Adenocarcinoma in situ do colo do útero | Revista Médica Ed. 4 - 2015

A integração dos métodos diagnósticos facilita a investigação das doenças do trato genital inferior, particularmente a abordagem inicial das condições mais raras.

A integração dos métodos diagnósticos facilita a investigação das doenças do trato genital inferior, particularmente a abordagem inicial das condições mais raras.


O CASO

Paciente de 27 anos de idade, assintomática, foi encaminhada para a realização de colpocitologia, colposcopia e vulvoscopia(foto). O exame evidenciou junção escamocolunar completamente visível, zona de transformação totalmente ectocervical (tipo 1), presença de epitélio acetobranco denso na projeção de 10 às 12 horas, mosaico grosseiro na projeção de 12 às 3 horas e orifícios glandulares espessados junto ao orifício externo e na porção média da superfície cervical. Diante desses achados anormais, realizou-se biópsia do colo do útero em 1, 11 e 12 horas. Os resultados da colpocitologia e do estudo anatomopatológico foram compatíveis com adenocarcinoma endocervical in situ e lesão intraepitelial escamosa de baixo grau (NIC I) associada a alterações citoarquiteturais condizentes com infecção pelo papilomavírus humano (HPV).


 

Achados colposcópicos anormais: epitélio acetobranco denso na projeção de 10 às 12 horas, mosaico grosseiro na projeção de 12 às 3 horas e orifícios glandulares de bordas espessadas junto ao orificio externo e na porção média da superfície cervical.
ARQUIVO FLEURY



Sobre o adenocarcinoma in situ do colo do útero

Descrito pela primeira vez em 1952, o adenocarcinoma in situ (AIS) do colo uterino é uma doença infrequente, considerada o precursor do adenocarcinoma endocervical invasivo. Nas últimas décadas, porém, aumentou a incidência de tumores glandulares endocervicais e de suas lesões precursoras, sobretudo em mulheres jovens, provavelmente em decorrência de taxas maiores e mais eficazes de rastreamento e diagnóstico, da maior exposição a fatores de risco e do aumento do número de infecções por HPV, bem como de alterações no sistema de classificação citológica, no qual têm sido valorizadas as alterações no epitélio glandular. 


Dados epidemiológicos dos Estados Unidos relatam incidência de AIS de 1,25 e 0,31 por 100.000 mulheres/ano em pessoas de etnias branca e negra, respectivamente. A média etária de acometimento pelo AIS é de 37 anos, ou seja, cerca de uma década antes da média de idade acometida pelo adenocarcinoma invasor. De todas as neoplasias do colo do útero, o adenocarcinoma representa 25% dos casos, dos quais de 1% a 9% são AIS. 


Os fatores de risco para o AIS são os mesmos do adenocarcinoma invasor, especialmente a infecção persistente por HPV 16 e 18,  de alto risco oncogênico. Estudos sugerem que o HPV 18 é encontrado em aproximadamente 50% dessas neoplasias. Há também relato de elevação do risco com a maior exposição a estrogênios endógenos (por exemplo, obesidade) e exógenos (contraceptivos orais, terapia de reposição hormonal pós-menopáusica). Ao contrário do que ocorre com o carcinoma escamoso do colo do útero, o tabagismo não parece aumentar o risco para o adenocarcinoma.


Clinicamente, o AIS mostra-se quase sempre assintomático e geralmente não visível ao exame ginecológico. Algumas mulheres podem queixar-se de sangramento por via vaginal ou de sinusiorragia. Muitas vezes, a primeira suspeita surge pela presença de alterações citológicas na colpocitologia, conforme discutido a seguir.


A DISCUSSÃO

A aplicação do tripé diagnóstico, com a correlação de colpocitologia, colposcopia e histopatologia, tem grande importância para a detecção de lesões precursoras e neoplasias do trato genital inferior, como observado especialmente para as lesões escamosas. Por outro lado, existem alguns desafios no rastreamento e no diagnóstico de alterações glandulares cervicais.


Colpocitologia

Tida como a primeira etapa para o rastreamento do câncer de colo do útero, a colpocitologia apresenta menor sensibilidade para a detecção de lesões glandulares, em comparação às escamosas. Os motivos que levam a um maior índice de falso-negativo na citologia para o diagnóstico de AIS incluem falhas relacionadas à técnica ou à coleta, contaminação com sangue, confusão com outros tipos celulares benignos e número muito baixo de células devido à dificuldade de obtenção de material anormal, que pode se encontrar no canal endocervical ou profundamente, nas criptas endocervicais.


Cerca de 40% a 50% dos casos de AIS são detectados pela citologia previamente à conização. Destaca-se que o diagnóstico desse tumor pode ser precedido tanto por alterações citológicas escamosas (cerca de 30% dos casos) quanto glandulares (de 50% a 70% dos casos). Entre as mulheres com células glandulares atípicas na citologia, de 3% a 4% têm AIS e 2%, adenocarcinoma do colo do útero. Vale lembrar ainda que adenocarcinomas de outras áreas, como endométrio, tuba uterina, ovário e peritônio, podem se apresentar com células malignas na colpocitologia. A concomitância de lesão escamosa e glandular na mesma paciente é observada em 30% a 60% das vezes. 


No AIS, as células encontram-se principalmente em agregados e, com menos frequência, isoladas. Há alteração da polaridade nuclear, núcleos aglomerados e hipercromáticos, com aumento discreto de volume, e o citoplasma é escasso. Nucléolos podem ou não estar presentes e raramente há mitoses. As células da periferia mostram padrão em “plumagem”. 


Segundo as Diretrizes Brasileiras para o Rastreamento do Câncer de Colo do Útero de 2011 do Ministério da Saúde, a presença de citologia com resultado de AIS impõe a realização de colposcopia, que deve ser acompanhada de avaliação endometrial em mulheres ≥35 anos ou antes dessa idade, se houver sangramento uterino anormal, anovulação crônica ou obesidade.


Exame histopatológico

Entre os tipos histológicos de AIS, o mais frequentemente encontrado é o endocervical. As variantes menos comuns incluem intestinal, endometrioide, tubária (ciliado) e de células claras. Esse tumor possui características histológicas típicas, como preservação da arquitetura glandular normal associada a alterações de partes ou de todo o epitélio de superfície e/ou glandular, transição abrupta para o epitélio endocervical normal, aumento nuclear, cromatina grosseira, nucléolo pequeno único ou múltiplo, maior atividade mitótica, pseudoestratificação variável dos núcleos e ausência de invasão estromal. Em 97% dos casos, o AIS envolve o colo da glândula e em 20% não é possível diferenciá-lo de adenocarcinoma microinvasivo (invasão do estroma até 3 mm em um ou mais locais, sem invasão linfática ou sanguínea).


O diagnóstico definitivo histopatológico de AIS, obtido por meio de biópsia dirigida pela colposcopia ou curetagem endocervical, requer a conização do colo uterino, que tem o objetivo de confirmar essa hipótese, avaliar a extensão do tumor e excluir doença invasiva e lesão escamosa coexistentes. Alguns autores sugerem a realização de curetagem endocervical previamente ou no momento da conização, dados os seus maiores valores preditivos positivo e negativo (100% e 94%, respectivamente) em relação à doença residual, em especial nas mulheres que consideram preservar a fertilidade. A avaliação do envolvimento das margens do cone, apesar de ter valor preditivo limitado, também é considerada para essas pacientes.


 Adenocarcinoma endocervical in situ(direita). AIS e lesão de baixo grau associada ao HPV(esquerda). 

ARQUIVO FLEURY


Colposcopia

Como o AIS é uma lesão microscópica, a inspeção visual do colo do útero pode ser negativa, o que implica a necessidade da colposcopia para ajudar a detectar alterações colposcópicas e orientar a biópsia nas áreas com achados mais importantes. Mesmo assim, as características das lesões glandulares podem não ser totalmente evidentes por esse método e sua localização pode dificultar o exame e a realização da biópsia. O AIS tipicamente localiza-se na zona de transformação, embora possa estar presente em áreas mais altas no canal endocervical, e envolve tanto as glândulas endocervicais quanto o epitélio de superfície. No caso relatado, confirmando o que é usual, as alterações colposcópicas estavam principalmente na zona de transformação e eram sugestivas de lesão de alto grau, razão pela qual a biópsia foi feita nessa área.


A distribuição mais frequente das alterações é a difusa, que ocorre em mais de 70% dos casos, com lesões próximas à zona de transformação que podem se estender até 3 cm do canal endocervical e envolver glândulas com profundidade de até 4 mm. Em menor porcentagem, as lesões são focais e, em até 15% das pacientes, o AIS é multicêntrico. A presença de multicentricidade destaca a importância de fazer ampla amostragem do colo nas biópsias e de proceder à confirmação diagnóstica com a conização. 


 Microscopia eletrônica de transmissão evidencia exemplar do HPV.

JAMES CAVALLINI/PHOTORESEARCHES/LATINSTOCK



O papel da biologia molecular para a pesquisa do HPV
A maioria dos casos (cerca de 65%) de AIS está relacionada com infecção por HPV 18 e, em menor frequência, por HPV 16 (cerca de 30%), HPV 31 e HPV 45. Os testes moleculares para a detecção da infecção pelo vírus vêm sendo cada vez mais utilizados para o rastreamento do câncer de colo do útero, muitas vezes em conjunto com a colpocitologia. Já em pacientes que apresentam diagnóstico histopatológico de AIS, estudos sugerem que a pesquisa do DNA do HPV de alto risco oncogênico tem especial utilidade para o acompanhamento de mulheres submetidas ao tratamento conservador, ou seja, que fizeram a conização e que desejam engravidar. Os dados apontam que o teste molecular, quando positivo, é considerado o preditor independente mais significante de recidiva ou de progressão para adenocarcinoma invasivo.


De qualquer forma, recomenda-se a realização de coteste (colpocitologia + teste de DNA de HPV) e colposcopia no seguimento após a conização em intervalo semestral, durante dois anos, e após o tratamento definitivo com histerectomia em intervalo semestral, durante um ano. Se todos os resultados forem negativos, o acompanhamento poderá continuar de acordo com as diretrizes para rastreamento do câncer de colo do útero na população normal.



CONCLUSÃO

O caso relatado mostrou a importância da integração dos exames nas doenças do trato genital inferior, particularmente no diagnóstico inicial de AIS. Após essa primeira etapa, deve-se continuar a investigação do canal endocervical com exérese e avaliação histológica completa da lesão para afastar a possibilidade de foco de invasão em áreas não representadas nas biópsias. Como a maioria das lesões de AIS se localiza ao redor da junção escamocolunar, a maior parte dos tumores é unifocal e muitas pacientes são jovens, o tratamento conservador com a conização pode ser considerado seguro e aceitável, desde que haja margens livres do cone e se proceda a um acompanhamento rigoroso após o procedimento.


O AIS apresenta taxas de recidiva de cerca de 20%, quando há margens negativas do cone, e de cerca de 50%, quando as margens se mostram positivas. O tempo de seguimento não está totalmente estabelecido, mas se recomenda que seja de longo prazo, visto que há possibilidade de ocorrerem recidivas tardias após o tratamento conservador. Já as recidivas depois da histerectomia são raras. Não por acaso esse procedimento é considerado o tratamento definitivo para o AIS, tendo em vista as características desses tumores – muitos são multifocais, localizam-se em regiões altas do canal endocervical e estão frequentemente associados com adenocarcinoma invasivo oculto –, assim como as dificuldades para detectar lesões durante o seguimento após a intervenção conservadora. Assim, recomenda-se que, nas mulheres tratadas com a conização, a histerectomia seja feita após a constituição da prole.



Assessoria Médica
Biologia molecularDr. Gustavo Arantes Rosa Maciel
[email protected]
Dr. Ismael D. Cotrim Guerreiro da Silva
[email protected]
ColposcopiaDra. Patricia De Luca
[email protected]

PatologiaDra. Monica Stiepcich
[email protected]