência. A epilepsia é um fator de piora clínica e o tratamento da condição com fármacos adequados pode influenciar a evolução clínica.

BIBLIOGRAFIA SUGERIDA  

Arjune Sen, Valentina Capelli and Masud Husain. Cognition and dementia in older patients
with epilepsy. Brain 2018: 141; 1592–1608 doi:10.1093/brain/awy022.

Keith A Vossel, MD, Maria C Tartaglia, MD, Haakon B Nygaard, MD, Adam Z Zeman, FRCP, and Bruce L Miller, MD. Epileptic activity in Alzheimer’s disease: causes and clinical relevance. Lancet  Neurol. 2017 April ; 16(4): 311–322. doi:10.1016/S1474-4422(17)30044-3.

CONSULTORIA MÉDICA

Dra. Carmen Lisa Jorge
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