A contribuição do ecocardiograma no diagnóstico das cardiopatias na infância

Método tem utilidade na investigação de suspeita de alteração cardiovascular em criança.

Caso clínico
Gestante primigesta, sem antecedentes pessoais e familiares relevantes, iniciou acompanhamento pré-natal. Enquanto a ultrassonografia (USG) morfológica de primeiro trimestre foi normal, o exame realizado com 24 semanas de idade gestacional – no segundo trimestre – mostrou alterações suspeitas de cardiopatia congênita.

A avaliação ecocardiográfica fetal evidenciou situs solitus em levocardia, conexão atrioventricular concordante, câmaras cardíacas normais e conexão ventriculoarterial discordante, com a aorta emergindo do ventrículo direito e a artéria pulmonar, do esquerdo (figura 1). Diante do achado, a família recebeu orientação e a gestante, acompanhamento com ecocardiogramas seriados. O parto foi planejado a termo em centro com unidade de cuidado intensivo neonatal e equipes de Cardiologia e Cirurgia Cardíaca Pediátrica.

O recém-nascido nasceu com 38 semanas e cinco dias, peso de 3.100 g, índice de apgar de primeiro e quinto minutos 9/9 e saturação de oxigênio de 80%. Recebeu prostaglandina endovenosa, sem necessidade de intubação endotraqueal. O ecocardiograma infantil confirmou o diagnóstico de transposição das grandes artérias (figura 2). No sétimo dia de vida, o bebê passou por cirurgia de Jatene, tendo tido evolução favorável no pós-operatório e alta hospitalar com 30 dias de vida.

Discussão
A doença cardíaca na infância abrange um grupo variado de pacientes e inclui os defeitos cardíacos congênitos, caracterizados pela presença de malformação anatômica do coração e/ou dos grandes vasos, e as cardiopatias adquiridas, que ocorrem principalmente em decorrência de doenças sistêmicas associadas a processos inflamatórios, condições renais, uso de quimioterápicos cardiotóxicos, doença parenquimatosa pulmonar ou após transplante cardíaco.

A cardiopatia é o defeito congênito mais comum em todo o mundo. Com prevalência alta, de 9,4 a cada 1.000 nascidos vivos, e afetando, portanto, milhões de recém-nascidos, estima-se que esse número seja ainda maior na vida fetal. No Brasil, dados recentes do Ministério da Saúde mostram uma incidência de 1 em cada 100 nascidos vivos, sendo a terceira causa de mortalidade no período neonatal.

Em aproximadamente 20% dos casos, a cardiopatia congênita decorre de causas fetais, maternas e familiares. Nos 80% restantes, ainda permanece uma incerteza substancial em relação aos fatores de risco para o quadro.

Estima-se que 80% das crianças com cardiopatia congênita necessitem de intervenção cirúrgica, metade ainda no primeiro ano de vida. Os avanços nos procedimentos e nos cuidados médicos transformaram o prognóstico dos pacientes com defeitos graves, corroborando a importância do diagnóstico precoce durante a vida fetal.

De fato, um estudo francês que comparou a evolução perinatal entre bebês com transposição das grandes artérias com e sem diagnóstico pré-natal demonstrou, pela primeira vez, que a identificação do defeito antes do nascimento diminuiu significativamente a mortalidade pré e pós-operatória. Contudo, a maioria dos recém-nascidos cardiopatas ainda nasce sem diagnóstico em todas as partes do mundo.

Embora bastante acurada, a ecocardiografia fetal é tradicionalmente indicada para gestantes de alto risco. Acontece que muitos dos casos de cardiopatias congênitas ocorrem em grupos de baixo risco e, dessa maneira, não são detectados pelo rastreamento ultrassonográfico pré-natal.

A ecocardiografia configura o principal método diagnóstico não invasivo na avaliação inicial das cardiopatias congênitas ou adquiridas nas diferentes fases da vida, fornecendo informações detalhadas dos aspectos anatômicos, hemodinâmicos e fisiológicos, além de possibilitar o seguimento em longo prazo da função valvar, do crescimento das estruturas cardiovasculares e da função ventricular.


Figura 1: Ecocardiograma fetal demonstra os grandes vasos emergindo em paralelo, com discordância ventriculoarterial. Diagnóstico de transposição das grandes artérias. AO: aorta; TP: troncopulmonar.


Figura 2: Ecocardiograma imediatamente após o nascimento exibe, no plano paraesternal longitudinal, a confirmação do diagnóstico pré-natal de transposição das grandes artérias, com aorta emergindo do ventrículo direito e artéria pulmonar do ventrículo esquerdo. VD: ventrículo direito; VE: ventrículo esquerdo; AO: aorta; TP: troncopulmonar.


A importância da ecocardiografia na avaliação infantil

Vida fetal
Permite um amplo conhecimento da fisiologia, da anatomia cardíaca e do ritmo cardíaco, assim como a compreensão da história natural e modificada das anomalias do coração intraútero, o acompanhamento minucioso, a orientação familiar e a programação de opções de tratamento em serviço neonatal especializado nos casos graves.

Período neonatal
A transição da circulação cardiovascular faz com que os bebês precisem, em determinadas situações, ser avaliados pela ecocardiografia com o objetivo de reconhecer ou excluir doenças cardíacas congênitas estruturais. As principais indicações do exame incluem sopro cardíaco, alteração do teste do coraçãozinho, hipoxemia, síndrome do baixo débito cardíaco, quadro de insuficiência respiratória ou presença de múltiplas malformações. O exame também pode ser recomendado para avaliar anomalias funcionais, como a persistência do canal arterial, bem como da hemodinâmica pulmonar, para fornecer a estimativa das pressões pulmonares, e da função cardíaca.

Lactentes, crianças e adolescentes
Sinais e sintomas como cianose, déficit de crescimento, dor torácica induzida por exercício, síncope, desconforto respiratório, sopros, insuficiência cardíaca, alteração de pulsos e cardiomegalia podem sugerir doença cardíaca estrutural, indicando a necessidade de estudo ecocardiográfico. Além disso, o método pode ser sugerido para crianças com história familiar de doença cardíaca hereditária, com síndromes genéticas associadas à cardiopatia estrutural, e também nos casos assintomáticos com exames complementares alterados, a exemplo da radiografia de tórax e do eletrocardiograma.

Arritmias
A indicação da ecocardiografia está relacionada ao risco de associação com cardiopatias estruturais, como a transposição corrigida das grandes artérias e a anomalia de Ebstein, com tumores cardíacos e com cardiomiopatias. O exame ainda tem utilidade no seguimento de pacientes que usam medicações antiarrítmicas e podem apresentar alteração na função miocárdica.

Cardiopatias adquiridas na infância
Nesse contexto, serve para avaliação da função ventricular, das artérias coronárias e das lesões valvares que ocorrem na febre reumática. O acometimento miocárdico pode ocorrer em várias condições, como doenças inflamatórias sistêmicas – principalmente as com curso mais agressivo, como lúpus eritematoso sistêmico juvenil e artrite idiopática juvenil –, nas crianças e adolescentes com síndrome da imunodeficiência adquirida, devido ao risco de agressão direta do vírus, nos nefropatas crônicos e no decorrer de quimioterapia cardiotóxica (principalmente os antracíclicos) e de radioterapia em região mediastinal. Em tais casos, recomenda-se que o exame seja feito durante e após o tratamento para orientar medidas cardioprotetoras. Outras condições que requerem seguimento ecocardiográfico incluem a distrofia muscular, as doenças de depósito, a anemia falciforme e as pneumopatias.

É importante salientar que, recentemente, técnicas avançadas empregadas para o estudo da função ventricular por meio da ecocardiografia, a exemplo da deformação miocárdica (strain), vêm se mostrando úteis em situações em que se pretende identificar disfunção ventricular em fase subclínica, possibilitando intervenção terapêutica oportuna em diversas doenças sistêmicas que cursam com acometimento miocárdico, assim como nas cardiopatias congênitas.

Conclusão
No caso apresentado, o diagnóstico precoce da cardiopatia congênita grave impactou a evolução pós-natal. O maior benefício da identificação do quadro no período pré-natal é possibilitar o acompanhamento da gestante e o planejamento do parto em centro de referência com equipe clínica e cirúrgica de Cardiologia Pediátrica, de tal maneira que o atendimento pós-natal, assim como as condições clínicas pré-operatórias, seja otimizado, resultando em menor morbidade e mortalidade.

Em todas as fases da infância, o ecocardiograma é o método indicado para o diagnóstico anatômico e funcional na suspeita de alteração cardiovascular, oferecendo a grande vantagem de ser um exame não invasivo e com excelente acurácia.


Consultoria médica

Dra. Claudia R. Pinheiro de Castro Grau
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Coordenadora do Serviço de Ecocardiografia Fetal e Infantil do Fleury