Investigação por imagem da dor abdominal recorrente em adolescente

Ultrassonografia auxilia o diagnóstico, métodos confirmam a suspeita e definem a extensão do quadro

O CASO


Paciente do sexo feminino, 14 anos, procurou o pediatra com história de dor abdominal intensa, iniciada fazia um ano, a ponto de a impedir de ir à escola com frequência. Referia
ainda episódios de diarreia, eventualmente com sangue, e interrupção da menstruação havia seis meses. Nesse período, recebeu antibioticoterapia, com melhora parcial dos sintomas, mas, após um mês de tratamento, evoluiu com piora do quadro e perda total de 8 kg de peso.

Ao exame físico, apresentava-se descorada, emagrecida e com dor à palpação profunda na fossa ilíaca direita. Nos exames laboratoriais, foram observados como achados relevantes
anemia hipocrômica microcítica, proteína C reativa de 22 mg/dL e calprotectina fecal de 2.000 mcg/g de fezes.

Diante disso, o médico solicitou uma ultrassonografia (USG) de abdome, que evidenciou espessamento parietal de alças intestinais localizadas na fossa ilíaca direita, além de hiperecogenicidade da gordura mesentérica e linfonodomegalias adjacentes. O estudo com Doppler colorido mostrou aumento da vascularização da parede das alças e do mesentério na fossa ilíaca direita.

Sob a hipótese diagnóstica de doença inflamatória intestinal (DII), a paciente realizou colonoscopia, esofagogastroduodenoscopia e enterografia por ressonância magnética
(entero-RM) para melhor avaliação da extensão do acometimento intestinal e o estadiamento da condição.

Figura 1. USG da fossa ilíaca direita evidencia alça intestinal com paredes espessadas (pontas de seta), com redução do peristaltismo e aumento da ecogenicidade do mesentério (setas azuis) devido à proliferação da gordura mesentérica.

Figura 2. USG com Doppler colorido mostra aumento da vascularização nos tecidos, tanto na parede do intestino como no mesentério.


DISCUSSÃO
A queixa de dor abdominal responde por cerca de 2% a 4% de todas as consultas pediátricas, sendo a disfunção gastrointestinal funcional (DGIF) – que abrange a dispepsia
funcional, a enxaqueca abdominal, a síndrome da dor abdominal funcional e a síndrome do intestino irritável – a causa mais comum. Aproximadamente 25% das crianças e adolescentes entre 4 e 18 anos completam os critérios diagnósticos para DGIF pela classificação de Roma IV.
De acordo com o quadro clínico e laboratorial, no entanto, outras condições potencialmente mais graves, sobretudo os quadros orgânicos, devem ser investigadas.


Figura 3. Na entero-RM, as paredes das alças se tornam mais visíveis em vista de sua distensão pelo preparo via oral, realçando o segmento do íleo distal acometido, que apresenta espessamento parietal (seta amarela).

Os exames endoscópicos na investigação de primeira linha


Na suspeita de DII, tanto a Sociedade Europeia quanto a Norte-Americana de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição Pediátricas recomendam a realização da colonoscopia, preferencialmente com progressão até o íleo terminal, e da endoscopia digestiva alta como métodos essenciais na ocasião do diagnóstico.

A avaliação endoscópica do íleo e do cólon identifica sinais macroscópicos de DII, verifica a extensão da doença e exclui outras condições associadas ao quadro clínico, além de coletar material para histologia.


Achados como inflamação contínua da mucosa com perda do padrão vascular, friabilidade mucosa e envolvimento retal são mais comuns na colite ulcerativa. A hipótese de doença de Crohn ganha força na presença de envolvimento do íleo terminal, de colite segmentar, de úlceras profundas ou serpiginosas, de aspecto calcetado da mucosa, de fístulas ou estenoses e de ausência de acometimento retal. Todos esses achados, no entanto, não bastam para uma conclusão diagnóstica, tanto que sistemas de classificação validados também têm sido utilizados.


O alcance do íleo terminal na colonoscopia é fundamental nesses pacientes. Isso porque, na doença de Crohn, o íleo é muitas vezes o único segmento afetado e suas alterações podem não se estender até a válvula ileocecal. O acometimento dessa estrutura, no entanto, não faz diagnóstico de Crohn, uma vez que pode estar presente em pacientes com colite ulcerativa, sobretudo se houver pancolite, o que ocorre em cerca de 25% dos casos.


A enteroscopia, por sua vez, tem importância limitada na investigação inicial do intestino delgado, já que estão disponíveis alternativas menos invasivas e com alta sensibilidade, como a cápsula endoscópica (CE) e exames radiológicos.


A CE flagra alterações mucosas superficiais não encontradas por outros métodos, como enantema, atrofia vilosa, erosões, ulcerações e estreitamentos. A ausência desses achados apresenta alto valor preditivo negativo (entre 96% e 100%). Contudo, o método possui algumas limitações: é pouco específico e não permite a obtenção de amostras para o estudo histológico, além de oferecer risco de retenção na presença de estreitamentos.


Vale ponderar que a ausência de sintomatologia específica do trato digestório alto não exclui a presença de inflamação nessa porção e, portanto, a esofagogastroduodenoscopia se mantém relevante nesse contexto
.

Calprotectina fecal funciona como um bom marcador de inflamação intestinal

A dosagem da calprotectina fecal funciona como um bom exame tanto para a diferenciação entre quadros abdominais orgânicos e funcionais quanto para o acompanhamento da atividade inflamatória de DII.

A substância, afinal, é uma proteína ligadora de cálcio e zinco, presente nos granulócitos, e sua quantidade nas fezes depende da migração de neutrófilos da parede intestinal inflamada para a mucosa.


Essa característica torna a calprotectina um ótimo marcador de inflamação intestinal, mais específico e sensível que os séricos (PCR e VHS). Além disso, o fato de ser estável à temperatura ambiente e de resistir à degradação pelas enzimas proteolíticas do trato gastrointestinal reforça sua utilidade na avaliação da inflamação da mucosa intestinal.


A importância da investigação por imagem


A USG é o exame de escolha no início da investigação por imagem da dor abdominal recorrente, uma vez que constitui um método não invasivo, sem radiação e sem necessidade de anestesia em crianças, além de se mostrar altamente sensível e
específica para o diagnóstico de diversas doenças gastrointestinais e hepatobiliares, quando realizada de forma adequada.

O método permite identificar facilmente litíases biliares ou renais. No estudo das alças intestinais, configura excelente recurso e costuma ser bastante utilizado na investigação inicial de DII, também com elevadas sensibilidade e especificidade.

Como parâmetros diagnósticos, a USG usa um espessamento de parede de alças maior que 3 mm, aumento da vascularização ao Doppler colorido, proliferação da gordura mesentérica, linfonodomegalias e perda do peristaltismo. E ainda possibilita a detecção de abscessos e de sinais indiretos de perfuração, a exemplo de presença de líquido livre espesso ou coleções heterogêneas de limites imprecisos na cavidade abdominal.

Atualmente, além da USG convencional e com Doppler colorido, diversos estudos que utilizam contraste intravenoso, bem como a elastografia com shear wave elastography (SWE), têm sido publicados, com resultados promissores. Entre as limitações da USG estão a variação dos resultados de acordo com o equipamento e com o operador e a dificuldade em determinar precisamente o grau de acometimento intestinal.

A entero-RM, por sua vez, é o exame de escolha no estadiamento da DII, uma vez que define a extensão do quadro de forma mais precisa. Por meio de algumas sequências, como a difusão, e do uso do meio de contraste intravenoso, pode-se determinar a atividade da doença e detectar fibrose, além de identificar fístulas e abscessos. Vale
ressaltar, contudo, que o exame requer preparo via oral e não pode ser realizado se houver necessidade de anestesia, o que é frequente em crianças mais novas.

Nesses casos, uma alternativa é a enterografia por tomografia computadorizada (entero-TC), que pode ser feita sem anestesia devido à sua rapidez em adquirir as imagens. A desvantagem do método fica por conta do uso da radiação ionizante, apesar de a dose ser reduzida ao mínimo nos protocolos pediátricos direcionados com a utilização de equipamentos de última geração.

Figura 4: USG avalia o acometimento de alças intestinais, principalmente com a utilização do transdutor de alta resolução, que torna possível a visualização de todas as camadas de uma alça: M (mucosa), MM (muscular da mucosa), SM (submucosa), MP (muscular própria) e S (serosa).

O Fleury utiliza, nesse tipo de exame, o tomógrafo Somaton Force, que, além de emitir menos radiação, permite a obtenção de imagens em movimento com ótima qualidade graças à tecnologia Freezing Motion, reduzindo a necessidade de sedação.


CONCLUSÃO
No caso apresentado, a avaliação inicial pela USG reforçou a hipótese diagnóstica de DII, tendo dado celeridade à condução clínica, o que levou à indicação das endoscopias e da
entero-RM. Esse exame, em particular, contribuiu com o estadiamento da doença, na medida em que caracterizou a extensão de alças acometidas e a presença de atividade da
condição.
Vale assinalar que a interação entre o médico solicitante e o radiologista é sempre essencial para a assertividade dos métodos de imagem, possibilitando a realização somente daqueles exames essenciais.


Consultoria Médica


Imagem em Pediatria
Dra. Lisa Suzuki
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Gastroenterologia Pediátrica
Dra. Márcia W. Esteves Cavichio
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Endoscopia Digestiva
Dr. Rodrigo A. Rodrigues
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