Alterações hematológicas nas infecções parasitárias

Tópicos presentes neste capítulo

  • Introdução  
  • A) Toxoplasma  
  • 1- Aspectos clínicos:  
  • Malária:  
  • Babesiose  
  • Tripanossoma  
  • Doença de Chagas  
  • Leishmania  
  • Parasitoses intestinais  
  • Leitura recomendada  

Introdução

Parasitas são organismos que vivem em associação com outros dos quais retiram os meios para a sua sobrevivência, em geral prejudicando o organismo hospedeiro. São classificados como ectoparasitas, quando afetam a parte exterior do corpo do hospedeiro, ex. piolho, pulga, carrapato, etc; endoparasitas, quando vivem no interior do corpo do hospedeiro, ex. tenia, nematelmintos, etc, e hemoparasitas, quando vivem na corrente sanguínea, ex. plasmodio, tripanossoma, etc. 

Os parasitas podem ter seu ciclo de vida exclusivamente no sangue, o que os tornam predominantemente hematozoários, como o plasmódio e a babesia (esporozoários); ou podem ter parte do seu ciclo de vida no sangue, como as filárias. Além disso, os hemoflagelados como Trypanossoma (cruzi e o brucei) e Leishmania também podem ser visualizados em esfregaços de sangue periférico, por isso têm importância clínica nos diagnósticos diferenciais. Alguns parasitas mais raros que também podem ser identificados em esfregaços são aqueles que causam a filariose e a oncocercose. Devido ao fato desses parasitas serem diagnosticados em análise de sangue periférico e promover consequentes alterações nas diferentes células sanguíneas e levar a modificações no hemograma, a seguir, serão discutidos alguns aspectos clínicos, alterações hematológicas, bem como diagnósticos, incluindo a análise de sangue periférico característicos dessas parasitoses.

A) Toxoplasma

1- Aspectos clínicos:

A toxoplasmose é uma infecção de distribuição mundial causada pelo protozoário intracelular Toxoplasma gondii. Pessoas imunocompetentes com infecção primária geralmente são assintomáticas. No entanto, em alguns hospedeiros imunocompetentes, a infecção por T. gondii pode se apresentar como uma infecção sistêmica aguda ou como doença ocular (por exemplo, uveíte posterior).

A infecção em humanos ocorre mais comumente pela ingestão de carne crua ou mal cozida que contém cistos teciduais, pela ingestão de água ou alimentos contaminados com oocistos, ou congenitamente pela transmissão transplacentária da mãe que adquiriu a infecção durante a gravidez. A transmissão também foi relatada através do transplante de órgãos sólidos.

Os sintomas na fase aguda são do tipo constitucional, com febre, calafrios e suores. No entanto, esses sintomas, geralmente, são leves e os episódios febris duram de dois a três dias. A linfadenomegalia de múltiplas cadeias é frequente. Dores de cabeça, mialgias, faringite, hepatoesplenomegalia e / ou rash maculopapular difuso não pruriginoso também podem ocorrer.

Geralmente, é necessário realizar exames laboratoriais para estabelecer o diagnóstico de toxoplasmose, porque as manifestações clínicas da infecção não são tão intensas. A metodologia diagnóstica requer uma consideração cuidadosa baseada na apresentação clínica do paciente. As modalidades diagnósticas disponíveis para T. gondii incluem ensaios sorológicos, técnicas de base molecular (por exemplo, ensaios baseados na reação em cadeia da polimerase) e histopatologia.

Para pacientes com suspeita de toxoplasmose, a abordagem diagnóstica depende do estado imunológico do paciente e de sua apresentação clínica.

2- Diagnóstico:

Os achados laboratoriais são inespecíficos em pacientes com toxoplasmose.

 2.1. Alterações no hemograma: 

As alterações que geralmente estão presentes no hemograma são leucopenia ou leucocitose, linfocitose e monocitose (ambas no início da infecção), sendo a eosinofilia a mais frequente. A trombocitopenia é comum tanto nas crianças com doença manifesta, quanto nas que apresentam a forma assintomática. Os pacientes podem ter uma discreta linfocitose com ou sem células atípicas. Se linfócitos atípicos estiverem presentes, eles geralmente somam >10% da contagem total de leucócitos. As transaminases hepáticas também podem estar levemente elevadas, e pode haver um aumento moderado na proteína C-reativa. 

 2.2. Diagnóstico específico:

Os testes parasitológicos diretos para a detecção do toxoplasma em amostras biológicas são pouco utilizados na prática clínica devido à sua complexidade de execução e, dependendo da amostra, sua baixa sensibilidade. Rotineiramente, o diagnóstico de toxoplasmose aguda é feito por meio da detecção de anticorpos específicos contra o parasita, enquanto o diagnóstico das formas congênitas e de reativação em imunossuprimidos ou mesmo de complicações da infecção aguda, podem requerer métodos moleculares (PCR) ou exame histopatológico.

O diagnóstico sorológico na fase aguda se dá por meio da pesquisa de anticorpos das classes IgG e IgM, mais comumente por meio de metodologia imunoenzimática. A presença de IgM pode corresponder à infecção recente e tem alto valor preditivo positivo em pacientes com sintomatologia sugestiva de toxoplasmose aguda, excluídas outras causas. Por outro lado, sua presença em pacientes oligo ou assintomáticos, ou em concomitância com IgM contra outros agentes de infecção, deve ser interpretada com cautela, uma vez que esses anticorpos podem permanecer detectáveis por até dois anos após a aquisição da infecção. Nesses casos, sobretudo nas gestantes assintomáticas com resultado positivo de IgM no rastreamento pré-natal, pode ser utilizado o teste de avidez de IgG para diferenciar infecções antigas de recentes: anticorpos de produção recente tendem a ter menos afinidade pelos antígenos utilizados nos ensaios imunoenzimáticos, de modo que o tratamento com substâncias que desestabilizam o complexo antígeno-anticorpo provoca o desprendimento dos anticorpos fixados, isto é, define anticorpos de baixa avidez. Ao contrário, anticorpos produzidos no contexto de infecções de curso superior a 4 meses costumam apresentar alta avidez.

Nos casos em que a infecção aguda é confirmada (ou fortemente suspeita) durante a gestação, o diagnóstico da infecção fetal pode ser feito por meio de PCR no líquido amniótico. A PCR tem sido utilizada, ainda, no sangue e no liquor para diagnóstico de doença por reativação em imunossuprimidos, a exemplo da doença parasitêmica com ou sem miocardite em receptores de transplante, e da neurotoxoplasmose em pacientes com AIDS.

O toxoplasma pode ser detectado na histopatologia em uma das duas formas: taquizoítos ou cistos. Taquizoítos são em forma de crescente e geralmente estabelecem o diagnóstico de infecção aguda. Os cistos são de forma circular e podem representar infecção latente ou doença de reativação, dependendo do hospedeiro. Podem ser utilizados corantes histológicos comuns, como hematoxilina e eosina, Wright ou Giemsa, embora a imuno-histoquímica, com o uso de anticorpos específicos anti-Toxoplasma, ou testes de imunoperoxidase, que usam antissoros para T. gondii, sejam mais sensíveis e específicos que as técnicas de coloração de rotina e possam ser particularmente úteis para o exame de tecido necrótico. O exame histopatológico pode ser necessário nas formas graves em imunossuprimidos que não tenham sido diagnosticadas por métodos não invasivos. Pode ser feito também o estudo da placenta para confirmação de toxoplasmose congênita.

3- Diagnósticos diferenciais:

A toxoplasmose aguda deve ser considerada no diagnóstico diferencial de pacientes que apresentam febre e adenopatia.

Diagnósticos alternativos incluem:

Infecção pelo vírus Epstein-Barr (mononucleose) - A toxoplasmose aguda e a infecção por EBV podem apresentar adenopatia e linfocitose atípica. No entanto, os pacientes com EBV são mais propensos a apresentar faringite e amigdalite.

Infecção por citomegalovírus - A toxoplasmose e a infecção por citomegalovírus (CMV) podem causar uma síndrome semelhante à mononucleose em adultos imunocompetentes. No entanto, linfonodos cervicais aumentados não são tão comuns em pacientes com doença por CMV.

Infecção aguda por HIV - Muitos dos sintomas da toxoplasmose aguda se sobrepõem aos sintomas da infecção aguda pelo HIV (por exemplo, febre e linfadenopatia generalizada). Deve-se suspeitar de infecção precoce pelo HIV em pacientes que tiveram uma exposição recente de alto risco (por exemplo, relações sexuais desprotegidas ou compartilhamento de agulhas).

Tularemia - A tularemia deve ser considerada em pacientes com febre e adenopatia se eles estiverem em risco de exposição a Francisella tularensis (por exemplo, agricultores, veterinários, caçadores, paisagistas e manipuladores de carne). No entanto, ao contrário da toxoplasmose, em que a adenopatia é tipicamente bilateral e não convencional, os pacientes com tularemia glandular geralmente apresentam uma linfadenopatia regional sensível envolvendo um ou mais linfonodos. É uma doença rara no Brasil.

Doença da arranhadura do gato - A doença da arranhadura do gato devida à Bartonella henselae deve ser considerada em indivíduos (particularmente crianças) com febre e adenopatia. No entanto, ao contrário da toxoplasmose, os linfonodos são quase sempre dolorosos, apresentam eritema da pele suprajacente, ocasionalmente, supurativos. Além disso, a localização da linfadenopatia depende do local da inoculação. Os locais mais comuns são os linfonodos axilares, epitrocleares, cervicais, supraclaviculares e submandibulares.

Tuberculose - A tuberculose deve ser considerada em pacientes de regiões endêmicas que apresentam linfadenopatia cervical e febre. Pacientes com tuberculose normalmente têm uma apresentação crônica, e o exame físico revela uma massa firme, discreta ou nós emaranhados fixos nas estruturas adjacentes; a pele sobrejacente pode ser endurecida. O diagnóstico de linfadenite tuberculosa é estabelecido pelo exame histopatológico, juntamente com baciloscopia (pesquisa de bacilo álcool-ácido-resistente) e cultura do material do linfonodo.

Causas não infecciosas - Outras considerações no diagnóstico diferencial incluem doenças não infecciosas, como sarcoidose, doença de Hodgkin e linfomas não-Hodgkin.

Malária:

Aspectos clínicos

A malária é uma doença infecciosa, com manifestações de caráter agudo, podendo, eventualmente, ter evolução crônica. É causada por quatro espécies de plasmódio: P. falciparum, P malariae, P. ovale, P. vivax.Casos fatais são atribuídos principalmente ao Plasmodium falciparum, no entanto, outros plasmódios, como o P. vivax, podem causar doenças graves e até a morte. Há estimativa de cerca de 300 a 500 milhões de casos de malária a cada ano. O diagnóstico rápido e preciso da malária é fundamental para a implementação do tratamento adequado para reduzir a morbimortalidade associada

A transmissão é predominantemente vetorial, por meio da picada de fêmeas de mosquitos do gênero Anopheles. Embora a transmissão inter-humana seja incomum, o plasmódio é um parasita intra-eritrocitário, de modo que a transmissão pode ocorrer pela transfusão de hemocomponentes que contenham hemácias parasitadas. Esse risco geralmente está restrito a áreas endêmicas ou a doadores que estiveram nessas áreas. A transmissão transfusional ocorre por portadores assintomáticos de infecção.

De modo geral, a malária deve ser suspeitada no caso de febre (temperatura ≥37,5 ° C) e exposição epidemiológica relevante (residência ou viagem, nas duas semanas que precedem o início dos sintomas, para área onde a malária é endêmica). A malária também deve ser suspeitada em crianças com palidez palmar ou concentração de hemoglobina <8g/dL em áreas endêmicas da doença com transmissão estável ou durante alta temporada de transmissão em áreas com doença sazonal.

Diagnóstico:

Alterações hematológicas

A malária pode afetar qualquer órgão ou sistema, sendo o sistema hematológico o mais afetado. A maioria das alterações descritas ocorre na linhagem de células vermelhas e plaquetas, causando anemia e trombocitopenia. Relatos de estudos com análise de pacientes com malária mostram uma redução significativa na hemoglobina, na contagem de plaquetas e na contagem total de leucócitos em pacientes com a doença quando comparados àqueles sem a doença. Por outro lado, os valores de RDW (valor de distribuição dos glóbulos vermelhos) são mais elevados nos doentes com malária do que nos doentes sem a infestação pelo plasmódio.

A anemia é uma manifestação comum, particularmente nas formas mais graves, com hemólise intensa. Nos episódios agudos, a gravidade da anemia é diretamente proporcional à intensidade da parasitemia. Já nos pacientes com a doença na sua forma crônica, a anemia pode ser persistente, com níveis estáveis ou lentamente decrescentes de hemoglobina. A patogênese da anemia na malária é complexa e multifatorial. Embora não seja completamente compreendida, pensa-se frequentemente que resulta de uma combinação de hemólise de glóbulos vermelhos parasitados, remoção acelerada dos mesmos e dos não-parasitados, eritropoese diminuída e ineficaz com alterações diseritropoeticas, além de anemia de doença crónica. Outros fatores contribuintes podem incluir diminuição da deformabilidade dos glóbulos vermelhos e fagocitose esplênica.

De modo geral, a série leucocitária apresenta-se com leucopenia, apresentando em algumas situações, desvio a esquerda. As alterações nas contagens de glóbulos brancos são menos relatadas e foram associadas a fatores como gravidade da infestação, espécies de Plasmodium, infecções concomitantes e resposta ao tratamento. Descrições de leucocitose, leucopenia, neutrofilia e neutropenia, presença de neutrófilos imaturos e alterações nos linfócitos, monócitos e eosinófilos nesses pacientes foram observadas, mas estudos não mostraram uma alteração específica do perfil leucocitário na malária.

Verificou-se que as contagens de glóbulos brancos são geralmente mais baixas em doentes com malária do que em indivíduos saudáveis e que existe uma tendência para níveis mais baixos de leucócitos em doentes infestados com P. falciparum ou P. vivax. Acredita-se que a leucopenia seja devida à localização atípica dos leucócitos na circulação periférica, do sequestro esplênico e de outros reservatórios marginais, em vez de depleção ou estase. Além disso, observou-se que essas alterações são dinâmicas durante a doença, com contagens mais baixas de linfócitos e eosinófilos no início e contagens mais altas à medida que os sintomas desaparecem. Há descrições de leucocitose associada à mortalidade, presença de coinfecções e bacteremia causadas por bactérias gram-negativas em casos complicados de malária por P. falciparum.  

Pode-se também encontrar linfócitos atípicos, fagocitose de eritrócitos parasitados por monócitos, pigmentos maláricos nos monócitos e, ocasionalmente, nos neutrófilos. A linfopenia e a presença de linfócitos reativos têm sido relatadas frequentemente, imitando uma infecção viral. A presença de pigmento malárico nos leucócitos está associada à presença da espécie falciparum. Monócitos com pigmentos podem ser vistos por vários dias no esfregaço de sangue periférico, mesmo após eliminação de eritrócitos parasitados. Esse pigmento é a homozoína, que é um produto oriundo da degradação da hemoglobina. Ele pode ser visto em esfregaços e é birrefringente à luz polarizada.

Em diversas situações, as plaquetas podem estar diminuídas. O mecanismo sugerido de trombocitopenia pode ser a destruição periférica, a remoção excessiva de plaquetas pelo sequestro esplênico e o consumo pelo processo de coagulação intravascular disseminada (CIVD). A trombocitopenia relativa também pode ser decorrente de um encurtamento da expectativa de vida das plaquetas. Os anticorpos antiplaquetários também foram implicados na patogênese da trombocitopenia.

O valor de RDW juntamente com o volume corpuscular médio (VCM) aparecem como novos parâmetros a serem estudados na malária. O RDW descreve a dispersão populacional do volume de hemácias ou o intervalo de alterações no tamanho dos eritrócitos que, em sua maioria, se apresenta aumentado após a invasão pelo agente causador da malária. Há relatos de que os valores encontrados são mais elevados nos pacientes com malária do que nos que não têm a doença. Embora o papel do RDW no diagnóstico da malária seja discutível, a presença de RDW aumentado correlacionou-se bem com a macrocitose em um estudo realizado, portanto, a combinação de RDW e VCM pode ser útil. A variação no RDW é atribuída à infecção de células vermelhas por parasitas da malária (especialmente P. vivax), o que torna as células macrocíticas. Os aumentos iniciais no tamanho são seguidos pela ruptura dos eritrócitos infectados. Como o ciclo nunca é sincronizado, parasitas em mais de um estágio de desenvolvimento, geralmente, são vistos no esfregaço de sangue, portanto, em glóbulos vermelhos de diferentes tamanhos. Isso não é visto na malária por P. falciparum, na qual os eritrócitos mantêm seu tamanho original.

Esfregaço de sangue periférico:

A ferramenta padrão para o diagnóstico da malária é a detecção de parasitas em esfregaços sanguíneos, corados por Giemsa e observados à microscopia óptica. Dependendo da experiência do observador, a sensibilidade da análise pode ser muito alta, com a detecção de parasitas da malária em densidades tão baixas quanto 4 a 20 parasitas/mL de sangue (parasitemia de aproximadamente 0,0001 a 0,0005%). Erros diagnósticos ocorrem mais comumente no contexto de parasitemia de baixa densidade (10 a 100 parasitas/mL de sangue), embora erros também possam ocorrer com densidades mais altas. Em laboratórios bem equipados, fora das áreas endêmicas, a variação nas técnicas utilizadas para preparação e interpretação pode influenciar os resultados, e erros podem ocorrer em laboratórios com exposição limitada a infecções tropicais. Portanto, pela microscopia pode não se conseguir detectar com segurança a parasitemia muito baixa (<5 a 10 parasitas/mL) ou casos em que a maioria da biomassa do parasita é sequestrada (por exemplo, no caso de sequestro placentário durante a gravidez).

A preparação dos esfregaços consiste na aplicação de uma gota de sangue em uma lâmina, seguida de procedimentos de secagem e coloração. Pode-se usar sangue capilar ou sangue venoso anticoagulado. Os esfregaços devem ser preparados o mais rapidamente possível após a coleta de sangue, para evitar alterações na morfologia do parasita e nas propriedades de coloração.

Dois tipos de esfregaços de sangue são usados na microscopia da malária: esfregaços finos e espessos. A preparação do esfregaço fino mantém a integridade e a morfologia dos eritrócitos, de modo que os parasitas são visíveis dentro dos glóbulos vermelhos. Os esfregaços finos permitem a identificação das espécies de parasitas infectantes (figura X) e podem ser usados para medir a densidade parasitária. A preparação do esfregaço espesso envolve a lise mecânica dos eritrócitos para que os parasitas da malária possam ser visualizados independentemente das estruturas celulares. Os esfregaços espessos permitem que o microscopista revise uma quantidade relativamente grande de sangue, por isso normalmente são usados para rastrear a presença ou ausência de parasitas e para estimar a densidade do parasita.


Figura 13 - Mostrando a sequência do preparo do esfregaço de sangue fino (coluna à esquerda) e do esfregaço de sangue espesso (coluna à direita)


Uma abordagem padrão para estimar a densidade de parasitas em um esfregaço espesso de sangue envolve a contagem de formas assexuadas do parasita e glóbulos brancos em cada campo de microscopia, até que 200 glóbulos brancos tenham sido contados. Se menos de 10 parasitas assexuados são contados por 200 glóbulos brancos, a contagem deve continuar para um total de 500 glóbulos brancos. Subsequentemente, faz-se a contagem de glóbulos brancos de forma automatizada nos aparelhos convencionais utilizados para realização de hemograma e, esse valor é dividido pelo número de glóbulos brancos contados manualmente (200 ou 500). O resultado obtido é multiplicado pelo número de parasitas contados na lâmina, dando a densidade do parasita (parasitas/mL). Por exemplo, uma contagem de glóbulos brancos de 8000/mL dividida por 200 glóbulos brancos contados, multiplicados por 500 parasitas contados, dá uma densidade parasitária de 20.000 parasitas/mL.

Uma expressão alternativa de parasitemia é a porcentagem de eritrócitos que são parasitados. Tomando o exemplo acima, a porcentagem de parasitemia (eritrócitos parasitados) representa a divisão da densidade parasitária (20.000 parasitas/mL) por 4.000.000 (o número médio de eritrócitos por mL no sangue humano), ou seja de 0,5%. Como outro exemplo, uma contagem de glóbulos brancos de 5000/mL dividida por 500 glóbulos brancos contados, multiplicados por 5 parasitas contados, dá uma densidade parasitária de 50 parasitas/mL. A porcentagem de parasitemia é de 50 dividido por 4.000.000, ou 0,001%. A definição de malária grave inclui parasitemia ≥5%.

A microscopia em preparação de esfregaço fino permite identificar as quatro espécies de Plasmodium: P. vivax e P. ovale infectam apenas eritrócitos jovens, portanto a densidade de parasitas para essas espécies é tipicamente menor; P. falciparum e P. malariae infectam eritrócitos maduros e podem, portanto, cursar com densidade parasitária mais alta. Uma parasitemia de ≥5% é muito improvável em qualquer espécie exceto P. falciparum.





Figura 14 – Diferentes formas parasitárias de Plasmodium


Quadro 3 - Características das espécies do Plasmodium

Espécie do Plasmodium
Parasitemia
Formas evolutivas encontradas
Morfologia
Característica
Falciparum
Elevada, sendo >10% dos eritrócitos parasitados com infecções múltiplas, mas com eritrócitos de tamanho normal
Trofozoíto é visto em sangue periférico, geralmente as formas em anel
Gametócitos em crescente são vistos alguns dias após infecção aguda (10-12 dias)
Granulações de Maurer nas hemácias infectadas
Vivax
Moderada <2% com eritrócitos muito aumentados de tamanho com infecções múltiplas
Todas as formas evolutivas são encontradas no sangue: Trofozoítas (são mais largos), esquizontes, merozoítos e gametócitos
Gamatócitos aparecem precocemente e ficam por curto período no  sangue periférico
Apresentam granulações de Schuffner
Malariae
Leve com eritrócitos de tamanho normal, raro ter mais de um parasita por célula
Todas as formas evolutivas são encontradas no sangue: Trofozoítas, esquizontes, merozoítos e gametócitos.
Gametócitos pouco numerosos semelhantes ao do P. vivax, mas um pouco menores.
Sem grânulos
Ovale
Baixa parasitemia com eritrócitos de tamanho aumentado
Menos formas evolutivas são encontradas no sangue que do P.vivax
Gametócitos pouco numerosos semelhantes ao do P. vivax, mas um pouco menores.
Apresentam granulações de Schuffner


































Plasmodium falciparum está associado a altas contagens do parasita podendo chegar de 10 a 40% dos eritrócitos parasitados. Por outro lado, os pacientes podem estar graves e não haver detecção de parasitas no sangue inicialmente. Esse fato pode ser devido ao sequestro de eritrócitos infectados nos tecidos. Ao se detectar o Plasmodium falciparum, há a necessidade de estimar a porcentagem de eritrócitos infectados para ser utilizada na  monitoração do tratamento.

Interpretação de esfregaços de sangue

O parasita da malária pode ser visualizado em esfregaços de sangue periférico corados com May-Grunwald-Giemsa, Leishmann e Giemsa, com pH elevado que facilita a detecção e a identificação dos mesmos. São mais bem visualizados com ampliação de 100x, usando a lente objetiva de imersão em óleo. O esfregaço deve ser examinado no mínimo durante cinco minutos antes de ser considerado negativo. Quando se dispõe apenas do esfregaço, a avaliação deve incluir exame de pelo menos 200 a 500 campos ou exame por 20 a 30 minutos, antes de ser considerado negativo. Quando há presença de imunodeficiência mesmo que parcial nos indivíduos com suspeita de malária, estes podem ter contagem baixa de parasitas, o que pode exigir mais atenção na avaliação do esfregaço.

Se houver suspeita de malária e o esfregaço inicial for negativo, esfregaços adicionais devem ser preparados e examinados nas 48 a 72 horas subsequentes. Recomenda-se a repetição de um esfregaço espesso e fino a cada 12 a 24 horas, por um total de três séries antes de excluir a malária.

A terapia antimalárica pode alterar a aparência morfológica dos parasitas e afetar sua identificação em esfregaços de sangue, seja no momento do diagnóstico inicial (se o tratamento presuntivo for administrado) ou durante o acompanhamento.

O esfregaço também permite o diagnóstico de anormalidades hematológicas e o estabelecimento de diagnósticos diferenciais de outras doenças infecciosas, como filariose, tripanossomíase e babesiose. 

CASO CLÍNICO 6

Paciente GWS 37 anos, masculino, Caminhoneiro, natural e procedente de Campos Novo, São Paulo, com história de febre, calafrios, mialgia e astenia há 14 dias. Nega alergia e outras comorbidades. Relata viagem ao Amapá e Pará e contato com florestas. Ao exame físico aprestava dispneia, taquicardia, febre, icterícia, desconforto abdominal e discreta esplenomegalia. Foram solicitados hemograma, teste rápido para Malária, pesquisa em gota espessa e exames bioquímicos. 


Parâmetros
 
 
Valores de referência
RBC (milhões/mm3)
3,62
                                                 
4.3 – 5.0
Hemoglobina (g/dL)
9,6

12,0 – 14.0
Hematócrito (%)
28

40 -46
VCM (fL)
77,3

82 - 98
HCM (pg)
26,5

27-32
CHCM (g/dL)
34,2

32 -36
RDW (%)
15,2

12-14
Observação: Policromasia discreta, alguns esferócitos e Inclusões eritrocitárias (trofozoítos e gametócitos)
WBC (mm3)
3200
 
4.000 – 11.000

Segmentados

46,1 %
2235,8 /mm3
2000-7000

Linfócitos

41,6 %
2017,6 / mm3
1000-3000

Monócitos

10,9 %
528,6 / mm3
200-1000

Eosinófilos

0 %
0 /mm3
20-500

Basófilos

1,4 %
61,9 /mm3
20-100
Plaquetas (mm3)
101.000

150 – 400

Bilirrubinas totais (mg/dL)

3,68


 

Bilirrubina direta (mg/dL)

2,88

 

 

Bilirrubina indireta (mg/dL)

0,80

 

 

Albumina (g/dL)

2,50

 

 


O teste rápido foi reagente para Plamodium vivax e o paciente evoluiu com piora do estado geral, anemia e trombocitopenia progressiva, sendo internado na Unidade de terapia intensiva. Após alguns dias de terapia com cloroquina, o paciente mostrou melhora, foi direcionado para enfermaria, recebendo alta após negativação da parasitemia.


Figura 15 – Trofozóitos intraeritrocitários formando “anéis maláricos”. Coloração de May-Grunwald Giemsa, x1000. Cedido pelo Grupo Fleury.


Figura 16 – Hematozoários intraeritrocitário no sangue periférico de um paciente com Plasmodium sp. Cellavision. Coloração de May-Grunwald Giemsa, x1000. Cedido pelo Grupo Fleury.


Diagnósticos diferenciais

A malária pode simular doenças infecciosas e parasitárias que cursam com febre e esplenomegalia. Os sintomas iniciais podem ser confundidos com quadro de viroses. Além disso, no período agudo pode ser confundida com leishmaniose, toxoplasmose aguda, febre tifoide, endocardite, doença de Chagas aguda, tuberculose miliar e brucelose. No estágio que aparece a icterícia, pode-se confundir com hepatites graves, leptospirose ictero-hemorrágica, febre amarela, sepses e colangites. Alguns desses diagnósticos diferenciais são descritos a seguir:

Dengue - A dengue pode causar mal-estar, dor de cabeça, fadiga, desconforto abdominal e dores musculares associadas à febre. Mialgia devida à dengue é geralmente mais grave do que a mialgia devida à malária.

 Chikungunya - Chikungunya assemelha-se à dengue, mas apresenta manifestações articulares mais expressivas, frequentemente com sinais de artrite, que podem se tornar crônicas. O exantema é comum. 

Meningite - A dor de cabeça da malária pode ser grave, embora não haja rigidez de nuca ou fotofobia, como observado em meningite bacteriana ou viral. A malária não está associada a erupção cutânea (ao contrário da meningococcemia). Entretanto, a malária com acometimento cerebral por P. falciparum pode levar a rebaixamento de nível de consciência e convulsões, com quadro clínico muito semelhante ao de outras etiologias de meningoencefalite.

Sepse bacteriana - pode apresentar febre, taquicardia e estado mental alterado.

Febre tifoide - As manifestações clínicas da febre tifoide incluem febre, bradicardia, dor abdominal e erupção cutânea.

Leptospirose - A leptospirose está associada a febre, rigidez, mialgia e dor de cabeça. A mialgia devida à leptospirose é geralmente mais grave do que na malária. A leptospirose também pode estar associada a hemorragias petequiais na pele ou nas membranas mucosas.

Febre hemorrágica viral - As febres hemorrágicas virais, tais como a febre amarela, estão associadas a febre, mal-estar e sintomas sistêmicos. Podem estar associadas a hemorragias petequiais na pele ou nas membranas mucosas; isto ocorre apenas raramente em malária grave.

Exames bioquímicos: 

Bilirrubinemia: pode haver uma icterícia discreta nas formas benignas da infecção por P. vivax e P. falciparum com predomínio da fração não conjugada da bilirrubina devido à hemólise. Entretanto, nas formas mais graves, a elevação de bilirrubina acontece com a fração conjugada devido comprometimento hepático.

Aminotransferases: o aumento de enzimas hepáticas, tanto TGO quanto TGP, ocorre nas formas graves do P. falciparum. Podem ocorrer elevações discretas nos quadros causados por P. vivax, decorrentes da ruptura de hepatócitos na fase pré-eritrocitária do ciclo do parasita. 

Coagulação: as manifestações hemorrágicas podem complicar um pequeno número de pacientes com malária. Além da plaquetopenia, pode haver prolongamento do tempo de protrombina (INR) e queda de outros fatores de coagulação como consequência da diminuição da produção por disfunção hepática e devido à CIVD.

Ureia e creatinina: pode haver aumentos discretos na fase inicial da doença principalmente devido à desidratação causada pela sudorese intensa e vômitos. Em alguns tipos de malária pode ocorrer necrose tubular renal com necessidade em alguns casos de terapia de hemodiálise até que haja recuperação e melhora de função renal.

Outros exames

Testes diagnósticos rápidos: são testes de detecção de antígenos parasitários da malária que tem alta precisão e facilidade de uso. Eles não necessitam de eletricidade ou infraestrutura de laboratório, dão resultados dentro de 15 a 20 minutos. Fornecem um resultado qualitativo.

Podem detectar um ou mais dos seguintes antígenos: proteína rica em histidina 2 (HRP2), lactato desidrogenase plasmática (LDH) e aldolase. Dependendo do(s) antígeno(s) alvo, um teste pode identificar apenas o gênero Plasmodium ou pode distinguir infecções por P. falciparum e / ou P. vivax. 

Testes moleculares: testes como PCR são normalmente usados como padrão-ouro em estudos de eficácia de drogas antimaláricas, vacinas e avaliação de outros agentes no diagnóstico. São recomendados, ainda, para rastreamento de malária por reativação em pacientes transplantados procedentes de áreas endêmicas.

Babesiose

Aspectos clínicos:

A babesiose é uma doença infecciosa causada por protozoários do gênero Babesia. A doença foi nomeada desta forma após Victor Babes, um patologista e microbiologista húngaro, ter identificado microrganismos intraeritrocitários como a causa da hemoglobinúria febril em bovinos em 1888. É transmitido principalmente por vetores como carrapatos Ixodes infectados.

A maioria dos casos de babesiose humana é relatada nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, embora a babesiose canina e de outros mamíferos seja um problema relativamente comum, raramente são diagnosticados casos humanos.

Como as ninfas de carrapatos se alimentam de sangue, milhares de esporozoítas são inoculados no hospedeiro vertebrado durante a picada do carrapato. Esporozoítas se aderem aos eritrócitos e, uma vez dentro dos eritrócitos, amadurecem em trofozoítas, que eventualmente formam quatro merozoítas. Os protozoários (merozoítas) da Babesia infectam mamíferos e causam lise dos glóbulos vermelhos do hospedeiro, provocando anemia hemolítica febril.

A transmissão ocorre ocasionalmente através de transfusão de sangue e, raramente, pelo transplante de órgãos ou congenitamente. Há diferentes espécies de babesia: Babesia microti, Babesia divergens, Babesia venatorum, B. duncani B. crassa.

São patógenos intracelulares que se replicam exclusivamente no citosol dos eritrócitos. Eles são considerados piroplasmas, pequenos parasitas protozoários em forma de pêra que pertencem ao filo Apicomplexa, que inclui os outros patógenos humanos, tais como Plasmodium, Toxoplasma e Cryptosporidium. 

Infecções por Babesia variam desde assintomáticas a graves, sendo, às vezes, fatais. A transmissão por carrapatos a indivíduos saudáveis, geralmente, resulta em infecção assintomática ou em uma doença leve com sintomas gerais semelhantes a virose. A gravidade da infecção depende das espécies de Babesia e do estado imunológico do hospedeiro. Em ambos os casos, pode ser estabelecido um estado de portador que pode persistir por até dois anos, em alguns indivíduos.

A patogênese da babesiose está intimamente ligada com a resposta do hospedeiro à infecção e as modificações induzidas por componentes da membrana do eritrócito. Em casos brandos de babesiose, citocinas inflamatórias (por exemplo, fator de necrose tumoral a [TNF-a] e interleucina-6) e moléculas de adesão estão regulados, porém a síntese excessiva de citocinas pode causar doença pulmonar grave e complicações associadas à inflamação.

Os pacientes apresentam sintomas geralmente inespecíficos como: febre, fadiga, calafrios, sudorese, mialgia, anorexia, cefaleia, náusea, vômito, fotofobia e tosse seca. Os achados laboratoriais são consistentes com uma anemia hemolítica leve a moderada e incluem hematócrito baixo, baixo nível de hemoglobina, baixo nível de haptoglobina, contagem elevada de reticulócitos e aumento de DHL. A trombocitopenia é comumente observada. Pode haver também elevação de aminotransferases. Hematúria e icterícia também podem ser observadas dependendo do grau de hemólise. Anemia hemolítica autoimune a quente tem sido descrita como uma complicação tardia da babesiose em indivíduos asplênicos duas a quatro semanas após a resolução dos sintomas e da parasitemia.

No exame físico, a febre é a característica saliente. Esplenomegalia e/ou hepatomegalia podem ser observadas. Achados físicos incomuns incluem icterícia (esclerótica ou sistêmica), eritema faríngeo leve e retinopatia hemorrágica, com ou sem infartos da retina. A linfadenopatia está ausente. A erupção cutânea raramente está associada à babesiose. Se uma erupção eritematosa for observada, deve-se suspeitar de doença de Lyme concomitante.

Indivíduos imunocomprometidos ou asplênicos, muito jovens e aqueles com mais de 50 anos estão em risco de manifestações clínicas graves, incluindo: síndrome do desconforto respiratório do adulto, edema pulmonar, CIVD, insuficiência cardíaca congestiva, insuficiência renal, coma, ruptura esplênica ou doença recidivante prolongada. Taxas de mortalidade de 10% são relatadas para indivíduos hospitalizados, apesar do tratamento.

Risco de transmissão por transfusão:

Em regiões de alta prevalência desse parasita, os estoques de sangue nos hemocentros podem estar em risco devido à presença de portadores assintomáticos da babesiose, que doam sangue sem saber que estão infectados. O parasita sobrevive aos procedimentos e armazenamento padrão do banco de sangue, é facilmente transmitido com eritrócitos infectados, e atualmente não há um método aprovado para detectar os parasitas no sangue doado. A babesiose transmitida pela transfusão, normalmente, resulta em doença mais grave do que a infecção transmitida por carrapatos, pois o número de parasitas introduzidos por transfusão é maior do que o transmitido pelo carrapato e porque os receptores de transfusão têm mais probabilidade de serem membros de uma população de alto risco. Taxas de mortalidade de 30% são relatadas para babesiose transmitida por transfusão. 

Alterações hematológicas

Manifestações hematológicas da doença são comuns. Podem variar de anemia leve a pancitopenia grave, ruptura esplênica, CIVD ou até mesmo linfo-histiocitose hemofagocítica (LHH). A anemia (definida como hemoglobina ≤10g/dL) é uma anormalidade hematológica bem documentada na babesiose. Sua presença está associada a mais complicações. A anemia acontece após a saída do parasita dos eritrócitos causando sua lise. A hemólise, isoladamente, não explica a gravidade da anemia, uma vez que, geralmente, é mais pronunciada do que o nível de parasitemia. Parece que as hemácias parasitadas com Babesia gibsoni tem uma produção significativamente maior de superóxido, que leva à maior peroxidação lipídica nas células infectadas e, assim, resulta em dano oxidativo em eritrócitos do hospedeiro. Além disso, a contagem de reticulócitos é geralmente alta para compensar a hemólise.

A trombocitopenia é uma das características hematológicas principais. Geralmente é causada por hiperesplenismo, o que resulta em aumento do sequestro de plaquetas e destruição por macrófagos esplênicos. Na babesiose grave, a trombocitopenia pode ser secundária à CIVD. A destruição imunomediada das plaquetas também é relatada juntamente com anemia hemolítica autoimune. Isso nos leva a concluir que pode haver um elemento de desregulação imune precipitada pela Babesia.

O envolvimento de glóbulos brancos também pode acontecer. Linfopenia é um achado comum entre pacientes com babesiose. A neutropenia, por outro lado, não é listada como um achado hematológico comum nessa doença, porém já foi descrita sendo definida como um número absoluto ≤1800 neutrófilos/mL. Os mecanismos envolvendo os leucócitos ainda estão por ser esclarecidos, se resultam de dano direto ao precursor hematopoético, aumento da aderência de neutrófilos, sequestro esplênico ou uma combinação de todos. De fato, alta contagem de leucócitos, isto é, >5 × 109/L é um forte preditor de babesiose grave.

Diagnóstico 

O diagnóstico de babesiose pode ser estabelecido pela identificação de organismos de Babesia em esfregaços de sangue fino (coloração de Wright ou Giemsa, sob imersão em óleo). Os esfregaços de sangue espessos podem ser difíceis de interpretar e devem ser realizados apenas por um microscopista experiente.

O diagnóstico microscópico de babesiose requer tempo e experiência. Pelo menos 200 a 300 campos microscópicos devem ser revisados antes de concluir que não há parasitemia. No cenário de parasitemia muito baixa (particularmente, no início dos sintomas), o diagnóstico de babesiose pode exigir o exame de vários esfregaços durante vários dias. Leitores de células automatizados não devem ser usados para detectar Babesia spp em glóbulos vermelhos, pois eles não detectam de forma confiável os merozoítas.

Além disso, o esfregaço de sangue pode não mostrar os parasitas quando o grau de infecção de hemácias é mínimo, ou seja, <0,01%. A microscopia óptica possui excelente sensibilidade para a detecção de Babesia, e deve ser realizada somente por um microscopista experiente, especialmente quando esfregaços de sangue denso são feitos, pois os organismos podem aparecer como pontos simples de cromatina que poderiam ser confundidos com precipitados ou corpos de inclusão de ferro.

Os trofozoítos B. microti são redondos, ovais ou em forma de pera e têm citoplasma azul com pontos vermelhos de cromatina. Múltiplas infecções por célula podem ser observadas. Formas anelares são mais comuns e podem assemelhar-se aos anéis de Plasmodium falciparum. Embora haja essa semelhança, a malária pode ser descartada a partir da consideração da história clínica e da avaliação cuidadosa do esfregaço de sangue. Há algumas características distintivas que podem sugerir um organismo sobre o outro em microscopia óptica. A babesiose pode ser distinguida da malária pela presença de merozoítos dispostos em tétrades (conhecida como "cruz de malta"; este achado é incomum, mas patognomônico da babesiose), presença de formas extracelulares, ausência de depósito de hemozoína (aparece como pigmento acastanhado) e ausência de gametócitos.

Os trofozoitos de B. duncani são indistinguíveis dos de B. microti, porém a forma de cruz de malta dos merozoítas do B. duncani é observada mais comumente que dos B. microti. Nos B. divergens e B. venatorumsão redondos ou em forma de pera. Eles são tipicamente organizados em pares, mas podem aparecer como tétrades em eritrócitos humanos.

O diagnóstico de babesiose, via microscopia, deve induzir a estimativa da densidade do parasita. Isso pode ser feito examinando-se uma monocamada de glóbulos vermelhos (hemácias), usando a objetiva de imersão em óleo, a 100x. O nível de parasitemia é geralmente entre 0,1 e 10%, mas pode ser tão alto quanto 80%. Como o nível de parasitemia é muitas vezes inferior a 1% no início do curso da doença, pelo menos 300 campos microscópicos devem ser avaliados. A babesiose leve a moderada está associada à parasitemia <4%. Babesiose grave está associada à parasitemia ≥4%. No hospedeiro imunocompetente, a parasitemia pode ser difícil de detectar em um esfregaço de sangue periférico, dado que raramente excede 5%, em comparação com o paciente asplênico, em que a parasitemia pode chegar a 85%.

Diagnosticos diferenciais

O diagnóstico diferencial de babesiose inclui:

Malária - As manifestações clínicas espelham as da babesiose e incluem fadiga, cefaleia, artralgia, mialgia e náusea. A babesiose pode ser distinguida da malária no esfregaço de sangue fino pela presença de merozoítos organizados em tétrades (conhecida como "Cruz de Malta"), ausência de depósito de hemozoína (aparece como pigmento acastanhado) em forma de anel e ausência de gametócitos.

Outras infecções transmitidas por carrapatos Ixodes - Agentes etiológicos incluem Anaplasma phagocytophilum, Borrelia burgdorferi, Borrelia mayonii, Borrelia miyamotoi; tanto quanto a babesiose, essas infecções não são comuns no Brasil. As manifestações clínicas dessas doenças são frequentemente semelhantes e incluem febre, mal-estar, cefaleia, mialgia e artralgia. Características distintas que não são encontradas na babesiose incluem eritema migratório (B. burgdorferi), febre recidivante (B. miyamotoi). As características laboratoriais compartilhadas por várias dessas infecções incluem trombocitopenia e transaminases elevadas.

Rickettsioses - Paciente com infecção por Rickettsia tipicamente apresenta febre, dor de cabeça, trombocitopenia, leucopenia e elevação das transaminases. A erupção petequial pode se desenvolver após vários dias de doença. No Brasil, a rickettsiose mais comum é a febre maculosa, causada pela Rickettsia rickettsii, também transmitida por picadas de carrapatos e muito mais comum que a babesiose.

Leptospirose - A leptospirose é uma infecção bacteriana caracterizada por febre, mialgia e dor de cabeça, podendo ocorrer icterícia e fenômenos hemorrágicos nas formas mais graves. Elevação modesta das transaminases hepáticas pode ser observada, enquanto as formas graves exibem intensa trombocitopenia, colestase, elevação de CPK e insuficiência renal com elevação de creatinina e hipocalemia.

Hepatite viral - Essas entidades são caracterizadas por transaminases elevadas.

Bacteremia - A meningococcemia, infecção pneumocócica e estafilocócica podem estar associadas à anemia grave, trombocitopenia, anormalidades hepáticas, coagulação intravascular disseminada e síndrome do desconforto respiratório agudo.

Causas não infecciosas de anemia hemolítica: As manifestações clínicas incluem palidez, icterícia e esplenomegalia.

- Em mulheres grávidas, a babesiose pode ser confundida com a síndrome HELLP (hemólise, enzimas hepáticas elevadas e baixa contagem de plaquetas).

Exames bioquímicos

As enzimas hepáticas estão, às vezes, elevadas, incluindo alanina aminotransferase, aspartato aminotransferase e fosfatase alcalina. A bilirrubina total e a fração indireta podem estar elevadas. Níveis de ureia e creatinina sérica podem estar elevados.

Uma alteração extremamente rara, mas que pode ser uma complicação fatal da babesiose é a Linfohistiocitose Hemofagocítica (LHH). A LHH é provavelmente uma doença sub-diagnosticada que pode resultar em falência de múltiplos órgãos e morte. É uma condição caracterizada por inflamação excessiva, aumento do nível de citocinas, ativação imune anormal e destruição tecidual. Isto resulta da falta de regulação negativa normal de macrófagos ativados e linfócitos. A desregulação é devida à incapacidade das células natural killer e dos linfócitos citotóxicos eliminarem os macrófagos ativados. Essa desregulação, juntamente com a secreção excessiva de citocinas, causa danos aos tecidos. LHH é classificada em formas primária e secundária. A forma primária manifesta-se tipicamente em adultos jovens com anomalias genéticas da função citotóxica das células natural killer e das células T. A forma secundária da doença ocorre em pessoas mais velhas que geralmente têm uma condição subjacente, como infecção, malignidade ou um distúrbio autoimune, sem qualquer defeito genético identificável. As doenças infecciosas associadas ao LHH incluem o vírus Epstein-barr, citomegalovírus, herpes vírus humano-8, vírus herpes simplex, vírus varicela-zoster, vírus influenza A H1N1, vírus do sarampo, parechovírus, parvovírus e o HIV. Também foi relatado que a leishmaniose precipita LHH, embora mais frequentemente na população pediátrica.

Outros exames

As ferramentas preferidas para o diagnóstico de babesiose incluem o esfregaço de sangue para identificação de parasitas e reação em cadeia da polimerase (PCR) para detecção de DNA de Babesia. A sorologia pode ser um complemento útil para esfregaço de sangue e PCR.

PCR é especialmente útil no contexto de parasitemia de baixo nível (por exemplo, em portadores assintomáticos, no início dos sintomas ou durante a convalescença). Também permite a identificação de espécies e a quantificação de parasitas. O limite de detecção da PCR é geralmente de 50 parasitas por mL, enquanto o da microscopia óptica é de aproximadamente 0,001% de parasitemia, que é de cerca de 5000 eritrócitos infectados por mL. Como a babesiose tipicamente apresenta parasitemia >0,1%, o ensaio é extremamente sensível para a detecção na maioria das amostras clínicas.

A sorologia pode ser usada para confirmação diagnóstica de babesiose e identificação de espécies. Quase todos os pacientes infectados terão anticorpos detectáveis em uma amostra de soro de fase aguda. Porém, a sorologia deve ser interpretada com cautela porque o início dos sintomas, às vezes, precede o aumento do título de anticorpos e porque o anticorpo pode persistir além da resolução da infecção, dificultando a distinção entre infecção atual e passada. Entretanto, pode não ser o caso em pacientes imunocomprometidos. Os ensaios de imunofluorescência são usados para detectar títulos específicos para B. microti. Títulos de 1:32 a 1:160 foram relatados como diagnósticos e específicos, com 88-96% de sensibilidade, 90-100% de especificidade.

Os achados radiográficos que incluem edema pulmonar na radiografia de tórax e infarto esplênico e / ou ruptura esplênica na tomografia computadorizada de abdome estão associados à babesiose grave

Tripanossoma

Há duas espécies patogênicas do Tripanossoma: o T. brucei e T. cruzi. O tripanossoma envolvido na Doença de Chagas é o T. cruzi. Já a tripanossomíase humana africana, também conhecida como doença do sono, é causada por parasita Trypanosoma brucei.

Doença de Chagas

A doença de Chagas é causada pela infecção pelo protozoário Trypanosoma cruzi. As principais formas de apresentação são a cardiomiopatia chagásica e a doença gastrointestinal. O período de incubação após a transmissão por vetores é de uma a duas semanas, e após esse tempo tem-se a denominada fase aguda da doença de Chagas. Quando a via de aquisição é oral, dependendo da quantidade de parasitas ingerida, esse período pode ser de apenas 3 dias. Em casos associados a transfusão e transplante, o período de incubação pode durar até quatro meses. Há duas fases para a doença: a aguda e a crônica. Quando a resposta imune do hospedeiro consegue diminuir a replicação do parasita, a parasitemia cai abaixo dos níveis detectáveis pela microscopia, os sintomas agudos desaparecem e o paciente passa para a fase crônica.

Na ausência de terapia antitripanossômica, isso geralmente ocorre de 8 a 12 semanas após o início da infecção, e em seguida vem a fase crônica que pode durar a vida inteira do paciente.  Em etapas posteriores, a destruição dos gânglios nervosos autonômicos pode ser importante. Mecanismos imunológicos, tanto mediados por células como humorais, envolvendo reação ao organismo e a tecidos autólogos têm sido implicados na patogênese.

A infecção pelo T. cruzi é raramente detectada durante a fase aguda, exceto no contexto de programas específicos de rastreamento (por exemplo, triagem congênita da doença de Chagas em maternidades) ou surtos (por exemplo, grupos de infecção transmitida oralmente).

Indivíduos portadores de infecção crônica por T. cruzi são capazes de transmitir o parasita ao inseto vetor e a outros seres humanos, via hemocomponentes, doação de órgãos ou via transplacentária, independentemente das manifestações clínicas.

Manifestações clínicas

A maioria dos pacientes com infecção aguda por T. cruzi apresenta sintomas inespecíficos (como mal-estar, febre e anorexia) ou são assintomáticos, portanto, não são atendidos clinicamente. O estágio agudo aparece entre 7-14 dias após a infecção. É caracterizado por inquietação, insônia, mal-estar, aumento da exaustão, calafrios, febre e dores ósseas e musculares. Outras manifestações da fase aguda são adenite cervical, axilar e ilíaca, hepatomegalia, erupção eritematosa e miocardite aguda. Há uma reação edematosa geral associada à linfadenopatia. A miocardite difusa, por vezes acompanhada de pericardite grave e endocardite, é muito frequente durante a fase inicial da doença. Em crianças, a doença de Chagas pode causar meningoencefalite e coma. A morte ocorre em 5-10% dos bebês. O exame hematológico revela linfocitose e parasitemia.

Em uma minoria de pacientes, a infecção aguda pode estar associada à inflamação e inchaço no local da inoculação (chagoma de inoculação). Quando o local da inoculação é a conjuntiva, o paciente pode desenvolver inchaço indolor característico das pálpebras, conhecido como sinal de Romaña. A doença aguda grave ocorre em menos de 1% dos pacientes; manifestações podem incluir miocardite aguda, derrame pericárdico e / ou meningoencefalite.

O estágio agudo geralmente não é reconhecido e se resolve com pouco ou nenhum dano imediato e o hospedeiro infectado permanece um portador assintomático. Uma proporção desconhecida (estimada em 10-20%) das vítimas desenvolve doença crônica. Eles alternam entre períodos de remissão assintomáticos e recidivas caracterizadas por sintomas observados na fase aguda. Arritmia cardíaca é comum. A doença crônica resulta em função anormal dos órgãos ocos, particularmente coração, esôfago e cólon.

Diagnóstico

Os tripanossomas podem ser visualizados em esfregaços de sangue, aspirados de linfonodos e no líquido cefalorraquidiano (LCR). Estes espécimes podem também ser cultivados em meio de cultura. As culturas podem ser positivas em alguns pacientes com esfregaços negativos. Às vezes, tripanossomos vivos, móveis, podem ser vistos com iluminação de campo escuro em preparações de camada leucoplaquetária ou sangue.

Na fase aguda, o nível de parasitemia é alto. Tripomastigotas móveis podem ser detectados por microscopia de preparações frescas de sangue anticoagulado ou camada de leucócitos (buffy coat) como parasitas extracelulares. Eles têm corpo delgado e movem-se por meio de um flagelo. O nível de parasitemia diminui dentro de 90 dias após a infecção, mesmo sem tratamento, e é indetectável por microscopia na fase crônica. Quando há poucos parasitas, são mais facilmente detectados pelo exame de sedimento de 10 a 20mL de sangue hemolisado. O T cruzi difere morfologicamente dos parasitas africanos. Ele é raramente detectado no exame direto do sangue, sendo necessários procedimentos de concentração. O exame a fresco com um concentrado de leucócitos pode ser útil na procura desse parasita.

Os esfregaços para diagnóstico podem ser finos ou espessos corados com Giemsa ou em preparações de esfregaço fino direto. A sensibilidade do esfregaço de sangue varia com o estágio da doença e as espécies infectantes. É mais provável que os esfregaços sejam positivos nos estágios iniciais da infecção, quando há altos números de tripanossomos circulantes. Os parasitas da sub-espécie rhodesiense estão associados a níveis mais elevados de parasitemia. Os esfregaços repetidos devem ser realizados em dias consecutivos se o teste inicial for negativo, uma vez que os níveis de parasitemia flutuam. T. b. gambienseé menos frequentemente diagnosticado no esfregaço de sangue, uma vez que os números circulantes estão frequentemente abaixo dos limites de detecção.

Técnicas de concentração sanguínea, como a centrifugação do hematócrito, aumentam a sensibilidade da microscopia a 50 parasitos/mL, mas exigem perícia técnica. Uma técnica quantitativa de buffy coat (que usa centrifugação e uma coloração fluorescente para identificar tripanossomas móveis) também pode ser empregada. A lise de células vermelhas combinada com a coloração de laranja de acridina aumenta a sensibilidade. A microscopia combinada com a separação da camada leucoplaquetária pode detectar parasitemia de 10 parasitas/mL, mas não está amplamente disponível em áreas endêmicas.

O diagnóstico da infecção crônica é basicamente sorológico, uma vez que a parasitemia nessa fase é baixa e intermitente, o que torna os exames parasitológicos diretos pouco sensíveis. As metodologias usualmente utilizadas são os ensaios imunoenzimáticos, a imunofluorescência indireta e a hemoaglutinação. Para que uma amostra seja considerada positiva, é necessário que pelo menos duas dessas técnicas sejam reagentes. Amostras analisadas por duas técnicas com resultados discordantes devem ser consideradas inconclusivas, e os testes devem ser repetidos em nova amostra colhida em 2 a 4 semanas.                             Alterações hematológicas

Pode haver presença de anemia microcítica ou normocítica com linfocitose na fase aguda da doença, porém não há alteração hematológica específica.

Outros exames

A reação em cadeia da polimerase (PCR) é uma ferramenta diagnóstica sensível na fase aguda da doença de Chagas. Também pode ser usada para monitorar a infecção aguda por T. cruzino receptor de órgão infectado, ou a reativação em receptores com doença de Chagas crônica após o início da imunossupressão, ou ainda, após exposição acidental. Os ensaios de PCR geralmente demonstram resultados positivos dias a semanas antes que os tripomastigotas circulantes sejam detectáveis em esfregaços de sangue periférico.

Diagnósticos diferenciais

Celulite pré-septal - A celulite pré-septal apresenta-se tipicamente com dor ocular, edema palpebral e eritema. O sinal da Romaña pode ser semelhante à celulite pré-septal, mas geralmente não é doloroso ou sensível. O diagnóstico é baseado na história clínica e no exame físico.

Mononucleose infecciosa - A mononucleose infecciosa pode apresentar sintomas inespecíficos, incluindo mal-estar, febre e anorexia. Pode ser distinguida da doença de Chagas aguda por testes laboratoriais.

Infecção aguda pelo HIV - A infecção aguda pelo HIV pode apresentar febre, mialgia, dor de cabeça, dor de garganta e erupção cutânea. Na maioria dos casos, os pacientes com doença de Chagas aguda apresentam sintomas inespecíficos, como febre, ou são assintomáticos. A infecção aguda pelo HIV e a doença de Chagas aguda podem ser diferenciadas com base na exposição clínica e nos testes laboratoriais.

Tipo Africana

O Trypanosoma brucei rhodesiense causa a forma mais aguda da doença e uma forma mais crônica é causada pelo Trypanosoma brucei gambiense. Essas doenças ocorrem em países da África.

Vários achados laboratoriais inespecíficos podem estar associados à tripanossomia humana africana.

Alterações hematológicas

A anemia é comum (presente em mais da metade dos pacientes) e pode ser devida em parte à hemólise imunomediada e à depressão da medula óssea relacionada à citocina. Leucocitose e trombocitopenia podem estar presentes, possivelmente relacionadas ao sequestro esplênico e liberação maciça de citocinas. A hipergamaglobulinemia, em grande parte relacionada a níveis elevados de IgM policlonal, também é característica e pode dar origem a resultados falso-positivos em testes sorológicos para outras doenças. Hipoalbuminemia, hipocomplementemia, a taxa de sedimentação de eritrócitos e proteína C-reativa elevadas são frequentemente observados.

Leishmania

Aspectos Clínicos

Há mais de 20 espécies de Leishmania que são patogênicas para o homem. As principais são: L. infantum, agente causador da leishmaniose visceral na Europa e nas Américas, e L. donovani, espécie causadora dessa forma da doença na Índia e países vizinhos, onde recebe o nome de Kala-azar; são importantes, ainda, as espécies que são agentes etiológicos da leishmaniose mucocutânea: L. braziliensis, L. amazonensis e L. guyanensis, predominantes no Brasil, além de L. major, L. tropica e L. aethiopica, distribuídas pela Europa, oriente Médio e Norte da África.

Muitas infecções por leishmania são assintomáticas, refletindo a capacidade do sistema imunológico do hospedeiro de controlar o parasita. A proporção de infecção assintomática para doença clinicamente manifesta varia amplamente, de > 30:1 na Europa até 6:1 em crianças brasileiras. Isso pode refletir diferenças na virulência do parasita, predisposição genética humana, estado nutricional e outros fatores.

A leishamaniose mucocutânea deve ser considerada em pacientes com uma ou mais lesões cutâneas ulceradas crônicas e uma história de exposição em área onde a leishmaniose é endêmica. O diagnóstico definitivo requer demonstração do parasita em uma amostra clínica (geralmente pele) por histologia, cultura ou análise molecular via reação em cadeia da polimerase (PCR). Se nem todos os testes puderem ser realizados, a histologia e a PCR podem fornecer informações suficientes. O teste molecular é necessário para a determinação da espécie, visto que são morfologicamente indistinguíveis na histopatologia; em locais que esta técnica estiver disponível, é importante essa diferenciação, uma vez que essa informação, eventualmente, pode influenciar a escolha do tratamento.

Na leishmaniose visceral, os organismos de L. infantum ou L. donovani são rapidamente eliminados no local da infecção, portanto raramente há uma lesão local, embora pápulas diminutas tenham sido descritas em crianças. A partir do local da inoculação, são distribuídos por via linfo-hematogênica para o sistema retículo-endotelial e se multiplicam nas células fagocíticas mononucleares do baço, fígado, linfonodos, medula óssea, tecido linfoide intestinal e outros órgãos. Um a quatro meses após a infecção há ocorrência de febre, com aumento diário, de 38,8° a 40o C, acompanhada de calafrios e sudorese. O baço e o fígado aumentam progressivamente. Com a progressão da doença, a pele pode desenvolver áreas granulomatosas hiperpigmentadas, o que ocorre mais frequentemente nas áreas endêmicas da Índia (kala-azar significa doença negra). A doença crônica torna os pacientes suscetíveis a outras infecções. Doença não tratada resulta em morte.

Diagnóstico

Alterações hematológicas medular e periférica

As espécies de Leishmania que provocam doença visceral têm tropismo pela medula óssea, o que tem importante papel para o desenvolvimento das alterações hematológicas periféricas que são características dessa forma da doença, não observadas, contudo, nas formas tegumentares. Na medula, observa-se hipocelularidade da série granulocítica, com parada da maturação, o que leva à neutropenia periférica, que costuma ser a primeira citopenia detectada no curso da doença. Há comprometimento também da maturação das séries eritropoiética e megacariocítica, que colaboram, posteriormente, para a instalação de pancitopenia. Parasitos são frequentemente observados no interior de macrófagos medulares, e pode ser visualizada hiperplasia de plasmócitos, dispostos em “ninhos”.

Quando os pacientes procuram atendimento, geralmente já apresentam hemograma com anemia, neutropenia, eosinopenia e trombocitopenia. A anemia é normocítica e normocrômica, a menos que a deficiência de ferro também esteja presente. A etiologia da anemia é considerada multifatorial, podendo haver supressão da medula óssea, hemólise e hiperesplenismo. Uma contagem elevada de neutrófilos é incomum e, se presente, deve levar à busca de infecção bacteriana secundária. Enzimas hepáticas elevadas e bilirrubina também são observadas. A hipergamaglobulinemia resulta da ativação de células B policlonais. Anemia grave e icterícia franca estão associadas a prognóstico desfavorável.

Para estabelecer o diagnóstico da forma visceral, o método de eleição é a visualização do amastigota característico em esfregaços de medula óssea, ou de linfonodos. O aspirado de medula óssea mais recomendável, com sensibilidade entre 60% e 85%. O aspirado de linfonodo tem sensibilidade em torno de 50%; já o esfregaço de sangue periférico não deve ser utilizado como única ferramenta diagnóstica, dada sua sensibilidade muito baixa. O isolamento do parasita por cultura in vitro tem maior sensibilidade nesses materiais em relação às pesquisas diretas. É razoável buscar várias abordagens diagnósticas para maximizar a probabilidade de um resultado positivo, em conjunto com a experiência de um laboratório de referência.

Outros testes

Os aspirados e o sangue periférico também podem ser submetidos a técnicas moleculares (PCR), com alta sensibilidade e especificidade, porém pouco disponíveis em laboratórios de rotina. Os testes sorológicos podem auxiliar no diagnóstico para pacientes com suspeita de leishmaniose visceral que tenham resultados negativos ou inconclusivos para exames histopatológico, cultura e molecular. São utilizadas técnicas imunoenzimáticas e de imunofluorescência. Pode ocorrer reatividade cruzada em pacientes com doença de Chagas crônica. Como a maior parte das infecções por Leishmania é assintomática, indivíduos residentes em áreas endêmicas podem apresentar sorologias positivas sem, no entanto, apresentarem doença ativa. A melhor acurácia para doença ativa (acima de 90%) é obtida com a pesquisa de anticorpos contra o antígeno recombinante K39, em ensaios imunoenzimáticos e imunocromatográficos.

A utilidade de ferramentas diagnósticas menos invasivas (como a demonstração de anticorpos específicos ou DNA parasitário em amostras de sangue periférico) depende do estado clínico do paciente, da origem geográfica do parasita, dos métodos empregados e da experiência laboratorial. Em pacientes com infecção pelo HIV, a sensibilidade dos testes sorológicos é diminuída. Nesses casos, as cargas parasitárias são muito altas, aumentando a sensibilidade da cultura e dos testes moleculares no sangue periférico. Uma revisão de especialistas recomenda que não sejam realizados testes diagnósticos de rotina para infecção assintomática por Leishmania, inclusive naqueles que podem ser submetidos à terapia imunossupressora.

CASO CLÍNICO 7

Paciente ASM 13 anos, feminino, Estudante, natural e procedente de Santana do Ipanema, Alagoas, com história de febre, astenia e aumento do volume abdominal há 3 semanas. Ao exame físico apresentava febre, abdômen globoso com hepatomegalia a 4 cm RCD e esplenomegalia a 5 cm do RCE. Foram solicitados hemograma, exames bioquímicos, ultrassom do abdômen, teste rápido para Leishmaniose Visceral e aspirado de medula óssea. 


Parâmetros
 
 
Valores de referência
RBC (milhões/mm3)
3,11
                                                 
4.3 – 5.0
Hemoglobina (g/dL)
7,1

12,0 – 14.0
Hematócrito (%)
23,8

40 -46
VCM (fL)
76,5

82 - 98
HCM (pg)
29,8

27-32
CHCM (g/dL)
32,1

32 -36
RDW (%)
16,7

12-14
WBC (mm3)
3.600
 
4.000 – 11.000

Segmentados

3%
108/mm3
2.000-7.000

Linfócitos

31%
1.125/mm3
1.000-3.000

Monócitos

62%
2.250/mm3
200-1.000

Eosinófilos

2%
216/mm3
20-500

Basófilos

0 %
-
20-100
Plaquetas (mm3)
59.000

150 – 400.000

Albumina (g/dL)

2,38

 

3,5-5,5


O teste rápido foi reagente para Leishmaniose Visceral e o paciente evoluiu com piora do estado geral, anemia, leucopenia, trombocitopenia e esplenomegalia progressiva, sendo internado na Unidade de terapia intensiva. A USG do abdômen mostrou hepatomegalia com sinais de doença parenquimatosa difusa. Esplenomegalia volumosa, e ausência de líquido livre na cavidade abdominal. O aspirado de medula óssea apresentou formas amastigotas dentro de macrófagos e livres. Foi iniciada a terapia com Anfotericina B lipossomal, e gradativamente ocorreu melhora do quadro clínico com regressão da esplenomegalia e das citopenias periféricas.

Parasitoses intestinais

Aspectos clínicos

As parasitoses intestinais ou enteroparasitoses decorrentes da presença de protozoários e/ou helmintos no intestino podem ser responsáveis por alterações em exames de hemograma.

Dentre os helmintos, os mais frequentes são os nematelmintos: Ascaris lumbricoides e Trichuris trichiura e os ancilostomídeos: Necator americanus e Ancylostoma duodenale. Dentre os protozoários, destacam-se Entamoeba histolytica e Giardia intestinalis. A estrongiloidíase aparece em menor frequência, porém deve-se ressaltar sua importância clínica pelo risco que apresenta para pacientes imunodeprimidos, com a possibilidade de síndrome de superinfecção, doença disseminada e potencialmente fatal.

Os danos que os enteroparasitas podem causar a seus portadores incluem, entre outros agravos, a obstrução intestinal (Ascaris lumbricoides), desnutrição (Ascaris lumbricoides e Trichuris trichiura), anemia por deficiência de ferro (ancilostomídeos) e quadros de diarreia e de má absorção (Entamoeba histolytica e Giardia), sendo que as manifestações clínicas são usualmente proporcionais ao nível de infestação parasitária albergada pelo indivíduo.

Uma das ocorrências mais comuns em virtude das infecções parasitárias são as anemias que, atualmente, afetam metade dos escolares e adolescentes nos países subdesenvolvidos. É comum se observar a associação entre a presença de parasitas e o aparecimento de anemias carenciais, como a anemia ferropriva. Isto se explica pela capacidade espoliativa que os parasitas podem exercer em seus hospedeiros, geralmente crianças em estados nutricionais já comprometidos.

Alterações hematológicas

A anemia é identificada pelo hemograma e habitualmente é hipocromica microcítica, mas em casos extremos pode apresentar-se como anemia intensa.

Os parasitas mais associados à anemia ferropriva são os ancilostomídeos (Ancylostoma duodenale e Necator americanus), vermes que sugam e chegam a espoliar do hospedeiro até 0,05mL de sangue/dia. Trichuris trichiura e Strongyloides stercoralis, podem danificar a mucosa intestinal, causando erosões e ulcerações múltiplas, com perda crônica de sangue nas fezes; Entamoeba histolytica, quando na forma invasiva, leva a um quadro de disenteria e pode causar perfuração do intestino e hemorragia; Ascaris lumbricoides e Giardia lamblia exercem o caráter secundário em associação à anemia, causando diminuição da absorção de ferro e vitaminas.

No leucograma, pode ocorrer leucocitose com eosinofilia. Importante destacar que existem graus diferentes de eosinofilia, dependendo do agente etiológico e do nível de infestação. O eosinófilo é leucócito granulócito presente no sangue em pequena quantidade, aproximadamente 3%. É uma célula binucleada e seu citoplasma possui grânulos específicos que se coram pela eosina (acidófilos). A principal função do eosinófilo não é a fagocitose, mas sim a exocitose da PBM (proteína básica maior), que é tóxica para parasitas, causando a sua morte. Entretanto, nem todos os parasitas intestinais são capazes de induzir eosinofilia, esta é mais pronunciada quando há invasão tecidual e quando o parasita tem como parte do seu ciclo de vida a passagem pelo pulmão, como ocorre com o Ascaris lumbricoides, Ancylostoma duodenalee Strongyloides stercoralis.

Situações Especiais

Malaria: Vale a pena lembrar situações de que crianças com palidez ou Hb <8 g/dL deve ser considerada como hipótese de malária em áreas de zona endêmica.

Babesia: A gravidade da infecção depende do estado imunológico do paciente, sendo que indivíduos mais idosos, com hipo ou asplenia ou problema no sistema imunológico estão em risco de manifestações clínicas graves.

Toxoplasmose: Associada a infecções sintomáticas em imunossuprimidos bem como transmissão na gravidez.


Figura 17 – Formas amastigostas de Leishmaniose visceral, Calazar, em esfregaço de medula óssea. Coloração de May-Grunwald Giemsa, x1000. Cedido pelo Grupo Fleury.


Figura 18 – Formas amastigotas de Leishmaniose visceral dentro de um macrófago destruído em um esfregaço de medula óssea. Coloração de May-Grumwald Giemsa, x1000. Cedido pelo Grupo Fleury.


Leitura recomendada

Hemograma: Manual de Interpretação. Renato Failace e Flavo Fernandes 6º edição. Editora Artmed. 2015.

Riley LK, Rupert J. Evaluation of Patients with Leukocytosis. Am Fam Physician. 2015 Dec 1;92(11):1004-11. PMID: 26760415.

Pastorino Antonio C., Jacob Cristina M.A., Oselka Gabriel W., Carneiro-Sampaio Magda M.S. Leishmaniose visceral: aspectos clínicos e laboratoriais. J. Pediatr. (Rio J.) 2002; 78( 2 ): 120-127.

Antunes, RS, Morais AF. Correlação de alterações hematológicas em doenças parasitárias Correlation of hematological changes in parasitic diseases. RBAC. 2019;51(3):191-5

Hematologia Laboratorial: Teoria e Procedimentos. Paulo Henrique da Silva , Hemerson Bertassoni Alves , Samuel Ricardo Comar, Railson Henneberg, Júlio Cesar Merlin, Sérvio Túlio Stinghen.  1º edição. Editora Artmed. 2016.

Chauffaille Maria de Lourdes Lopes Ferrari. Eosinofilia reacional, leucemia eosinofílica crônica e síndrome hipereosinofílica idiopática. Rev. Bras. Hematol. Hemoter. 2010; 32( 5 ): 395-401.

Petroianu Andy, Oliveira Antônio E., Alberti Luiz R. "Hiperesplenismo" em hipertensão porta por esquistossomose mansônica. Rev. Bras. Hematol. Hemoter. 2004; 26( 3 ): 195-201.

Leite Luiz Arthur Calheiros, Domingues Ana Lucia Coutinho, Lopes Edmundo Pessoa, Ferreira Rita de Cassia dos Santos, Pimenta Filho Adenor de Almeida, Fonseca Caique Silveira Martins da et al . Relationship between splenomegaly and hematologic findings in patients with hepatosplenic schistosomiasis. Rev. Bras. Hematol. Hemoter. 2013; 35( 5 ): 332-336.