Abordagem diagnóstica do tratamento do tabagismo

Como avaliar e acompanhar o paciente que deseja parar de fumar

O tabagismo é considerado uma doença crônica causada pela dependência da nicotina, uma droga psicoativa, presente nos produtos derivados de tabaco, que foi inserida na classificação internacional de doenças (CID), no grupo dos transtornos mentais e de comportamentos decorrentes do uso do fumo. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o cigarro é a maior causa de mortes que poderiam ser evitadas.

Em torno de 6 milhões de pessoas perdem a vida por ano em decorrência do hábito de fumar, com projeção de crescimento para 8 milhões em 2030. O Ministério da Saúde divulgou que, no Brasil, existem mais de 35 milhões de consumidores de cigarro, dos quais 80% começam a fumar antes dos 18 anos. Quanto mais precoce o início do tabagismo, maior a gravidade da dependência e de suas consequências.

Em razão do número elevado de fumantes e da mortalidade decorrente das doenças relacionadas ao consumo do tabaco, o tabagismo configura-se como um dos principais problemas de saúde pública em todo o mundo. Segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), o vício é responsável por 90% de todos os cânceres de pulmão, além de outras neoplasias malignas, como câncer de bexiga, pâncreas, laringe, faringe, cavidade bucal, esôfago, estômago, leucemia mieloide aguda, fígado e colo uterino.

O cigarro ainda causa mais de 80% dos casos de bronquite crônica e doença pulmonar obstrutiva crônica (enfisema pulmonar) e cerca de 20% dos casos de angina, doença coronariana (infarto agudo do miocárdio) e acidente vascular cerebral. Como se não bastasse, pode causar disfunção erétil e diminuição na qualidade funcional dos espermatozoides, levando à esterilidade. Em gestantes fumantes, ocorre maior risco de abortamento, descolamento prematuro de placenta, parto prematuro, placenta prévia e baixo peso do bebê o nascer.

O tabagismo atinge também os indivíduos não fumantes que convivem com fumantes em ambientes fechados, os chamados “fumantes passivos”, que inalam os gases baforados no ambiente, os quais provocam de reações alérgicas em curto período de exposição até câncer de pulmão, doença pulmonar obstrutiva crônica e infarto do miocárdio em indivíduos expostos por longo período.

O Brasil vem se destacando na redução da prevalência do tabagismo na população. Nos últimos nove anos, o número de fumantes caiu cerca de 30% no País graças às políticas de controle, como a lei antifumo – proibição de fumar nos ambientes fechados e restritos –, políticas para aumento de preços, proibição da propaganda nos pontos de venda e ocupação de um terço da face frontal da carteira de cigarros com mensagens de advertência e malefícios do cigarro.

Avaliação pré-tratamento

A abordagem inicial no tratamento do tabagismo requer uma história clínica detalhada (história do paciente, incluindo idade de início do vício, números de cigarros fumados ao dia, tentativas de cessação, tratamentos anteriores), exame físico completo, investigação de doenças relacionadas e interações medicamentosas que possam vir a contraindicar o tratamento  farmacológico proposto. Nessa oportunidade, exames complementares devem ser realizados. Confira:

Exames complementares para avaliação antes do tratamento do tabagismo

  • Radiografia de tórax
  • Espirometria pré e pós-broncodilatador
  • Eletrocardiograma
  • Hemograma e exames laboratoriais
  • Teste de medida do monóxido de carbono no ar expirado (COex) e dosagem de cotinina (urinária, sérica ou salivar), quando disponíveis, a fim de monitorizar os progressos do tratamento durante o seguimento do fumante.
  • Outros exames podem ser utilizados em pacientes de risco mais elevado:
    • Em indivíduos que fumam há mais de 15 anos, indica-se ainda a tomografia de tórax para rastreamento de câncer pulmonar com protocolo com baixa radiação, visto que há uma redução de mortalidade com a utilização dessa estratégia, em relação ao uso isolado de radiografia de tórax nesse grupo de pacientes.
    • Em tabagistas com outros fatores de risco cardiovascular associados, como diabetes mellitus, hipertensão arterial e dislipidemia, métodos de imagem como a ecocardiografia sob estresse pelo esforço físico e farmacológico, cintilografia com Spect-MIBI e angiotomografia de artérias coronárias podem também ser empregados de acordo com seu risco pré-teste.


A avaliação do grau de dependência da nicotina é importante antes de estabelecer um planejamento terapêutico na cessação do tabagismo, uma vez que isso é o que dificulta o processo de abstinência e aumenta a chance de insucesso do tratamento. Esse nível pode ser medido pelo teste de Fagerstrom, um método rápido e fácil, capaz de identificar mais de 50% dos fumantes com algum grau de dependência da substância e, assim, prever os indivíduos que terão mais sintomas de abstinência e, portanto, necessidade de tratamento farmacológico. A pontuação obtida no teste demonstra o grau de dependência, que vai de muito baixo até muito elevado.

Teste de Fagerstrom para mensuração da dependência da nicotina 

       1. Ao acordar, em quanto tempo você fuma seu primeiro cigarro?
       (3)  Nos primeiros 5 minutos
       (2)  Em 6 a 30 minutos
       (1)  Em 31 a 60 minutos      
       (0)  Em mais de 60 minutos

      2. Você acha difícil não fumar em lugares proibidos?
       (1)  Sim
       (0)  Não

      3. Qual cigarro do dia lhe traz mais satisfação?
       (0)  O primeiro da manhã
       (1)  Os outros

      4. Quantos cigarros você fuma por dia?
       (0)  Menos de 10
       (1)  11 – 20
       (2)  21 – 30
       (3)  Mais de 31

      5. Você fuma mais frequentemente pela manhã?
       (1)  Sim
       (0)  Não

      6. Você fuma mesmo doente, quando fica acamado na maior parte do tempo?
       (1)  Sim
       (0)  Não


Total de pontos: 

 0-2 = muito baixo
 3-4 = baixo
 5 = médio
 6-7 = elevado
 8-10 = muito elevado.

Após a avaliação clínica inicial e a determinação do grau de dependência física da nicotina, o médico deve aconselhar, orientar, motivar e preparar o paciente para parar de fumar, além de acompanhá-lo em cerca de quatro a cinco consultas subsequentes, visando a manter a motivação e identificar as recaídas precoces, assim como o aumento de peso. O seguimento médico associado ao uso de medicação aumenta em três a cinco vezes a chance de parar de fumar.

O tratamento atual consiste no uso de terapia escalonada com a introdução gradual dos medicamentos por um período de três a quatro meses. Os fármacos com eficácia comprovada estão divididos em medicamentos nicotínicos, também conhecidos como terapia de reposição de nicotina, e os não nicotínicos, como a bupropiona (primeira linha) e a nortriptilina e a clonidina, considerados de segunda linha no tratamento. Os esquemas terapêuticos podem ser utilizados isoladamente ou em combinação.

Medicamentos e terapia cognitivo-comportamental

Atualmente, os medicamentos oferecidos pelo Ministério da Saúde no tratamento do tabagismo são as terapias de reposição da nicotina e o cloridrato de bupropiona.

1. Terapias de reposição da nicotina (classe I, nível de evidência A): goma de mastigar, pastilha e adesivo transdérmico.

Goma de mastigar de nicotina (tabletes de 2 mg): a dose máxima recomendada é de 15 gomas de 2 mg por dia, durante 12 semanas. O paciente não deve fumar na vigência do tratamento. A orientação é mascar a goma com força algumas vezes até sentir o sabor de tabaco, parando a seguir e repousando a goma entre a bochecha e a gengiva por alguns minutos para, em seguida, voltar a mastigar com força, repetindo tal operação por 30 minutos. Durante a mastigação, o indivíduo não deve ingerir nenhum líquido.

Pastilha de nicotina (de 2 mg): a dose máxima indicada é de 15 pastilhas de 2 mg por dia, durante 12 semanas. O paciente não deve fumar na vigência do tratamento. A orientação é mover uma pastilha de um lado para o outro da boca, repetidamente, até que esteja totalmente dissolvida, por um período entre 20 e 30 minutos. O paciente não deve morder a pastilha durante o uso nem comer ou beber enquanto estiver com o produto na boca para não interferir na absorção de nicotina.

Adesivo transdérmico de nicotina (de 7, 14 e 21 mg): deve ser fixado na pele, fazendo-se um rodízio do local da aplicação a cada 24 horas. Na mulher, convém não colocá-lo nas mamas e, no homem, evitar regiões que apresentem pelos e áreas expostas ao sol. O paciente não deve fumar durante o uso do adesivo, que tem duração total de 12 semanas. O produto está contraindicado em gestação, amamentação, úlceras pépticas, infarto agudo do miocárdio recente (<15 dias) e hipersensibilidade aos medicamentos. É necessário seguimento médico ao longo do tratamento, principalmente de hipertensos e cardiopatas, para identificação precoce de possíveis efeitos colaterais.

2. Cloridrato de bupropiona (comprimidos de 150 mg), classe I, nível de evidência A.

Trata-se de um antidepressivo de ação lenta, com eficácia comprovada em metanálises, reconhecido e certificado pelo FDA americano para tratamento do tabagismo desde 1997. Indicado em fumantes com escore no teste de Fagerstrom igual ou superior a 5. A posologia indicada nos três primeiros dias é de um comprimido de 150 mg pela manhã. A partir do quarto dia, o tratamento segue com um comprimido pela manhã e outro à noite, até completar 12 semanas. A dose máxima recomendada é de 300 mg. Em caso de intolerância à dose preconizada, o ajuste posológico fica a critério do médico. O paciente deve ser orientado a parar de fumar no oitavo dia após o início da medicação.

Os principais efeitos colaterais são insônia, boca seca, cefaleia e risco de convulsão. As contraindicações ao uso incluem hipersensibilidade conhecida ao medicamento, risco de convulsão (história pregressa de crise convulsiva, epilepsia, convulsão febril na infância, anormalidades eletroencefalográficas), alcoólatras em fase de retirada de álcool, uso de benzodiazepínico ou outros sedativos, doença cerebrovascular, tumor de sistema nervoso central, bulimia, anorexia nervosa, gestação e amamentação. Pacientes hipertensos podem apresentar elevação dos níveis pressóricos durante a terapêutica.

3. Vareniclina (comprimidos de 0,5 mg e 1 mg), classe I, nível de evidência A

Outra medicação aprovada pelo FDA no tratamento do tabagismo, segura e bem tolerada, é a vareniclina, um agonista parcial dos receptores nicotínicos no sistema nervoso central, produzindo efeitos semelhantes à nicotina. Dentre os medicamentos de primeira linha para essa finalidade, é o de maior eficácia comprovada, com incidência de cessação do cigarro em torno de 35-40%.

A dosagem recomendada é iniciar com um comprimido de 0,5 mg ao dia, até o terceiro dia, do quarto ao sétimo dia, um comprimido de 0,5 mg de 12/12h e, a partir do oitavo dia até o fim do tratamento, que pode durar 12 ou 24 semanas, um comprimido de 1 mg de 12/12h. Recomenda-se a interrupção do tabagismo a partir do oitavo dia após o início do medicamento. Os efeitos colaterais mais comuns incluem insônia, cefaleia, boca seca, tonturas e elevação da pressão arterial.

4. Terapia cognitivo-comportamental, nível de evidência A

Por fim, a terapia cognitivo-comportamental, que consiste em intervenções cognitivas e no treinamento de habilidades, visa à cessação do fumo e à prevenção de recaídas, detectando situações de risco que levem o indivíduo a fumar, ajudando-o a resistir à vontade e estimulando-o à mudança do seu próprio comportamento. Pode ser realizada individualmente no consultório ou em grupos, em instituições com profissionais treinados.

É possível que, em um futuro breve, a avaliação do perfil genético venha a fazer parte dessa abordagem, auxiliando a individualizar o tratamento na escolha do melhor medicamento e, consequentemente, a obter maior sucesso terapêutico.

 

Leitura recomendada

Diretrizes recomendadas por instituições de referência no tratamento de tabagismo (Inca, Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, American Thoracic Society, European Respiratory Society).

Consultoria médica

Dra. Ivana Antelmi
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Dr. Wilson Mathias Junior
[email protected] 

Dra. Paola Smanio
paola.smanio@grupofleury