Alterações hematológicas em infecções bacterianas

Tópicos presentes neste capítulo

  • Introdução  
  • Bactérias   
  • Infecções bacterianas de sistema nervoso central   
  • Infecções bacterianas das vias aéreas  
  • Pneumonia bacteriana   
  • 2 - Pneumonia por agentes bacterianos atípicos  
  • 3. Sinusite bacteriana, otite média, infecções faríngeas e amigdalites   
  • 4. Coqueluche   
  • 4. Difteria  
  • C. Infecção bacteriana de pele, de partes moles e osteoarticulares  
  • Artrite séptica  
  • Osteomielite  
  • Mionecrose por clostridio  
  • Infecções bacterianas do trato gastrintestinal  
  • Febre tifoide  
  • Infecções intra-abdominais   
  • G. Infecção bacteriana de trato urinário  
  • H. Endocardite infecciosa  
  • Infecções sistêmicas   
  • Botulismo  
  • Infecção bacteriana na gestante  
  • Reação Leucemóide  
  • Hiperleucocitose   
  •  Reação leucoeritroblástica  
  • Leitura recomendada  

Introdução

As bactérias são microrganismos extremamente comuns, e a maioria causa infecções leves e localizadas, por vezes, moderadas a graves, com quadro de disseminação pelo sistema circulatório humano. Um dos primeiros sinais de processo infeccioso bacteriano é a febre persistente que faz com que o médico procure identificar o foco infeccioso. O hemograma cursa com leucocitose, neutrofilia, linfopenia, eosinopenia e presença de desvio à esquerda e granulócitos imaturos. Nessa situação é comum a proteína C reativa (PCR) estar acima do valor de referência, e os exames microbiológicos, permitirem a identificação do gênero e espécie da bactéria.

As infecções por bactérias podem acometer os pulmões, meninges, sistema nervoso central, urinário, trato gastrointestinal, dentre outros, exigindo uma boa investigação clínica e laboratorial. A investigação deve começar pelo hemograma, buscando-se achados sugestivos de processos infecciosos por bactérias, e realizar com acurácia exames que direcionem o diagnóstico, como o sumário de urina, estudo do líquor, raio X, tomografias, lactato e procalcitonina. Este capítulo descreve os achados clínicos, hematológicos, como também o diagnóstico diferencial dentre os diversos tipos de infecção bacteriana, além de dados técnicos sobre infecções em crianças e gestantes, reações leucemóides e sepse. 

Bactérias 

Bactérias são organismos unicelulares que podem ser tanto oportunistas como patogênicas ao ser humano, e compõem a microbiota do indivíduo.  Estima-se que a microbiota do organismo humano atinja cerca de trilhões de microrganismos.

Bactérias existem em todos os locais e, podem ser transmitidas por via aérea, pela água ou pelo solo. Assim, a depender da bactéria em questão, a transmissão ocorre por várias formas: pela ingestão de água ou alimentos contaminados, por lesões corto-contusas, contato com fezes contaminadas, aspiração de gotículas após tosse ou espirro de indivíduos infectados. As bactérias são comumente classificadas como gram-positivas ou gram-negativas, dependendo da maneira como se coram pela coloração de Gram na microscopia direta. Diante da enorme variedade de agentes bacterianos, outras classificações e características podem ser observadas, como as diversas morfologias das bactérias (coco, bacilo, espiroqueta), a presença ou não de fatores de virulência (como as endotoxinas), a capacidade de causar infecções intracelulares (Legionellaspp) e de permanecer no indivíduo na forma de esporos, de formar biofilme, entre outras. O conjunto dessas características, inerentes a cada agente bacteriano, irá determinar a capacidade de invasão, patogenicidade, tropismo por tecidos específicos, reconhecimento pelo sistema imune e, por fim, espectro clínico da infecção. O estado imune do indivíduo infectado também colabora para a grande diversidade de apresentações clínicas das infecções bacterianas e para seus desfechos.

Além das características já descritas, há organismos aeróbicos que crescem adequadamente na presença de oxigênio e organismos anaeróbios que necessitam de uma condição de anaerobiose para se desenvolverem. Organismos que crescem em ambas as condições são denominados facultativos.           

Entre os mecanismos de defesa para as infecções bacterianas há, primeiramente, a barreira cutâneo-mucosa, que impede a penetração de diversos agentes infecciosos. Ocorre invasão bacteriana quando a bactéria consegue vencer esse mecanismo de defesa por ruptura da barreira cutâneo-mucosa (como em ferimentos corto-contusos ou na presença de mucosite) ou por características específicas da bactéria que facilitam esse comportamento.

Após a invasão, seguem-se os mecanismos de defesa inatos do organismo. O indivíduo reage contra as doenças causadas por bactérias com a liberação de mediadores inflamatórios com o aumento do fluxo sanguíneo para o local de infecção, além do envio de neutrófilos para desencadearem uma resposta imune e destruírem a bactéria. A fagocitose é o primeiro e principal mecanismo de defesa contra as infecções bacterianas. A migração de neutrófilos para os tecidos, a partir da mobilização do componente de marginalização, mas também com consequente aumento de produção medular da linhagem granulocítica, pode resultar em aumento da contagem dessas células (neutrofilia) e a presença de células mielóides imaturas (desvio à esquerda) no sangue periférico. Este último é definido quando se encontram mais de 600 bastões no sangue periférico, ou quando estas células correspondem a mais de 10% do total de neutrófilos. Nos processos infecciosos os desvios possuem tendência a escalonamento, respeitando a hierarquia de produção e liberação de granulócitos pela medula óssea. Contudo, o desvio a esquerda não é um achado sensível e específico de infecções bacterianas, sendo muitas vezes interpretado de forma equivocada.  

A produção de anticorpos é uma resposta mais tardia, mas também pode auxiliar nesse processo. Pode haver ainda a inativação de toxinas produzidas por certos patógenos como tétano e difteria. A infecção bacteriana ocorre devido à proliferação de cepas patogênicas no organismo humano. Pode ocorrer infecção bacteriana em qualquer órgão ou sistema, como pneumonia, meningite e infecção urinária, entre outras.

Os sintomas da infecção bacteriana dependem do sítio de acometimento, no entanto, muitos sinais e sintomas são comuns às infecções causadas por diversos agentes. A presença de febre, apesar de ser um sinal cardinal da infecção bacteriana, pode estar também presente em infecções virais, e pode estar ausente em pacientes imunodeprimidos com infecções bacterianas graves, principalmente naqueles em uso de corticosteroides. Desta maneira, os exames laboratoriais são fundamentais para definir a etiologia infecciosa do processo, bem como identificar o agente específico causador da infecção.

As principais infecções bacterianas que acometem os diversos órgãos e sistemas serão descritas a seguir.

Infecções bacterianas de sistema nervoso central 

A meningite bacteriana é uma infecção grave, que acomete o espaço subaracnóide e as meninges, com repercussão no sistema nervoso central.  Apesar da utilização em larga escala de vacinas que protegem contra Streptococcus pneumoniae, Neisseria meningitidis e Haemophilus influenzae do tipo B, permanece frequente e, dada a sua gravidade, necessita de urgência no diagnóstico e tratamento, devido as altas taxas de morbimortalidade associadas ao quadro.

A meningite bacteriana pode ser adquirida na comunidade ou ocorrer após procedimentos invasivos ou traumas. Pacientes com meningite bacteriana (além da idade neonatal) geralmente apresentam cefaleia, febre e estado mental alterado. A tríade clássica de febre, enrijecimento da nuca e estado mental alterado é observada em apenas 40% dos casos. A hemocultura deve ser feita de imediato, na chegada à sala de emergência. A punção liquórica deve ser realizada para confirmação do diagnóstico, no entanto, é importante observar possíveis contra-indicações para a punção, como a possibilidade de herniação na presença de hipertensão intracraniana ou de sangramento em pacientes com trombocitopenia grave ou em uso de anticoagulantes.

Hemograma

O hemograma na meningite poderá mostrar indícios de etiologia bacteriana, com leucocitose (15.000 a 25.000/mm3) à custa de neutrofilia, desvio à esquerda, com granulócitos imaturos. A contagem global de leucócitos, contudo, não é um indicador da gravidade da infecção, especialmente em recém-nascidos, pacientes imunossuprimidos e idosos. O exame do líquido celalorraquidiano oferecerá detalhes definitivos acerca da infecção.

Infecções bacterianas das vias aéreas

Pneumonia bacteriana 

A pneumonia pneumocócica é a infecção aguda dos pulmões mais comum, causada pela bactéria encapsulada Streptococcus pneumoniae. É uma doença geralmente adquirida na comunidade, principalmente nos meses de inverno. Ocorre, em geral, após a aspiração de secreção orofaríngea que contenha pneumococos.

Estão mais expostos a tal infecção os indivíduos idosos, alcoolistas, institucionalizados, fumantes, bronquiectásicos, portadores de doença pulmonar obstrutiva crônica, transplantados de medula óssea ou portadores de doenças neoplásicas hematológicas como leucemia linfocítica crônica e mieloma múltiplo, diabéticos e outros imunossuprimidos.

Após a entrada do pneumococo no pulmão, ocorre uma resposta inflamatória com dilatação capilar, hiperemia e edema seroso dentro do alvéolo, seguido de marginalização, diapedese e quimiotaxia de polimorfonucleares. O pneumococo produz uma toxina citotóxica para a célula endotelial que ocasiona a entrada da bactéria no sangue. Alvéolos repletos de líquido permitem a passagem da bactéria pelos poros para os bronquíolos com disseminação da infeção para outras áreas contíguas. Os mecanismos de defesa imune podem interromper a infecção nesse ponto, ou ocorrer progressão com o acometimento da pleura e fissura interlobular com formação de infiltrado denso de polimorfonucleares. Desta maneira, o processo infeccioso pode acometer um lobo pulmonar inteiro, múltiplos lobos ou um segmento lobar. Em menos de 10% dos casos pode acometer a pleura (pleurite) e resultar em empiema.  Enquanto em aproximadamente 20%, pode alcançar a corrente sanguínea e promover bacteremia com eventual disseminação da infecção para outros sítios extrapulmonares, tais como: meningite, otite média, sinusite, mastoidite, conjuntivite, epiglotite, traqueobronquite, celulite pericardite, endocardite, artrite séptica e peritonite (na presença de ascite).

Do ponto de vista clínico, as manifestações da pneumonia bacteriana são variáveis, desde leves a graves. A instalação da doença é usualmente abrupta, e se caracteriza por tosse, calafrios, febre alta, mialgias, taquipneia, taquicardia e fraqueza. A tosse pode ser produtiva, sanguinolenta e pode progredir para purulenta. Pode haver dor pleurítica.

A pneumonia bacteriana também pode ser causada por outros microrganismos. Em adultos portadores de doenças pulmonares crônicas a infecção por Haemophilus influenzae ou Moraxella catarrhalis é frequente. Pode haver quadros infecciosos associados ao Staphylococcus aureus, Streptococcus pyogenes, enterobacterias, anaeróbios e Mycoplasma pneumoniae, dentre outros.

Os bacilos gram-negativos entéricos raramente causam pneumonia em indivíduos saudáveis, pois não são patógenos muito virulentos para o trato respiratório. Entretanto, afetam imunodeprimidos, pacientes internados na unidade de terapia intensiva, entubados, recebendo ventilação mecânica, que acabam aspirando a secreção contaminada, alcoolistas, neutropênicos e desnutridos.  São eles:  Escherichia coli, Klebsiella, Enterobacter, Serratia, Proteus, entre outros. O mesmo pode ser afirmado em relação aos bacilos gram-negativos não fermentadores, como Pseudomonas e Acinetobacter.

Hemograma

O hemograma apresenta leucocitose, com níveis duas a três vezes maiores que os valores normais, mas em alcoolistas ou imunodeprimidos essa alteração pode não ser observada. O diferencial de leucócitos é importante e mostra aumento de neutrófilos polimorfonucleares com desvio à esquerda. Nas pneumonias por pneumococo a presença de leucocitose até 25.000/mm3 é comum. São vistos no esfregaço do sangue periférico granulações tóxicas, vacúolos citoplasmáticos e corpúsculos de Döhle nos neutrófilos. A hemoglobina e o hematócrito podem estar normais ou discretamente elevados pela desidratação e hipovolemia secundários à náusea, vômito e febre provocados pela infecção.

Na pneumonia estafilocócica, causada pelo Staphylococcus aureus, a contagem global de leucócitos pode ultrapassar 40.000/mm3 com grande desvio à esquerda escalonado. As pneumonias por bactérias gram-negativas geralmente acometem pacientes com doenças pulmonares ou imunossuprimidos e indivíduos hospitalizados, e podem resultar em neutropenia grave. A síndrome do desconforto respiratório agudo pode resultar em leucopenia com neutropenia e linfopenia. Com a evolução do quadro há neutrofilia e queda da hemoglobina em até 2 g/dL. Pode ser notada trombocitopenia discreta e assintomática.

Outros exames

A infecção estreptocóccica pode evoluir com coagulação intravascular disseminada (CIVD) e, nesse contexto, haverá trombocitopenia e pleomorfismo eritrocitário com esquizócitos no esfregaço. Obviamente, nessa condição, outros exames estarão alterados, tais como, TTPA, TP/INR, fibrinogênio e elevação dos níveis de D-dímero e outros produtos de degradação da fibrina (PDF).

A gasometria arterial refletirá a função pulmonar e fenômenos compensatórios, podendo haver hipoxemia, hipocapnia e alcalose pela hiperventilação. Porém, se o paciente evoluir para choque haverá acidose metabólica.

 O raio X de tórax é o exame de imagem inicial para diagnosticar o quadro e determinar sua extensão. Pacientes neutropênicos ou imunocomprometidos podem não formar a imagem clássica com condensação à radiografia e apresentar aspecto não característico. Exames bioquímicos podem demonstrar discreta alteração, com elevação de bilirrubinas e enzimas hepáticas. Antes do início da antibioticoterapia deverão ser colhidas as amostras de hemocultura para diagnóstico de bacteremia associada ao quadro pulmonar. A cultura de escarro deve ser analisada com cautela, já que o material coletado deve ser uma amostra representativa das vias aéreas acometidas, para que ocorra o isolamento do patógeno responsável pela infecção e não apenas o isolamento de um agente colonizante de vias aéreas.

2 - Pneumonia por agentes bacterianos atípicos

Mycoplasma spp são bactérias pequenas, de 200 nm, anaeróbios facultativos e não apresentam a parede celular como a bactéria comum. A pneumonia por Mycoplasma pneumoniae é comum em crianças e adultos jovens (metade dos casos de pneumonia nessa população). É adquirida na comunidade, mais comum no inverno, mas surtos escolares podem ocorrer no outono. O período de incubação varia de 4 dias a 3 semanas.

Manifestação Clínica

É insidiosa, com febre, mialgia, mal-estar e cefaleia, seguidos por manifestação clínica de tosse, traqueobronquite ou pneumonia. Os sintomas de vias aéreas superiores duram cerca de 2 a 3 semanas e de pneumonia até 4 semanas.

Complicações

Geralmente, são sintomas neurológicos, observados precoce ou tardiamente, com infiltração liquórica ou encefalite. Podem ocorrer manifestações cutâneas no tronco e em extremidades, na forma de rash, em 20% dos casos.

Hemograma

Os leucócitos não se elevam, em geral, acima de 15.000/mm3. Há neutrofilia e desvio à esquerda. Em alguns casos notam-se anemia hemolítica, trombocitopenia, pseudoanomalia de Pelger-Hüet, síndrome hemofagocítica e formação de crioaglutininas com marcante elevação dos índices eritrocitários, principalmente da concentração de hemoglobina corpuscular média (CHCM>36 g/dL). Outras complicações hematológicas possíveis em infecções por micoplasma são a CIVD, tromboembolismo e púrpura trombótica trombocitopênica com presença de esquizócitos, trombocitopenia e sinais de hemólise, policromasia e esferócitos circulantes.

A Legionella pneumoniae também é considerada um agente atípico e pode causar pneumonia e, mais raramente, infecções em outros sítios, como sinusite, pericardite, abscesso peritoneal etc. A transmissão se dá pela inalação de vapor (umidificadores de água, aparelhos de ar condicionado, chuveiros, equipamentos de terapia respiratória) ou aspiração de água contaminada.

Manifestação Clínica

Cursa com tosse, febre alta, falta de ar, dores musculares e cefaleia. Pode ainda apresentar náusea, vômito e diarreia.

Hemograma

Pode demonstrar tanto leucocitose como leucopenia e trombocitopenia e cursar com CIVD. Há desvio à esquerda discreto e a leucocitose raramente ultrapassa 12.000/mm3.

3. Sinusite bacteriana, otite média, infecções faríngeas e amigdalites 

Decorrem de processos inflamatórios, podendo exibir foco infeccioso com formação de secreção purulenta localizada. Os patógenos responsáveis por estas infecções mais comuns são Haemophilus influenzaee Streptococcus pneumoniae. Em crianças, Haemophilus influenzae é causa frequente, embora a vacinação tenha reduzido a incidência de infecções invasivas por este agente. A clínica é de dor e irritabilidade. Os cuidados com esses processos infecciosos são vitais, pois as bactérias podem se disseminar e levar a meningites e bacteremias. 

O hemograma na faringite estreptócica aguda apresenta leucocitose maior do que 15.000/mm3, com neutrofilia sem desvio e eosinopenia. Na sinusite e na otite, as anormalidades hematológicas só serão notadas em casos de persistência do agente infeccioso ou disseminação.

4. Coqueluche 

A coqueluche é uma doença infectocontagiosa provocada por bactérias da espécie Bordetella pertussis, que infectam o trato respiratório, especialmente a traqueia e os brônquios, provocando mal-estar, febre e coriza por mais de 10 dias, associadas a crises extenuantes de tosse seca.  

Apesar de poder ser uma doença imunoprevenível, ainda constitui importante causa de mortalidade infantil ao redor do mundo, especialmente nos países em desenvolvimento, sobretudo em crianças menores de 6 meses de idade.

As complicações decorrem principalmente de pneumonia e instalação de insuficiência respiratória, determinadas tanto pela Bordetella pertussis quanto por outras espécies bacterianas que causam infecção secundária.

Hemograma

Há leucocitose da ordem de 15.000 a 30.000/mm3, com linfocitoses extremas (>80% de linfócitos). Os linfócitos apresentam endentação e em alguns casos há reações leucemóides linfocitárias com contagem de leucócitos maiores que 90.000/mm3, o que pode levar a dificuldade diagnóstica. Quando há contagem de polimorfonucleares aumentada, pode haver outra infecção bacteriana, pois a Bordetella pertussisé uma das únicas bactérias que gera linfocitose periférica. 

Nos casos duvidosos, a confirmação laboratorial pode ser feita por meio de cultura de secreção da faringe, colhida com uma haste semelhante a um cotonete e cultivada em meios próprios para o crescimento da Bordetella pertussis.

Caso clínico 1 

Paciente com 6 anos, do sexo masculino, deu entrada na emergência acompanhado da tia. Foi internado por tosse produtiva há 24 dias. Negava febre. Referia episódios de cianose. Fez uso de anti-histamínicos, sem melhora e durante a internação foi medicado com sulfato de salbutamol e broncodilatador, sem intercorrências. Foi solicitado hemograma para investigação do caso.


Parâmetros
 
 
Valores de referência
RBC (milhões/mm3)
4.70
                                                 
4.5 – 5.1
Hemoglobina (g/dL)
14,1
 
12,5 – 14,0
Hematócrito (%)
42,4

37 -40
VCM (fL)
90,0
 
81 - 87
HCM (pg)
30,0

27 - 30
CHCM (g/dL)
33.2
 
34 -36
RDW (%)
13.5

12-16
WBC (mm3)
68.900
 
5.000 – 13.000
Segmentados
14 %
9.646/mm3
2.000 – 8.000
Linfócitos
72 %
49.608/mm3
1.000 – 5.000
Monócitos
8 %
5.512/mm3
200 – 1.000
Eosinófilos
4 %
2.756/mm3
100 – 1.000
Basófilos
1 %
689/mm3
20 – 100
Observações: Vários linfócitos com endentações nucleares

Plaquetas (mm3)
256.000
 
180.000 – 400.000


Apresentou evolução do quadro clínico com piora da tosse e sintomas respiratórios. Foi então iniciada terapia com azitromicina e prednisona associada a antialérgico e, após 20 dias, o paciente apresentou melhora do quadro clínico e diminuição da leucometria. Recebeu o resultado de infecção por Bordetella pertussis (coqueluche) após exame de nasofaringe.

Comentário: Exemplo de coqueluche, manifestada em crianças em idade escolar, com a manifestação clínica e tosse prolongada e hemograma típico da infecção por Bordetella pertussis.

4. Difteria

A infecção por Corynebacterium diphteriae ocorre no trato respiratório causando amigadalite e laringite, com pseudomembrana característica. A difteria respiratória manifesta-se com febre, catarro serosanguinolento e toxemia. Pode evoluir para miocardite e neurite.

A difteria cutânea se apresenta com variadas lesões de pele. O hemograma demonstra leucocitose com neutroflia.

C. Infecção bacteriana de pele, de partes moles e osteoarticulares

Pele e partes moles 

Geralmente são causadas por bactérias gram-positivas como Staphylococcus aureus e Streptococcus pyogenes, entre outras. As manifestações clínicas, geralmente caracterizadas por dor, eritema e calor, podem acometer as camadas superficiais da epiderme, com pequenas vesículas e crostras (impetigo), ou atingir a derme na forma de um eritema confluente bem delimitado (erisipela).  Tanto o impetigo quanto a erisipela podem se apresentar na forma bolhosa. O envolvimento do tecido celular subcutâneo caracteriza a celulite, que por ser mais profunda costuma ter limites menos evidentes ou alternância de áreas de eritema com pele sã. O acometimento do folículo piloso, com formação de pápula eritematosa ou pustulosa em torno do bulbo, denomina-se foliculite; a progressão para áreas mais profundas, com envolvimento da glândula sebácea anexa, resultando em formação de nódulo eritematoso seguida de flutuação e drenagem de secreção purulenta caracteriza o furúnculo, que pode ser único, múltiplo e evoluir de forma recorrente.  

São tratadas com antibióticos tópicos ou orais, dependendo da extensão e profundidade do processo, da ocorrência de repercussão sistêmica e/ou de bacteremia, e do estado imunológico do indivíduo. Coleções devem ser drenadas.

Hemograma

As infecções bacterianas de pele não causam comprometimento hematológico a menos que sejam muito extensas ou ocorram em indivíduo imunossuprimido. Na síndrome do choque por Streptococcus ocorre leucocitose discreta com desvio acentuado à esquerda, e pode haver trombocitopenia, mesmo na ausência de critérios para CIVD.

Artrite séptica

A artrite séptica ou infecciosa pode ser definida como uma reação inflamatória resultante da invasão do espaço articular por bactérias. Pode ocorrer em qualquer faixa etária, mas a forma primária de origem hematogênica é mais prevalente em crianças. Seu início é geralmente agudo, manifestando-se com clínica de dor, edema, limitação de movimento e, se não tratada, há destruição da articulação, com déficit permanente.

O Staphylococcus aureus é o agente etiológico mais frequente. Contudo, outras bactérias podem invadir a cápsula articular, tais como estreptococos beta-hemolíticos do grupo A, Streptococcus pneumoniaee Haemophilus influenzae.

As manifestações clínicas são dor, edema, calor, rubor, sensibilidade local aumentada e febre, com limitação de movimento da articulação acometida. O hemograma exibe leucocitose superior a 15.000/mm3com neutrofilia e desvio à esquerda.

Usualmente, há migração de neutrófilos para o líquido sinovial. Em casos mais graves, a medula óssea passa a produzir grande quantidade de neutrófilos. Nestes casos, a leucometria varia entre 30.000 a 250.000/mm3com mais de 80% de neutrófilos, desvio à esquerda e monocitose. A velocidade de hemossedimentação se eleva rapidamente e com resultados próximos a 100 mm em menos de 1 hora. Os níveis de PCR variam entre 30 a 100 mg/dL.

Osteomielite

Staphylococcus aureus é a causa mais comum de osteomielite aguda por via hematogênica, mais frequente em crianças, mas também observada em adultos. A clínica é febre e dor óssea. Diabéticos podem desenvolver osteomielite nos ossos do pé, por contiguidade, a partir de úlceras.

Hemograma 

Nas formas agudas, o hmeograma apresenta discreta leucocitose com desvio à esquerda. Nas osteomielites crônicas, não costuma haver alterações de hemograma, embora VHS e PCR geralmente estejam aumentadas. Podem ocorrer quadros atípicos com leucometria >50.000/mm3, à custa de neutrofilia acentuada, por exemplo, em pacientes com anemia falciforme.

Mionecrose por clostridio

Gangrena gasosa ou mionecrose por clostridio pode ser observada após lesão traumática profunda (por faca, bala ou outros objetos) que comprometa a irrigação local e/ou resulte em tecido desvitalizado, criando um ambiente de anaerobiose ideal para a proliferação de C. perfingens, C. speticum e outras espécies. Outras condições predisponenetes à mionecrose são: cirurgia intestinal, de trato biliar, aborto incompleto ou retido e ruptura de placenta. Os sintomas são de dor aguda no local do trauma com alterações na cor da pele, bolhas, sinais sistêmicos de toxemia, febre e taquicardia. O paciente pode evoluir rapidamente para o choque.

Hemograma

Alterações como anemia e leucocitose por neutrofilia discreta podem ser vistas em alguns casos associadas ao processo inflamatório e necrótico. O aumento da leucometria pode acompanhar a elevação das enzimas musculares, como CPK e mioglobina. Contudo, estes achados são inespecíficos.

Infecções bacterianas do trato gastrintestinal

Geralmente são originadas pela ingestão de alimentos contaminados como carne crua, peixe, aves, ovos ou laticínios não pasteurizados. Hábitos inadequados de higiene também podem ser fonte de infecção fecal-oral. Os sintomas são de gastrenterite aguda com náuseas, vômitos, calafrios e dor abdominal. Os patógenos em geral são: Campylobacter jejuni (diarreia com febre e cólicas), Escherichia coli(diarreia sanguinolenta com náuseas, vômitos, febre e cólicas); Listeria monocytogenes (diarreia, febre e dores musculares); Salmonella (febre, diarreia e cólica abdominal por 4 a 7 dias); Vibrio (diarreia ou infecção de pele). Eventualmente, pode ser necessária a hospitalização de crianças pequenas que desenvolvem desidratação e podem evoluir com bacteremia ou complicações como osteomielite ou meningite, ou de indivíduos imunossuprimidos. O hemograma nesse tipo de infecção pode apresentar leucocitose com desvio à esquerda e eventual presença de células imaturas. As salmonelas podem levar a leucopenia com neutropenia. Os hemogramas podem causar espanto devido a grandes desvios como mais de 40% de bastões, com normalização do quadro em horas ou dias. 

Febre tifoide

Infecção causada pela Salmonella typhi, caracterizada por febre, dor abdominal, diarreia, delírio, manchas eritematosas na pele, esplenomegalia e sangramento intestinal. A transmissão é por via fecal-oral por água ou alimento contaminado.

O hemograma demonstra anemia de grau variado, leucometria normal ou diminuída com desvio à esquerda e plaquetas diminuídas. Enzimas hepáticas e bilirrubinas estão elevadas.

Infecções intra-abdominais 

No abdomem agudo de causa infecciosa, o hemograma sofre alterações numéricas em horas; na apendicite ocorre a leucocitose e neutrofilia com ou sem desvio à esquerda, contudo podem ser vistas leucocitoses que atingem até 15.000mm3. Nos aparelhos automatizados para a contagem de células com diferencial em 5 partes, um indicativo de inflamação e infecção bacteriana é a presença de granulócitos imaturos (IG%) superior a 3%, o que pode auxiliar o clínico na investigação da suspeita de processos infecciosos e na elucidação do quadro. Outro achado comum é o desvio a esquerda.  

Nos quadros de abdômen agudo, como na apendicite e pancreatite, a neutrofilia pode indicar também a gravidade do processo e até anteceder os sinais clínicos, principalmente na presença de neutrofilia absoluta, granulócitos imaturos e bastões. Há sempre eosinopenia próxima de zero e linfopenia. Nos casos de apendicite aguda purulenta, a leucometria com frequência ultrapassa 16.000/mm3, contudo, pode estar próxima de valores normais. A contagem automatizada de neutrófilos chega a 90%, muitas vezes sem desvio a esquerda, fato que pode ser observado no histograma, com formação de uma população celular concentrada na região de neutrófilos.

Caso clínico 2 

Jovem de 17 anos, do sexo masculino é levado ao atendimento médico de urgência pela mãe por apresentar há um dia e meio, inapetência, náuseas, vômitos, mal estar geral, dor abdominal inicialmente na região umbilical, mas agora na fossa ilíaca direita e febre. Não relata qualquer trauma ou razão para a sintomatologia. Refere obstipação há dois dias. Ao exame físico encontra-se em REG, prostrado, temperatura de 38,6oC, FR aumentada, e desconforto à palpação do abdome com sinal de descompressão positivo. Foram levantadas as seguintes hipóteses diagnósticas:  gastroenterite aguda e abdômen agudo, apendicite, sendo solicitados hemograma, proteína C reativa, VHS, TGO, TGP, amilase, fosfatase alcalina, bilirrubinas, creatinina, exame de urina, raio X e ultrassom de abdômen.


Parâmetros
 
 
Valores de referência
RBC (milhões/mm3)
4,60
                                                 
4.5 – 5.1
Hemoglobina (g/dL)
13,5
 
12,5 – 14,0
Hematócrito (%)
40,5

37 -40
VCM (fL)
88
 
81 - 87
HCM (pg)
29,3

27 - 30
CHCM (g/dL)
33,3
 
34 -36
RDW (%)
13.8

12-16
WBC (mm3)
13,580
 
5.000 – 13.000
Metamielócitos
2%
271,6/mm3
0
Bastões 
10%
1358/mm3
0-500
Segmentados
78%
10.592,4/mm3
2.000 – 8.000
Linfócitos
8%
1086,4/mm3
1.000 – 5.000
Monócitos
2%
271,6/mm3
200 – 1.000
Eosinófilos
0%
0/mm3
100 – 1.000
Basófilos
0%
0/mm3
20 – 100
Observações: Alguns neutrófilos com granulações tóxicas 

Plaquetas (mm3)
186.000
 
180.000 – 400.000


PCR 5,7 mg/dl VHS 45 mm/hora. Os demais exames bioquímicos e urina dentro da normalidade. Raio X de abdômen revelou uma sombra radiopaca na fossa ilíaca direita. No ultrassom do abdômen foi visualizado o apêndice, estrutura tubular de 8mm de diâmetro.

Comentários: A apendicite aguda (AA) é a urgência abdominal mais frequente entre crianças e adolescentes, mas pode ocorrer em qualquer idade. No caso, paciente jovem do sexo masculino com quadro clínico sugestivo de apendicite, com sinal de descompressão positivo, hemograma com neutrofilia e desvio à esquerda, e ultrassom com apêndice visualizado, sinal indicativo da apendicite, a hipótese de AA é bastante consistente. Foi optada pela internação, introdução de antibioticoterapia para e aeróbios e anaeróbios, hidratação, jejum e avaliação pela equipe cirúrgica.

O estabelecimento do diagnóstico de AA é desafiador porque a apresentação clínica é variada, desde sintomas leves e inespecíficos no início, até sinais de peritonite generalizada e sepse nas fases mais avançadas.  Por um lado, a falha em obter precocemente o diagnóstico é a principal causa de morbimortalidade, pois pode levar à perfuração ou até à morte. Por outro, pode-se submeter o paciente a uma laparotomia desnecessária, particularmente em mulheres. 

Os exames laboratoriais são necessários e ajudam no diagnóstico diferencial, mas não são plenamente definidores da doença.   A proteína C reativa é o teste de maior acurácia, seguida pelo número aumentado de leucócitos com desvio à esquerda. A associação dos dados laboratoriais com os escores clínicos (Alvorado, PAS e outros) aumenta a chance de um diagnóstico correto. Exames de imagem são fundamentais.

Há que ser feito o diagnóstico diferencial com diversas outras doenças, dentre as quais, gastrenterite aguda, infecção urinária, pancreatite, diverticulite, colecistite, cólica renal, adenite mesentérica, úlcera duodenal perfurada, além de abscesso ou cisto ovariano, endometriose e leiomioma em mulheres.

G. Infecção bacteriana de trato urinário

A infecção de trato urinário pode acometer rins, ureteres, bexiga e uretra, mas, em geral, envolve bexiga e uretra (parte baixa do trato urinário). As mulheres são mais predispostas a esse tipo de infecção.

Os sintomas de infecção urinária são: urgência miccional, disúria, polaciúria, urina turva, avermelhada ou escura, odor fétido e dor pélvica. A cistite (infecção na bexiga) manifesta-se por pressão pélvica, desconforto no abdome inferior, dor à micção, e presença de sangue na urina. A infecção na uretra (uretrite) se manifesta por queimação à micção. Na pielonefrite, a infecção acomete os rins, provocando sinais e sintomas como dor no flanco ou nas costas, febre alta, calafrios, náusea e vômitos.

Os agentes etiológicos mais frequentes para a infecção do trato urinário são bactérias gram-negativas, especialmente Escherichia coli. Outras enterobactérias podem estar envolvidas, como Enterobacter, Klebsiella, Serratia e Citrobacter. Pacientes imunossuprimidos, crianças com malformação do trato urinário, homens com afecções de próstata, mulheres menopausadas e pessoas com uso de sonda vesical de demora são suscetíveis a infecções recorrentes de trato urinário, podendo apresentar agentes não fermentadores como Pseudomonas aeruginosa, ou selecionar bactérias resistentes aos antibióticos frequentemente utilizados para o tratamento dessas infecções.

O hemograma pode estar normal no caso de infecção urinária baixa não complicada ou demonstrar leucocitose quando há acometimento pielocalicial ou complicações (pionefrose, abcessos renais e perirrenais). Entretanto, em pacientes idosos ou imunossuprimidos, pode haver leucopenia. Anemia pode ocorrer em casos com abscessos perirrenais. Diabéticos tem maior risco de infecção urinária complicada.

H. Endocardite infecciosa

A endocardite infecciosa se caracteriza por lesões vegetativas na superfície endotelial do coração, especialmente nas válvulas, com depósito de plaquetas e fibrina, ocasionadas por bactérias como Streptococcusdo grupo viridans, Staphylococcus aureus, Enterococcus, Haemophillus, Aggregatibacter, Cardiobacterium, Eikenella, Kingella, ou ainda Rickestia e clamídia, mas também por fungos. Essa condição ocorre pela associação de fatores do hospedeiro, bacteremia e virulência da bactéria.

A bacteremia é evento comum e ocorre em consequência de trauma da pele ou mucosas, habitualmente contaminadas com flora endógena. A intensidade da bacteremia é proporcional à agressividade do trauma, à densidade da flora e à inflamação, e à presença ou não de infecção no sítio da lesão. Pode também ocorrer de forma secundária a processos infecciosos localizados, como pneumonias e infecções profundas de partes moles, ou ainda em consequência da contaminação e colonização de dispositivos invasivos, como cateteres e próteses intravasculares. Na presença de bacteremia, primária ou secundária, a alteração anatômica do endocárdio predispõe à adesão e à proliferação bacteriana. A irregularidade da superfície, o turbilhonamento de sangue e a lesão endotelial favorecem a exposição de moléculas de adesão que permitem a agregação plaquetária e a deposição de fibrina que, juntamente com a capacidade de adesão instrínseca de algumas bactérias, promovem a formação da vegetação.

O mesmo mecanismo está relacionado à formação de biofilmes e vegetações em dispositivos como próteses valvares.

Manifestações clínicas:

Febre, clínica de acometimento cardíaco (murmúrio de insuficiência valvar, e outros) e manifestações sistêmicas como sudorese noturna, artralgias, mialgia e perda de peso. Mais tardiamente, podem surgir manifestações relacionadas a fenômenos tromboembólicos e formação de abscessos profundos.

Hemograma

No paciente com endocardite subaguda há a anemia da inflamação e portanto, anemia normocítica, que se instala progressivamente, com diferencial de leucócitos praticamente normal. Na endocardite aguda de curta duração por Staphylococcus aureus, a anemia é ausente, a leucometria é elevada com neutrofilia moderada, com ou sem desvio à esquerda e, monocitose com valores absolutos de monócitos até 2.000/mm3. Pode haver trombocitopenia discreta. A VHS frequentemente está elevada. No caso de endocardite por válvulas mecânicas instáveis, aspectos de hemólise estarão presentes.

Infecções sistêmicas 

1. Leptospirose

A leptopirose é uma doença infecciosa causada pela bactéria Leptospira interrogans transmitida pela urina de roedores, durante enchentes. A infecção humana ocorre após contato com a água contaminada da chuva ou de reservatórios, como o que ocorre em exposição ocupacional, recreacional ou durante enchentes. A doença tem caráter agudo e pode evoluir para formas graves e fatais, caracterizadas por insuficiência renal aguda e colestase com icterícia.

Manifestação Clínica 

Os pacientes infectados pela leptospira podem ser assintomáticos ou apresentar sintomas inespecíficos como febre, dor de cabeça, mialgia e diarreia. Cerca de 10% a 15% desenvolve a forma grave da doença com icterícia, insuficiência renal oligúrica e hemorragias, conhecida como síndrome de Weil. Há sangramento pulmonar com tosse, dispneia, hemoptise, dor torácica e cianose. O comprometimento pulmonar pode levar a síndrome da angústia respiratória e óbito. A insuficiência renal é peculiar em pacientes com leptospirose, com oliguria e hipocalemia. Ocorre rápida evolução para necrose tubular aguda, com níveis de creatinina superiores a 2 mg/dL, podendo atingir 10 mg/dL, configurando indicação de hemodiálise.

Hemograma 

A contagem global de leucócitos pode se apresentar normal ou elevada, com leucocitoses acima de 15.000/mm3, com neutrofilia e alterações toxico-degenerativas nos neutrófilos. Reações leucemoides com desvio à esquerda podem estar presentes; granulócitos imaturos podem ser visualizados em alguns casos com leucometria superiores a 60.000/mm3. Na síndrome de Weil a diátese hemorrágica é frequente podendo estar associada a trombocitopenia.

Botulismo

Trata-se de uma doença neuroparalítica causada pela toxina botulínica produzida por Clostridium botulinum. Há quatro formas de infecção: por alimento contaminado, infantil, ferimentos ou indeterminada.

O botulismo por alimentos contaminados ocorre pela ingestão de comida preparada de forma inadequada ou enlatados. A infantil ocorre pela produção da toxina no trato gastrintestinal após colonização, em crianças com menos de um ano. Raramente, lesões traumáticas contaminadas podem causar a doença a partir da bactéria presente no solo. A forma indeterminada é aquela na qual não se detecta a origem.

A clínica é de diplopia, disfonia, disartria, disfagia, diminuição da salivação, parestesia bilateral, paralisia do sexto par craniano, ptose palpebral e envolvimento progressivo de músculos respiratórios.

Hemograma

Os exames laboratoriais, em geral, não são úteis no diagnóstico do botulismo. A leucometria é normal, assim como a VHS.  A toxina botulínica pode ser encontrada nas fezes, vômitos, aspirado gástrico e alimentos suspeitos; contudo, não existem ensaios na rotina que detectem essa proteína em amostras biológicas. C botulinum cresce em meios específicos de cultura, seja a partir do semeio de fezes ou de alimentos. A condição de portador assintomático é rara, desse modo, o isolamento da bactéria na presença de quadro clínico sugestivo correlaciona-se fortemente com o diagnóstico.

Tétano

O tétano é uma doença neurológica periférica causada pelas neurotoxinas do Clostridium tetani. É comum em áreas cultivadas de clima quente, geralmente por lesão aguda traumática, ferimento cortante, injeção, queimadura, úlcera de pele, cordão umbilical infectado e perfuração de membrana timpânica. Os esporos entram no tecido necrótico com reduzida oxigenação e ali se revertem para formas vegetativas que produzem tetanopasmina e tetanolisina.

A tetanopasmina age nos neurônios motores e bloqueia a liberação de neurotransmissores inibidores na placa neuromotora, o que resulta em estimulação muscular pela acetilcolina sem oposição, provocando contração muscular e espasticidade sustentadas, inicialmente localizada nos grupos musculares próximos à porta de entrada, mas que pode progredir para espasmos generalizados. Nas formas generalizadas graves, a desinibição dos neurônios autônomos e a perda de controle da liberação de catecolamina adrenal causam instabilidade autonômica e um estado hipersimpático. O hemograma não apresenta alterações específicas, apenas moderada leucocitose. As enzimas musculares podem estar elevadas. Cultura de lesões suspeitas podem eventualmente demonstrar a bactéria. O diagnóstico, entretanto, é clínico-epidemiológico, associando uma porta de entrada potencialmente contaminada com os sinais e sintomas de espasticidade, especialmente em indivíduos com vacinação incompleta ou desconhecida. O aumento de CPK é frequente e intenso, decorrente da rabdomiólise derivada da espasticidade contínua. Secundariamente, podem ocorrer insuficiência renal com elevação de ureia e creatinina e acidose láctica, agravada por acidose respiratória consequente das dificuldades de ventilação provocadas pela rigidez da musculatura respiratória.  Elevações da leucometria e da PCR costumam se relacionar a infecção secundária das lesões traumáticas contamindas.

J. Situações particulares

1. Infecções em crianças

A interpretação do hemograma em crianças constitui-se como um desafio, pois há nesta faixa etária uma sobreposição de quadros infecciosos bacterianos e virais. A maioria das crianças entre 0 e 36 meses com febre sem foco definido tem infecção viral, porém algumas tem infecção bacteriana.

A contagem de leucócitos per se nem sempre é suficiente para indicar se a infecção é bacteriana ou não, pois viroses também podem cursar com leucometria elevada. O conceito de que leucometria elevada associada a desvio à esquerda é marcador de infecção bacteriana nem sempre é válido. É controversa a forma de investigar e manejar crianças pequenas com febre e infecção documentada do trato respiratório inferior através da leucometria, pois tanto este parâmetro quanto o desvio à esquerda têm se mostrado inúteis em predizer infecções bacterianas graves. Há desvio à esquerda em quadros infecciosos virais, o que leva a uma inexatidão diagnóstica. Para tanto, os médicos devem mudar seu conceito de padrão de infecção bacteriana e monitorar mais a contagem de neutrófilos e o índice de granulócitos imaturos. Com efeito, outros biomarcadores como proteína C reativa e procalcitonina podem ser mais úteis.

A neutrofilia é um indicativo mais fiel para a infecção bacteriana. De fato, Kupperman e cols (1998), revisaram 6579 casos com idade entre 3 e 36 meses que adentraram o serviço de emergência com febre ≥ 39oC e mostraram que os neutrófilos >10.000/mm3 foram mais preditivos de bacteremia por pneumococos que a leucometria >15.000/mm3. Além disso, a contagem de bastões isoladamente não previu acuradamente uma infecção grave.

Outro sítio comum de infecção bacteriana em crianças e neonatos é trato genitourinário e mais de ⅓ apresenta febre, com contagem de leucócitos normais para esta faixa etária. Menos de ¼ das crianças com infecção do trato urinário exibe leucometria entre 15.000-20.000/mm3, e em um número pequeno de crianças com uroculturas positivas mostram contagens de leucócitos superiores a 30.000mm3. As infecções urinárias em crianças e neonatos têm como principais microorganismos isolados o Enterococcus faecalis), Staphylococcus aureus, Enterobacter cloacae, Proteus mirabilis, Klebsiella pneumoniae, Citobacter diversus, Streptococcus do grupo B e Streptococcus viridans

Recém-nascidos (0 a 28 dias) com febre têm alto risco de infecção bacteriana, mesmo com exame físico inocente e resultados normais de testes laboratoriais. Então, os exames indicados são o hemograma com diferencial, hemocultura, análise e cultura de urina, análise de liquor, raio X de tórax e análise das fezes.

Hemogramas com leucocitose e neutrofilia absoluta aumentam a probabilidade de diagnóstico de sepse neonatal. A contagem absoluta de leucócitos e neutrófilos, a contagem ou índice de granulócitos imaturos e contagem de plaquetas são bons marcadores de infecção. A sepse neonatal com consumo neutrofílico pode resultar em leucopenia, com leucometria inferior a 5.000/mmou, em casos mais graves, a 1.000/mm3. Também podem levar a rápida resposta medular em horas com leucometria superior a 20.000/mm3.

A sepse tardia é comum em crianças internadas em unidades de terapia intensiva neonatal com mortalidade alta de 7% em bebês de termo e 39% em prematuros infectados por organismos gram-negativos. As contagens de leucócitos situam-se entre 15.000/mm3 a 30.000/mm3, podendo atingir leucometria acima de 50.000/mm3 em quadros mais graves, principalmente em prematuros. Há constante neutrofilia atingindo valores de até 25.000/mm3, com aumento dos granulócitos imaturos e trombocitopenia. Contagens de plaquetas inferiores a 50.000/mm3 são associadas a sepse tardia e indicam mau prognóstico. A PCR costuma elevar-se acima de 100 mg/L, com normalização dos parâmetros do hemograma após introdução da antibioticoterapia.

Crianças portadoras de anemia falciforme podem apresentar de forma basal, leucocitose com neutrofilia que por ocasião de fenômeno vasoclusivo é indicativo de prognóstico desfavorável. De qualquer forma, a incidência de infecções bacterianas graves em pacientes com anemia falciforme e esplenectomizados é aumentada e, na presença de febre alta, devem ser tratados empiricamente até que o resultado da cultura demonstre o agente causador.

 

Tabela 1 – Estratificação dos parâmetros hematológicos em neonatos de acordo com o resultado das culturas.

Contagem de leucócitos/mm3

Cultura            Positiva                                                  (n = 9834)

Cultura                  Negativa                                                    (n = 62.702)

<5.000

7%

4%

5.000–19.999

70%

76%

20.000 a 39.999

20%

18%

>40.000

3%

2%

Neutrófilos absoluto /mm3



<500

<1%

<1%

500-1.499

4%

4%

>1.500

95%

96%

Contagem de plaquetas /mm3



<50.000

8%

2%

50.000-99.000

15%

9%

100.000 a 149.999

15%

12%

150.000-399.999

50%

58%

>400.000

12%

19%

Adaptado do Pediatr Infect Dis J. Christoph P. Hornik et al, 2012.

 

Infecção bacteriana na gestante

Na gestação ocorrem diversas alterações anatômicas, fisiológicas, bioquímicas, endócrinas e hematológicas. São adaptações ao estado gravídico e ajudam no crescimento e sobrevida do feto.

 O sistema hematológico se modifica para prover vitaminas e minerais, tais como ferro, vitamina B12 e ácido fólico, para a hematopoese fetal, o que pode ocasionar anemia na mãe. A anemia fisiológica da gravidez consiste no aumento do volume plasmático que provoca uma hemodiluição e contribui para a diminuição da hemoglobina e do hematócrito, resultando em falsa anemia.  A OMS estipula como anemia em grávidas quando Hb<11g/dL ou Ht <33%.

No que diz respeito aos índices eritrocitários, o VCM pode estar no limite inferior da normalidade em mulheres grávidas cuja suplementação de ferro não seja a ideal. Já HCM e CHCM não se modificam em relação a mulheres não grávidas.

As plaquetas apresentam contagem elevada em menos de 10% das gestantes. É mais frequente a trombocitopenia devido ao aumento da destruição plaquetária.  

Quanto aos leucócitos, na gravidez observa-se leucocitose, devido ao aumento de neutrófilos em circulação que se inicia no segundo mês de gestação e atinge um plateau no segundo ou terceiro trimestre como contagens entre 9.000 e 15.000/mm3. Podem ser contados até 5% de mielócitos mesmo na ausência de desvio à esquerda e podem ser notados corpúsculos de Döhle em esfregaço sanguíneo.

Na mulher grávida a leucocitose não deve ser confundida com infecção bacteriana. A comparação da contagem basal de leucócitos (6 semanas antes da gravidez) pode eventualmente auxiliar.

Reação Leucemóide

A reação leucemóide (RL) é como o próprio nome diz uma reação da medula óssea (MO) normal a sinais agudos de infecção, inflamação ou estresse e na qual as alterações no sangue periférico (SP) se assemelham a um quadro de leucemia. Trata-se de uma resposta fisiológica que ocorre no paciente sistemicamente doente. Há, fundamentalmente, uma neutrofilia reacional, resultante do aumento de produção de neutrófilos, com liberação de células imaturas para a circulação, maior entrada de neutrófilos do compartimento marginal para o circulante (desmarginalização) e diminuição da saída de neutrófilos da circulação para os tecidos.

A RL mais comum é a neutrofílica que se caracteriza pelo aumento da contagem de leucócitos, geralmente maior que 50.000/mm3 para o adulto, com predominância de neutrófilos maduros, ou a presença de células precursoras (promielócitos, mielócitos e metamielócitos), eosinopenia e ausência de basófilos. Pode haver a presença de mieloblastos, mas em número reduzido. Esse quadro no SP se confunde com a leucemia mieloide crônica (LMC), leucemia neutrofílica crônica (LNC) ou, mais raramente, com neoplasias mieloproliferativas crônicas e síndromes mielodisplásicas/mieloproliferativas (SMD/NMP), em especial, a leucemia mielomonocítica crônica (LMMC) e a leucemia mieloide crônica atípica (LMCa). O quadro 1 aponta as diferenças entre essas doenças.

As principais causas de RL neutrofílica são as infecções graves (bactérias, vírus, micobactérias ou treponema), tumores sólidos com síndromes paraneoplásicas, hemólises e hemorragias abundantes, portanto, manifestações observadas em indivíduos agudamente doentes. O quadro 2 descreve as causas de RL neutrofílica.

A leucometria pode atingir valores elevados, como 150.000/mm3 na RL associada a processo infeccioso e, com a identificação e erradicação do agente, as alterações hematológicas são corrigidas.  As RL são comuns em infecções mais graves, sendo consideradas um indicador de criticidade.

Nas RLs por infecções bacterianas há predominância de neutrófilos maduros, desvio à esquerda até mielócitos e à microscopia visualizam-se alterações tóxico-degenerativas nos neutrófilos e monócitos, como granulações tóxicas, vacúolos citoplasmáticos e corpúsculos de Döhle.  Há também eosinopenia ou mesmo ausência de eosinófilos, linfopenia, monocitose discreta ou contagem normal de monócitos e basófilos. Outras condições patológicas que podem cursar com leucocitoses extremas são: asplenia funcional, púrpura trombocitopênica imune e infecções em pacientes com anemia falciforme, mas não são rotinas clínico-laboratoriais por serem achados incomuns de reações leucemoides.

As síndromes paraneoplásicas constituem-se em um conjunto de sinais e sintomas causados pelas citocinas (G-CSF, GM-CSF, IL3, etc.) secretadas pelo tumor maligno ou por reações imunológicas contra o tumor. A RL associada a síndromes paraneoplásicas ocorre em 10 a 15% dos tumores sólidos e também pode levar a contagem de leucócitos muito elevadas, maiores que 200.000/mm3. As síndromes paraneoplásicas ocorrem com mais frequência em carcinomas de pulmão, esôfago, pâncreas, nasofaringe, laringe, gástrico, melanoma, bexiga, rins, próstata, fígado e mieloma múltiplo. RL com granulocitose, eosinofilia e/ou basofilia são frequentes quando o tumor secreta G-CSF. Eosinofilia é mais frequente em linfoma de Hodgkin e carcinoma gastrintestinal. Com efeito, a RL no linfoma de Hodgkin é observada ao diagnóstico e resolve tão logo o tratamento é instituído.


Quadro 1 - Causas de reação leucemóide

Reação Leucemóide Neutrofílica

Infecção

Clostridium difficile, tuberculose disseminada, Shigelose disenterae grave, Stafilococcus aureus, Haemofilus Influenzae, Samonella typhi., Mycoplasma sp 

Cetoacidose diabética

Diabetes

Medicamentos

Sulfa, Dapsona, Glicocorticoide, G-CSF, ácido transretinoico (ATRA), Lítio

Necrose orgânica

Hepática, colite isquêmica

Hemorragia aguda grave

Retroperitoneal

Neoplasias (Síndrome paraneoplásica)

 Carcinoma de Pulmão, gastrointestinal, geniturinário, melanomas, linfomas de Hodgkin, sarcomas, neuroblastomas

Reação Leucemoide Eosinofílica

Infecção

 larva migrans visceral, malária, Triquinose (Trichinella spiralis)

Reação Leucemoide Linfóide

Infecção viral 

 

 

Mononucleose infecciosa, herpes vírus, citomegalovírus, HIV, parvovírus B 19

Infecção bacteriana

Bordetella pertussis

Reação Leucemoide Neonatal

Corioaminionite

 

Diagnóstico diferencial

O principal diagnóstico diferencial da RL neutrofílica é com neoplasias mieloides como LMC, LNC, NMP, LMMC e LMCa. Essas condições são doenças clonais da célula tronco hematopoética caracterizadas pela proliferação de células de uma ou mais linhagens mieloides (granulocítica, eritrocítica ou megacariocítica). Ocorrem, em geral, em adultos. Caracterizam-se, dentre outros aspectos (poliglobulia ou trombocitose), por apresentar leucocitose no SP com a presença de células precursoras e imaturas, daí o fato de diante de uma RL ter–se que afastar tais moléstias.

A MO dessas doenças é hipercelular para a idade com maturação preservada. A esplenomegalia e hepatomegalia ocorrem pelo sequestro do excesso de células sanguíneas ou pela proliferação de células precursoras hematopoéticas anormais.

A LMC se caracteriza pela proliferação granulocítica exuberante e pela presença da translocação entre os cromossomos 9 e 22 [t(9;22)(q34.1;q11.2) ou cromossomo Philadelphia]  que resulta na fusão gênica BCR-ABL1. Hoje, mais de um terço dos pacientes com LMC são diagnosticados por hemograma de rotina, portanto ainda assintomáticos. Os demais apresentam sintomas de fadiga, cansaço aos esforços, mal estar geral, sudorese noturna e emagrecimento. Cerca de 50% apresenta esplenomegalia palpável. O hemograma demonstra leucocitose (>12.000/mm3, em geral, 80.000/mm3) à custa de neutrófilos em diferentes estágios de maturação, com predomínio de segmentados, mas elevado número de mielócitos, <2% de blastos e, eventualmente, trombocitose.  A doença cursa com duas ou três fases: a fase crônica (FC), inicial, na qual a maioria dos pacientes é diagnosticada; a fase acelerada (FA), nem sempre detectável, e que se caracteriza pela progressão da doença com sintomas clínicos mais exuberantes (febre, emagrecimento, perda de resposta ao tratamento estabelecido, anemia etc.) além de aumento da leucometria, eosinofilia, basofilia e de blastos; e a fase terminal, chamada de crise blástica (CB), na qual há transformação em leucemia aguda. Menos de 5% dos casos abrem o quadro na FA ou na CB. O sangue periférico com os aspectos típicos acima descritos e a presença do BCR-ABL1 conclui o diagnóstico.   Porém, a fase da doença só poderá ser estabelecida pela observação da medula óssea (MO), por meio do mielograma, e do cariótipo realizado a partir de aspirado medular. A MO da FC é hipercelular, com proliferação granulocítica, semelhante àquela observada no SP, com expansão de mielócitos e <5% de blastos. A série eritroblástica está diminuída e a relação G:E é bastante aumentada, cerca de 10:1 ou 20:1. A série megacariocítica pode estar normal, proliferada ou discretamente diminuída e com elementos menores ou hipolobulados. Há certo grau de eosinofilia e basofilia.  Porém, se blastos > 10%, indica FA e, se > 20%, a CB.

Na presença de aberrações cromossômicas adicionais à t(9;22), tais como, trissomia do 8, trissomia do 9, trisosmia do 21, duplo Philadelphia ou isocromossomo do braço longo do 17 (iso17q) define-se a evolução clonal e classifica-se a doença como mais avançada, em FA ou CB na dependência dos demais aspectos.

A LNC é uma neoplasia mieloproliferativa rara na qual há leucocitose maior que 25.000/mm3, à custa de neutrofilia sustentada (>80%), geralmente segmentados e bastões, com menos de 5% (raramente até 10%) de precursores (promielócitos, mielócitos e metamielócitos) no sangue periférico. Não há mieloblastos em circulação ou são <1%. Podem ser observados corpúsculos de Döhle e granulação tóxica e não há displasia dos neutrófilos. A medula óssea é hipercelular devido à proliferação granulocítica sem displasia. e há hepatoesplenomegalia. A presença da mutação CSF3R T816N caracteriza essa entidade.

No grupo das NPM figuram principalmente a policitemia vera (PV), mielofibrose primária (MP) e trombocitemia essencial (TE).

A PV se caracteriza pela panmielose, ou seja, proliferação eritroide, megacariocítica e granulocítica, sendo esta última a que pode confundir com a RL pela leucocitose e desvio à esquerda. Entretanto, é o aumento da massa eritroide ou a poliglobulia que chama a atenção desta moléstia, com Hb> 16,5g/dL e >16g/dL em homens e mulheres, respectivamente. Mais de 95% dos casos apresenta a mutação somática JAK2 V617F enquanto os demais, a mutação no éxon 12.

A MF se caracteriza além da proliferação mieloide pela proliferação do estroma medular com fibrose colagênica. O quadro periférico de leucocitose com células imaturas pode confundir com a RL. Entretanto, outras características típicas do esfregaço de SP da doença, como a reação leucoeritroblástica (presença de granulócitos imaturos e eritroblastos circulantes) e a presença de dacriócitos direcionam para esse diagnóstico. Cerca de 50 a 60% dos casos apresenta a mutação JAK2 V617F, 30% a mutação no gene da calreticulina e 10% a mutação no gene MPL.

 Já a TE se caracteriza por trombocitemia expressiva (>450.000/mm3), mas pode haver leucocitose > 20.000/mm3 com desvio à esquerda. A MO é hipercelular com evidente aumento da série megacariocítica com elementos grandes, multilobulados e formando agrupamentos.

Igualmente à MF, cerca de 50 a 60% dos casos apresenta a mutação JAK2 V617F, 30% a mutação no gene da calreticulina e 10% a mutação no gene MPL.

 A LMMC e a LMCa são doenças que apresentam tanto características de mieloproliferação quanto de mielodisplasia, por isso incluídas na categoria de SMD/NMP.

A LMMC se caracteriza por monocitose persistente (>1000/mm3) no SP e pode ter leucócitos >13.000/mm3, situação em que é denominada LMMC com proliferação. No SP pode haver ainda eosinofilia. De acordo com a porcentagem de blastos a doença é classificada como LMMC-1 se < 5% e LMMC-2 se >5% no SP. A MO é hipercelular com alterações displásicas nas diversas linhagens mieloides. A mutação PDGFRbeta está presente em casos com eosinofilia.   A mutação do gene RAS é observada em 40% dos casos enquanto a JAK2 V617F em 10%. Outras mutações como TET2, ASXL1, SRSF2, RUNX1, CBL, IDH1/2, U2AF35, ZRSF2, DNMT3A, SF3B1, U2AF1, FLT3, EZH2 e SETBP1 podem estar presentes.

A LMCa é um subtipo raro, com características semelhantes à LMC porém, sem t(9;22) ou BCR-ABL1. Em geral, apresenta leucometria > 13.000/mm3 com > 10% de precursores neutrofílicos e < 20% de blastos.

Entretanto, há outras RL com eosinofilia e basofilia, assim como com linfocitose, por alguns autores, denominada de RL linfoide. Pois, se o conceito de RL é a presença de quadro periférico com desvio para formas mais jovens imitando uma leucemia, situações de linfocitose com elementos atípicos e imaturos podem ser observadas em casos reacionais a infecções virais. 

Investigação diagnóstica

A investigação diagnóstica consiste na detecção da causa e o exame físico deve ser minucioso à procura de possíveis causas, conforme descritas no quadro 1. Eventuais exames de imagem devem ser realizados, como raio X ou tomografia computadorizada de tórax, seios nasais, ou outros sítios, ultrassom de abdome ou tomografia para investigação de hematoma ou sangramento retroperitonial; e PET-CT para a detecção de linfonodos.

A avaliação da medula óssea pelo mielograma oferece com rapidez o diagnóstico diferencial com leucemia, NMP ou outras. A medula da RL é hipercelular, mas sem alterações leucêmicas enquanto nas demais doenças apresenta características peculiares. Cariótipo, pesquisa de mutações gênicas, biópsia de massa tumoral ou linfonodos também são de auxílio diagnóstico, se não se encontrou causa infecciosa.

As RL são processos benignos, ou seja, resolvem assim que a causa é tratada.

Quadro 2 - Diferenças entre RL neutrofílica, LMC, LNC, NMP, LMMC e LMCa

Manifestação clínica/ achados
RL neutrofílica
LMC
LNC
NMP
LMMC
LMCa
Febre
Presente
Infrequente
Infrequente
ausente
Ausente
Infrequente
Sintomas de doença aguda
Presente
Infrequente
Infrequente
infrequente
infrequente
Infrequente
esplenomegalia
Ausente
(excepcional em determinadas condições)
Frequente
Frequente
frequente
frequente
Frequente
Leucometria

+

+++

>25.000/uL

+

+

++

Sangue periférico
Neutrófilos segmentados e desvio à esquerda
Granulócitos imaturos, basófilos, esonifófilos
>80% dos neutrófilos



Eosinofilia/basofilia
-
+++
+

+
+
Monocitose
+/-



<1000

Células precursoras
Desvio à esquerda
Metamielócitos e Mielócitos predominantes

<10%
promielócitos, mielócitos, metamielócits, raramente mieloblastos



Displasia granulocítica
-
-
-
-
+
+
MO


Hipercelular,
Proliferação SG



t(9;22)/rearranjo BCR-ABL1
Ausente
presente
-
ausente
ausente
Ausente
Cariótipo
Normal
t(9;22)
+8, +9, +21
del(7q); del(20q)
 del(11q);
del(12p);complexo e -17;
+8,+9,+21
t(5;12)(q33;p13)
t(3;6)(q12;q24),
t(5;7)(q33;q11.2)

Mutação gênica
Ausente
BCR-ABL1
 CSF3R T6181 ou outra mutação activadora de CSF3R
JAK2 (V617F ou exon 12), Calreticulina ou MPL +
PDGFRB, JAK2V617F, KRAS, NRAS, TET2, ASXL1, SRSF2, RUNX1, CBL, IDH1/2, U2AF, ZRSF2, UTX, DNMT3A,SF3B1, U2AF1, FLT3, EZH2
CSF3R

 

Tratamento

Deve ser dirigido à causa, se infecciosa, antibióticos específicos contra o agente bacteriano; se medicamentosa, a imediata descontinuação da medicação; se sangramento retroperitoneal, cirurgia para estancamento da hemorragia; se cetoacidose diabética, controle e cuidados específicos.

Hiperleucocitose 

Hiperleucocitose é situação na qual a contagem de leucócitos é superior a 100.000/mm3. É uma emergência médica, pois se associa a alta mortalidade por leucoestase. A leucostase ocorre por acúmulo intravascular de blastos, neutrófilos ou linfócitos leucêmicos, ocupando a maior parte ou todo o lúmen vascular, com tendências tromboembólicas, sintomas respiratórios, neurológicos, hipercalemia, geralmente fatais. As hiperleucocitoses são mais comuns em processos leucêmicos agudos com leucometria acima 50.000/mm3, porém, casos com contagem de leucócitos maior que 500.000/mmcom predominância de blastos, neutrófilos ou linfócitos clonais no sangue periférico apresentam sintomas graves. Entretanto, também podem cursar de forma assintomática na leucemia linfocítica crônica (LLC). Em casos mais raros os leucócitos podem atingir 1.000.000/mm3, com consequente óbito em dias.

Já na progressão para fase acelerada ou blástica da LMC, a hiperleucocitose se acompanha da elevação da contagem de basófilos e blastos, aumento significativo dos granulócitos imaturos com desvio à esquerda escanolado até blastos. A sintomatologia é associada à aceleração da doença. As leucemias com diferenciação monocítica também podem apresentar-se com hiperleucocitose ao diagnóstico.

As hiperleucocitoses por leucemia exigem intervenção terapêutica correta e imediata, com leucoaférese, hidratação e, posterior quimioterapia e suporte transfusional, pois iniciar uma terapia com drogas antineoplásicas nestes pacientes pode levar a hipecalemia, insuficiência cardíaca e óbito em pouco tempo. 

As hiperleucocitoses são menos frequentes em processos infecciosos, exceto pela Coqueluche e em alguns casos de artrite infecciosa por Estafilococcus aureus. Nestes casos, os achados de linfocitose com elementos com endentações nucleares, podem auxiliar no diagnóstico. A leucometria diminui com o início da terapia antimicrobiana. Contudo, o exame citomorfológico deve ser minuscioso, pois essas células não são de fácil identificação e, para profissionais menos experientes, pode haver dificuldade de reconhecimento celular com consequente retardamento do diagnóstico. As hiperleucocitoses por infecções bacterianas apresentam predomínio de neutrófilos maduros e imaturos com alterações tóxico-degenerativas e, pela gravidade do quadro a instituição da terapia deve ser rápida, inicialmente com tratamento empírico e depois, após identificação do microoorganismo, tratamento específico. 

 Reação leucoeritroblástica

A leucoeritroblastose configura-se como uma resposta medular não específica associada a falência medular e muitas vezes de curta duração a diferentes doenças, como malignidades ou infecções, é caracterizada pela presença no sangue periférico de eritroblastos e de granulócitos imaturos. Outra causa comum de reação leucoeritroblástica (RLE) são as necroses de medula óssea que cursam com citopenias, anemia e trombocitopenia progressiva. Um achado com as necroses medulares são as leucoeritroblastoses circulantes, sendo vistas em cerca de 50% dos casos. As RLE são comuns também na mielofibrose primária (MF) com presença de dacrióticos no sangue periférico, sinal de metaplasia mielóide. A metaplasia mielóide ocorre por insuficiência medular, o fígado e o baço passam a produzir eritrócitos, sendo resultantes da hematopoese extramedular. A pancitopenia é outro achado comum em hemogramas de pacientes com necrose ou insuficiência medular, e pode ocorrer por múltiplas causas, tais como: Neoplasias mieloproliferativas com fibrose medular, metástases medulares de carcinomas, em casos de anemia falciforme com necrose medular, durante a quimioterapia e em infecções graves, septicemias.

Na MF é comum uma anemia normocrômica e normocítica. A contagem de leucócitos está habitualmente elevada e a leucopenia é observada em apenas 15% dos casos, com a presença, no sangue periférico de granulócitos imaturos e eritroblastos. A plaquetopenia está presente em um terço dos casos, como também trombocitose que pode atingir valores superiores a 600.000/mm3, em 10% dos pacientes.

 Sepse 

A sepse é uma síndrome complexa de origem infecciosa associada a síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SIRS) com manifestações clínicas que culminam em disfunção ou falência de múltiplos órgãos. A localização do foco infeccioso inicial em um paciente séptico é de fundamental importância, pois a conduta terapêutica e o prognóstico diferem conforme do foco infeccioso primário.  Assim, identificação precoce de parâmetros indicativos de infecções bacterianas são fatores essenciais para alcançar melhores resultados em pacientes sépticos. Combinações de biomarcadores podem melhorar o diagnóstico de sepse bacteriana em tempo hábil para a conduta. 

As bactérias que mais causam sepse são:  Staphylococcus aureus e Staphylococcus coagulase-negativos, Staphylococcus viridans, Streptococcus pneumoniae, Enterococcus, Escherichia coli, Klebsiella, Pseudomonas, Enterobacter, Proteus, Salmonella e Haemophilus, muitas encontradas na flora normal, no ambiente hospitalar ou em colonização no paciente crítico A sepse grave pode ser observada entre aqueles com estados de imunodeficiência primária ou secundária. A ausência do baço é um fator de risco bem conhecido para sepse pneumocócica grave e avassaladora, bem como para outras bactérias encapsuladas. As principais fontes de infecção e disseminação são os pulmões e trato respiratório.

A prevalência de sepse em pacientes críticos e internados em UTI é alta, afetando 1/3 de todos os pacientes hospitalizados. Nesses casos, a sepse tende a evoluir de forma mais rápida ou fulminante. A taxa de mortalidade é de aproximadamente 40% dos casos diagnosticados, levando a 3 a 4 óbitos os primeiros meses após a sepse. Os principais determinantes do desfecho, tanto a curto quanto a longo prazo, dos pacientes com sepse são a gravidade das doenças subjacentes e as comorbidades, a presença de falência de múltoplos órgãos no início da sepse ou a evolução subsequente.

 Meningococcemia  

 A Neisseria meningitidis é uma bactéria gram-negativo, aeróbia, imóvel, que se agrupa em pares, formando diplococos presente na nasofaringe de indivíduos normais. É a responsável pela doença meningocócica. A infecção meningocócica se desenvolve quando este microorganismo se espalha a partir da mucosa nasofaríngea e invade a corrente sanguínea. As manifestações clínicas da meningococcemia variam, com alguns casos leves com clínica de meningite aguda purulenta enquanto outros de sepse grave. 

A meningococcemia grave progride rapidamente para choque, falência de múltiplos órgãos e morte dentro de 24 horas se o tratamento não foi imediatamente iniciado. Os sintomas iniciam-se de forma abrupta com sinais de resposta inflamatória sistêmica, como febre, hipotensão, sonolência, náusea, vômito, irritabilidade, prostração, cefaleia e falta de apetite, em 4 a 6 horas após o início da doença. Sinais inespecíficos de sepse, como dor na perna, mãos e pés frios e cor anormal da pele, também são observados dentro de 12 horas do início da doença. Petéquias e manchas equimóticas são clássicas na doença meningocócica.

A coagulopatia associada à meningococcemia é frequente e geralmente multifatorial. Há um desequilíbrio entre a coagulação e a fibrinólise e, portanto, embora os testes de coagulação formais possam ser significativamente prolongados (TAP, TTPA e D-dímero), há uma tendência à trombose intravascular. A presença de endotoxina meningocócica no sangue gera uma resposta pró-inflamatória aguda grave. As citocinas estimulam a liberação de fatores teciduais e levam à formação de coágulos de trombina e fibrina. Citocinas e trombina inibem o ativador do plasminogênio tecidual e liberam o inibidor do ativador do plasminogênio-1 (PAI-1), comprometendo a via fibrinolítica endógena. A formação de trombina estimula as vias inflamatórias e enfraquece ainda mais o sistema fibrinolítico endógeno pela ativação do inibidor da fibrinólise ativável pela trombina (TAFI). A microtrombose e a disfunção endotelial associadas à resposta pró-inflamatória reduzem a expressão endotelial dos receptores da trombomodulina e da proteína C endotelial, comprometem a ativação dessa proteína e incapacitam a fibrinólise. O estado pró-coagulante e pró-inflamatório associado a essas alterações produz lesão endovascular, trombose microvascular, isquemia de órgãos e disfunção multissistêmica.

Hemograma e demais exames laboratoriais na sepse

Na sepse, a anemia de moderada (hemoglobina entre 7 a 10g/dL) a grave (hemoglobina <7 g/dL) é achado comum, e está associada à doença de base e ao estado inflamatório. Não é incomum o paciente progredir para a descompensação cardiovascular, com níveis de hemoglobina menores que 4,0 g/dL e necessidade de suporte transfusional. A presença de esquizócitos deve levar à investigação anemia microangiopática pela CIVD, pois a fragmentação eritrocitária ocorre por colisão das hemácias com microtrombos presentes na circulação de pacientes sépticos.  Para monitorar o grau de hemólise faz-se necessária a dosagem sérica da lactato desidrogenase (LDH) que pode atingir níveis superiores a 2500 U/L, em quadros sépticos graves. Na observação de esfregaços de pacientes com sepse, caso se identifiquem corpúsculos de Howell-Jolly nos eritrócitos, isso sinaliza comprometimento do baço e progressiva asplenia funcional.

A contagem global de leucócitos eleva-se rapidamente na sepse, pois varia entre 15.000 a 30.000/mm3, podendo atingir 50.000/mm3 leucócitos, devido à neutrofilia absoluta (contagens acima de 20.000/mm3), desvio à esquerda, e presença de granulócitos imaturos. O aparecimento de grande quantidade de granulócitos imaturos no sangue periférico tem-se mostrado um marcador precoce de sepse e persiste durante a evolução do quadro.  Invarialmente, podem ser vistas no hemograma contagens de leucócitos acima de 140.000/mm3, com neutrofilias exuberantes como 130.000/mm3.

No exame de sangue periférico é comum a visualização de granulações tóxicas grosseiras, corpúsculos de Döhle e vacúolos citoplasmáticos em neutrófilos e monócitos. Podem ser notadas inclusões bacterianas intra ou extraneutrofílicas. Pode haver também inclusões em forma de cápsula em neutrófilos, sugestivas de Histoplasma capsulatum, o que leva à suspeita de HIV.  A monocitose também é um achado comum em pacientes sépticos, atingindo contagens 1500/mm3. A linfopenia e eosinopenia, ou mesmo a ausência de eosinófilos, tem se mostrado como indicadores de sepse grave. Por outro lado, o aumento dos eosinófilos pode sinalizar melhora do quadro como falência de suprarrenal.

PCR é outro biomarcador de processo inflamatório e em paciente com sepse grave, os níveis séricos dessa proteína podem se elevar acima de 100mg/dL ou 350 mg/dL, e assim permanecer por vários dias.

Entretanto, a contagem de leucócitos também pode se apresentar diminuída, visto que os neutrófilos são consumidos pelas bactérias ou, ao contrário, entram em apoptose. Outro achado periférico que pode ser encontrado em pacientes sépticos é a pancitopenia, um marcador de prognóstico desfavorável.

A sepse é responsável por aproximadamente 50% de toda a trombocitopenia em pacientes críticos. A contagem de plaquetas pode apresentar-se normal ou baixa, e a trombocitopenia progressiva decorre do comprometimento hepático, com consumo de plaquetas nos pacientes sépticos que evoluem com CIVD, com púrpura trombocitopênica trombótica, púrpura pós-transfusional ou ainda induzida por heparina. Trombocitopenia grave (10.000 a 50.000/mm3) leva a aumento do risco de sangramentos e desenlace desfavorável. Há prolongamento do TAP e TTPA que refletem o consumo dos fatores da coagulação. O aumento dos níveis de D-dímero, com ou sem hipofibrinogemia, suscita a investigação de tromboses e CIVD.

A elevação das enzimas hepáticas, aspartato aminotransferase (AST), alanina aminotransferase (ALT), gama glutamil transferase (γGT) e fosfatase alcalina (FAL), bem como hiperbilirrubinemia à custa da direta refletem a disfunção hepática e são comuns na sepse.  O aumento sérico da bilirrubina indireta pode também estar associado à hemólise. Com a disseminação bacteriana, há comprometimento da função renal com uremia, elevação da creatinina sérica, oligúria, podendo evoluir para insuficiência renal. Os testes de função renal tornam-se necessários e periódicos em pacientes sépticos.

A procalcitonina (PCT) é um pró-hormônio marcador de infecções e tem sido elencado como um excelente biomarcador de gravidade em pacientes sépticos. Os níveis séricos de procalcitonina têm-se demonstrado úteis para orientação terapêutica. A PCT possui alta sensibilidade e especificidade para estratificar a sepse e os níveis de PCT podem predizer precocemente o desfecho e propiciar intervenções no sentido de mudar o curso do paciente com sepse grave. Os valores normais de PCT variam entre 0 a 0,05 ng/mL, e valores entre 0,05–0,5 ng/mL indicam baixo risco de sepse. Níveis de PCT entre 0,5–2 ng/ml estão associados a maior risco de desenvolvimento de sepse e níveis de PCT> 2 ng ng/mL sinalizam sepse grave.

A gasometria arterial revela acidose metabólica e láctica por hipoperfusão. A elevação dos níveis séricos de lactato confere pior prognóstico. Ocorre também desequilíbrio hidroeletrolítico com hipocalemia, hipernatremia, e necessidade de reposição de potássio e de fluidos.

CASO CLÍNICO 3

Paciente 74 anos, sexo feminino, procurou emergência com náuseas, vômitos, diarreia e dor abdominal, com suspeita de meningite. Após 24 horas, evoluiu com rebaixamento do nível de consciência, oligonúria, hipotensão, extremidades frias e equimoses. Ao exame físico, apresentava-se inconsciente, em Glasgow 3, com PA inaudível, taquicárdica e taquipneica e com sinais de baixa perfusão periférica. Procedeu-se à reposição volêmica agressiva, monitoração hemodinâmica, introdução de droga vasoativa e posterior intubação orotraqueal, suporte ventilatório invasivo e isolamento respiratório.


Parâmetros
 
 
Valores de referência
RBC (milhões/mm3)

3.98

                                                 
4.3 – 5.0
Hemoglobina (g/dL)

11.7

 
12,0 – 14.0
Hematócrito (%)

37.4


40 -46
VCM (fL)

93.9

 
82 – 98
HCM (pg)

29.9


27-32
CHCM (g/dL)

31,2

 
32 -36
RDW (%)

14,7


12-14
WBC (mm3)
30.900
 
4.000 – 11.000

Promielócitos

1 %

309/mm3

0

Mielócitos

2 %

618/mm3

0

Metamielócitos

10 %

3.090/mm3

0

Bastões

40 %

12.360/mm3

500

Segmentados

39 %

12.051/mm3

2.000-7.000

Linfócitos

5 %

1.545/mm3

1.000-3.000

Monócitos

3 %

927/mm3

200-1.000

Eosinófilos

0 %

-

20-500

Basófilos

0 %

-

20-100
Observações: Granulações tóxicas grosseiras e vacúolos nos neutrófilos

Plaquetas (mm3)
56.300
 
150.000 – 400.000


Os exames bioquímicos mostraram: Albumina 1,6 g/dl, Creatinina 2,29 mg/dl, Potássio 3,3 mmol/L, Proteína C Reativa (PCR) 119,2 mg/dl, lactato 11,6 mmol/L. Os testes rápidos para hepatite B e C, HIV e sífilis foram negativos. As culturas de urina e sangue não apresentaram crescimento bacteriano. O líquido cefalorraquidiano (LCR) apresentou-se turvo, de coloração amarela, coágulo ausente, com leucometria de 10.980/mm3 (polimorfonucleares 85%, linfomononucleares 15%), hemácias 8.160/mm3, glicose 29 mg/dL, proteínas totais 389 mg/dL, cloretos 109 mEq/L, LDH 388 U/L, VDRL negativo, pesquisa de BAAR negativa e a bacterioscopia mostrou numerosos neutrófilos e alguns diplococos gram negativos. O teste molecular (PCR) para meningite bacteriana detectou Neisseria meningitidis no LCR e no soro.

Foi iniciado antibioticoterapia com ceftriaxone 2g, de 12 em 12 horas, clindamicina 600mg, de 8 em 8 horas e dexametasona. A paciente evoluiu com choque séptico refratário, CIVD, instabilidade hemodinâmica progressiva, sem responsividade à terapêutica proposta. Evoluiu com disfunção de múltiplos órgãos e óbito.

Morfologia e alterações tóxico-degenerativas 

As granulações tóxicas refletem a aceleração da neutropoese com persistência dos grânulos primários de promielócitos em neutrófilos bastonetes e segmentados (Fgura 1, 2 e 3). Historicamente são associadas a infecções bacterianas, contudo também são vistas em pacientes em uso de fator de crescimento granulocítico, em processos inflamatórios, gestações. Comumente, estão presentes em esfregaços de sangue periférico de pacientes com infecções bacterianas.

Há anos, os laboratórios quantificam as granulações toxicas em finas, médias e grosseiras, e outros semiquantificam em cruzes. Contudo, como os neutrófilos são granulócitos que normalmente possuem granulações finas, o termo granulações tóxicas médias, é no mínimo confusa, pois média remete a um valor matemático e, para quantificar em granulações tóxicas médias, não há uma padronização fiel, além de tão pouco valor diagnóstico. As granulações tóxicas devem ser citadas como granulações tóxicas presentes em raros, alguns, vários ou numerosos neutrófilos e, quando observadas como granulações tóxicas grosseiras em esfregaço de sangue periférico devem ser citadas.

Outro achado morfológico encontrado no exame periférico de pacientes com processos infecciosos bacterianos são os vacúolos ou microvacúolos citoplasmáticos em neutrófilos (Figura 4 e 5). Podem ser resultantes da exposição ao anticoagulante EDTA, e devem ser citados em alguns ou vários neutrófilos.


Figura 1 – Neutrófilo segmentado com granulações tóxicas. Cellavision, Coloração de May-Grunwald Giemsa, x1000. Cedido pelo Grupo Fleury.


Figura 2 – Neutrófilo bastonete com granulações tóxicas, Cellavision, Coloração de May-Grunwald Giemsa, x1000. Cedido pelo Grupo Fleury.


Figura 3 – Neutrófilo segmentado com granulações tóxicas grosseiras. Cellavision, Coloração de May-Grunwald Giemsa, x1000. Cedido pelo Grupo Fleury.


Figura 4 – Microvacúolos citoplasmáticos em um neutrófilo segmentado. Cellavision, Coloração de May-Grunwald Giemsa, x1000. Cedido pelo Grupo Fleury.


Figura 5 – Microvacúolos citoplasmáticos e granulações tóxicas em um neutrófilo bastonete. Cellavision, Coloração de May-Grunwald Giemsa, x1000. Cedido pelo Grupo Fleury.


Figura 6 – Numerosos vacúolos citoplasmáticos e granulações tóxicas em neutrófilo segmentado. Cellavision, Coloração de May-Grunwald Giemsa, x1000. Cedido pelo Grupo Fleury.


Figura 7 – Vacúolos citoplasmáticos deformando o núcleo de neutrófilo. Cellavision, Coloração de May-Grunwald Giemsa, x1000. Cedido pelo Grupo Fleury.


Leitura recomendada

Hemograma: Manual de Interpretação. Renato Failace e Flavo Fernandes 6º edição. Editora Artmed. 2015.

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