Câncer de ovário associado a endometrioma | Revista Médica Ed. 1 - 2018

A investigação pede integração entre métodos de imagem e marcadores tumorais, especialmente CA-125 e HE4.

A investigação pede integração entre métodos de imagem e marcadores tumorais, especialmente CA-125 e HE4

 O CASO


Paciente do sexo feminino, 64 anos, apresentou um episódio de dor na fossa ilíaca direita, com duração de 48 horas. Na investigação, o ultrassom (US) de abdome demonstrou lesão complexa na região anexial direita, medindo 6,5 x 5,4 x 5,4 cm. As dosagens dos marcadores tumorais CA-125, CA 19-9, CA 15-3 e alfafetoproteína foram negativas. Vale lembrar que a paciente tinha exames anteriores (US transvaginal de 2002 a 2016 e uma ressonância magnética da pelve de 2010) que apontavam lesão de conteúdo hemático no ovário direito (endometrioma), mas sem sinais de endometriose profunda.


  

Ultrassom por via suprapúbica demonstra lesão
complexa na região anexial direita (2017).


  

Axial T1 sem contraste com saturação de gordura evidencia
cisto no ovário direito com hipersinal em T1, caracterizando
conteúdo hemático (2010).


  

Axial T1 com contraste e com saturação de gordura aponta
cisto no ovário direito com hipersinal em T1,
sem realce anômalo (2010).


  

Axial T2 exibe cisto no ovário direito com hipossinal –
sinal do sombreamento (2010).



Endometriose e câncer


Condição pélvica benigna frequente, a endometriose raramente se transforma em câncer. Em geral, as malignidades associadas à doença ocorrem nos ovários, a partir da evolução de um endometrioma. A prevalência de neoplasia ovariana varia de 0,7% a 17% nas mulheres com lesões endometrióticas. Em comparação ao endometrioma benigno, os achados malignos são observados em pacientes mais velhas, especialmente na pós-menopausa.


A endometriose está ligada à tumorigênese dos tumores de ovário tipo I (carcinoma seroso de baixo grau, endometrioide, células claras ou mucinoso), que são geneticamente estáveis e caracterizados por mutações e disfunção de KRAS, BRAF e PTEN, assim como por instabilidade de microssatélites. O câncer de ovário associado a essa doença é descrito como neoplasia ovariana com células malignas e focos de endometriose no mesmo ovário, presença de tumor em um ovário e endometriose no ovário contralateral ou presença de câncer ovariano e focos de endometriose pélvica.


O tumor que mais comumente se desenvolve a partir do endometrioma é o carcinoma endometrioide, que pode exibir componentes cístico e sólido variáveis, seguido pelo carcinoma de células claras, o qual, com frequência, se mostra cístico uniloculado, com algum componente sólido.


A endometriose pode abrigar anormalidades genéticas que predispõem a lesão à transformação maligna. Os mecanismos envolvidos nesse processo não são bem conhecidos. A forma atípica da doença, na qual se observam atipias em células com aspecto em hobnail (em ‘tachinha’), dispostas com padrões arquiteturais mais complexos (cribriforme ou papilífero) e com expressão de p53 na imuno-histoquímica, pode evoluir do endometrioma típico e é encontrada em cerca de 8% dos endometriomas, sendo considerada a lesão precursora da maioria dos casos de carcinoma endometrioide e de células claras. Essa forma apresenta risco de transformação maligna de aproximadamente quatro vezes em relação à população feminina geral.


Estudos moleculares encontraram a ligação da endometriose com a neoplasia ovariana por meio de vias relacionadas ao estresse oxidativo, à inflamação, ao hiperestrogenismo e às alterações genômicas. Vias moleculares envolvidas na patogênese do câncer de ovário associado à endometriose incluem mutações de ativação da via PIK3/AKT e KRAS. Há, por exemplo, descrição de mutações de ativação no PIK3CA em 33-40% e perda de expressão de PTEN em 40% dos casos de carcinoma de células claras.


Já os receptores esteroides são diferentes entre os tipos de câncer de ovário associado à endometriose, visto que o carcinoma de células claras pode não expressar receptores de estrógeno e progesterona, enquanto o carcinoma endometrioide expressa ambos.


A DISCUSSÃO


Marcadores tumorais


O antígeno carcinoembriônico (CEA), o CA 19-9, o CA 15-3, a alfafetoproteína, o CA-125 e o HE4, sigla de human epididymis protein 4, podem ser empregados na prática clínica para auxiliar o diagnóstico da natureza das massas anexiais, embora sua baixa especificidade não permita o uso para o rastreamento e a identificação primária da neoplasia, sendo mais úteis no seguimento do tratamento. Como exemplo, o CEA pode estar elevado no adenocarcinoma colorretal e em neoplasias de mama, ovário e útero, entre outras, bem como em condições benignas.


Dentre esses marcadores, o CA-125 é especialmente útil para a avaliação da resposta à terapia, e não como triagem de câncer, visto que, em mulheres já tratadas, uma elevação em seus níveis ocorre de 2 a 12 meses antes de qualquer evidência clínica de recidiva. Por outro lado, quando se combina o CA-125 com o HE4, sua especificidade para discernir massas malignas de condições não neoplásicas aumenta.


O HE4 é uma glicoproteína expressa em neoplasias epiteliais do ovário, mas não no epitélio ovariano normal, e apresenta sensibilidade de 83% e especificidade de 90%. Está presente em até 100% dos adenocarcinomas endometrioides, em 93% dos adenocarcinomas serosos e em 50% dos carcinomas de células claras, embora não seja encontrado em casos de tumores mucinosos. De modo semelhante ao CA-125, o HE4 aparece aumentado em mais de 80% das pacientes com câncer epitelial de ovário.


Vale lembrar que, com base nas dosagens do HE4 e do CA-125, bem como no estado menopausal da paciente, foi desenvolvido o Algoritmo de Risco de Malignidade Ovariana, ou Roma, na sigla em inglês. Essa ferramenta tem sido utilizada no auxílio à discriminação de massas anexiais e classifica os tumores ovarianos em baixo e alto risco para doença ovariana maligna, funcionando como um instrumento de predição de malignidade.

 

  


Além da avaliação pré-operatória de massas anexiais, a combinação do HE4 com o CA-125 também tem utilidade para o acompanhamento das pacientes após o tratamento, a fim de detectar recidivas.



Exames de imagem


O US é sempre o exame de abordagem inicial para o reconhecimento das doenças da pelve feminina. Como o endometrioma consiste em uma lesão cística de conteúdo hemático, benigna e persistente (por mais de três meses), com ecos difusos e de baixa amplitude em seu interior, além de focos hiperecogênicos, a utilização do Doppler colorido demonstra a ausência de fluxo nessas lesões típicas. Quando o padrão ecográfico se apresenta duvidoso, a RM pode esclarecer o diagnóstico e excluir a natureza maligna, pois possui especificidade de 98% para essa finalidade. Os sinais radiológicos do endometrioma típico incluem hipersinal nas sequências ponderadas em T1 (sem e com saturação de gordura) e hipossinal em T2, por vezes com aspecto de sombreamento (shadding).


A sequência ponderada em T1, com e sem supressão de gordura, é fundamental para excluir a possibilidade de teratoma – o qual, devido à existência de gordura, apresenta queda do sinal em T1, com supressão de gordura, diferentemente dos endometriomas, que mantêm o hipersinal em tal sequência. A perda gradual de sinal em T2 deve-se ao acúmulo de produtos sanguíneos, ferro e proteínas na hemorragia crônica, permitindo o diagnóstico diferencial com cisto funcional hemorrágico, que geralmente não produz sombreamento e desaparece nos estudos de seguimento. Usando tais critérios, foram descritas sensibilidade e especificidade de 90% e 98%, respectivamente.


  

Axial T2 demonstra aumento da lesão, sinal
intermediário, diferente do hipossinal em T2 do exame anterior,
e nódulo mural (2017).


Os aspectos ultrassonográficos que distinguem massas ovarianas benignas das malignas decorrentes de endometriomas são os mesmos usados para a determinação da natureza de tumores ovarianos em geral. A presença de componente sólido vascularizado tem alta acurácia para a distinção de malignidade. As projeções papilares também configuram achados ultrassonográficos frequentes em lesões malignas.


Na RM, a característica mais sensível para o diagnóstico de malignidade em um endometrioma é a presença de nódulo mural. Outro achado que sugere se tratar de lesão maligna, porém menos específico, é a perda de sombreamento em T2.


Após o achado do US de abdome, a paciente do caso relatado realizou complementação com ultrassom transvaginal com Doppler colorido e, posteriormente, uma nova RM.


  

US por via transvaginal com Doppler colorido mostra lesão
sólido-cística na região anexial direita, com componente sólido vascularizado
ao Doppler e componente líquido espesso (2017).


  

Axial T1 pós-contraste (gadolínio) com saturação de gordura e com
subtração evidencia aumento da lesão e captação do contraste no nódulo mural,
confirmando o aparecimento de componente sólido dentro de um
endometrioma preexistente (2017).



Patologia


No carcinoma ovariano de células claras, observam-se células de citoplasma amplo e claro, rico em glicogênio, com membrana celular bem definida e dispostas com padrão sólido, tubular ou papilífero. Com frequência, está relacionado a focos de endometriose pélvica ou ovariana, podendo apresentar síndromes paraneoplásicas (hipercalcemia e tromboembolismo venoso). No exame macroscópico, é possível que tenha aspecto sólido, misto ou predominantemente cístico, com áreas amareladas ou pálidas, sólidas ou nodulares, na parede do cisto endometriótico.


Esse tipo de carcinoma é considerado uma neoplasia de alto grau de malignidade. O perfil genético evidencia mutação do gene ARID1A (46-57%), mutação com ativação de PIK3CA (40%) e mutação de PTEN (8,3%). Pode haver associação com a síndrome de Lynch, entretanto raramente com a síndrome hereditária de mama e ovário (mutação de BRCA1 e 2).


Há necessidade de representação histológica ampla para afastar a possibilidade de outros componentes histológicos associados. O perfil imuno-histoquímico caracteriza-se por positividade para CK7, HNF-1-beta, EMA, CD15, WT-1 e receptores de estrógeno, permitindo o diagnóstico diferencial eventual com o tumor de seio endodérmico (SALL4+, glipican-3 +, AFP+) e carcinoma de células claras renal metastático (CD10+, RCC+, CK7-).


Com a rápida implementação na prática diagnóstica dos testes de perfil gênico, as neoplasias ovarianas também deverão passar a ser analisadas por sequenciamento de próxima geração (NGS) para melhor caracterização tumoral e determinação terapêutica.


Carcinoma de células claras, padrão sólido. HE, 40x.

 



CONCLUSÃO


A paciente do caso relatado foi submetida a uma cirurgia que envolveu histerectomia total, salpingo-oforectomia bilateral, linfadenectomia e peritoniectomia, tendo recebido o diagnóstico de carcinoma de células claras de alto grau originário de endometrioma (pT1N0M0).


As mulheres com endometriose devem ser consideradas de maior risco para o desenvolvimento de câncer de ovário e há estudos que apontam que essas duas condições dependem do número de ovulações e de menstruações retrógradas durante os anos reprodutivos. Por esse motivo, defende-se a importância de medidas que diminuam a exposição à ovulação e as menstruações retrógradas, como o uso de contraceptivos hormonais, para reduzir a recidiva do endometrioma e o risco de câncer de ovário associado à endometriose.


Assessoria Médica
Bioquímica
Dr. Nairo Sumita
Ginecologia e Biologia Molecular
Dr. Gustavo Arantes Rosa Maciel
Dr. Ismael D. Cotrim Guerreiro da Silva
Imagem
Dra. Ana Paula Carvalhal Moura
Patologia
Dra. Mônica Stiepcich