Câncer e preservação da fertilidade feminina

Insuficiência ovariana precoce pode ser contornada por congelamento de óvulos e tecido do ovário.

A preservação da fertilidade é uma opção que vem sendo cada vez mais utilizada pelas mulheres em idade fértil. Em estudo feito em 65 clínicas do Reino Unido, houve grande aumento do número de mulheres que procuraram congelamento de óvulos a partir de 2010. Apesar de não saberem o motivo exato para essa demanda, mais de 30% delas relataram que não tinham um parceiro masculino no momento da obtenção dos óvulos.

Em outro levantamento feito com 13 clínicas da Espanha, no período de 2007 a 2015, houve aumento de cinco vezes na busca pela criopreservação eletiva de óvulos. Dentre essas mulheres, mais de 90% escolheram congelar seus óvulos por motivos relacionados à idade e o restante, por condições médicas benignas, como a endometriose.


Motivos para a preservação da fertilidade

A escolha para a preservação da fertilidade pode ser decorrente de condições médicas, benignas ou malignas, ou, ainda, de motivos sociais. Dentre as condições médicas, o tratamento para o câncer em mulheres em idade fértil, como quimioterapia, radioterapia e transplante de medula óssea, pode ocasionar insuficiência ovariana prematura, dependendo da reserva folicular, da idade da paciente e dos medicamentos utilizados. A preservação da fertilidade nas mulheres com neoplasias constitui um desafio. Nesse cenário, as indicações mais frequentes incluem o câncer de mama e as malignidades hematológicas, como linfoma de Hodgkin, linfoma não Hodgkin e leucemia.

A quimioterapia, particularmente com agentes alquilantes citotóxicos, a radioterapia, a cirurgia ou a combinação dessas modalidades de tratamento induzem a insuficiência ovariana prematura, uma vez que os ovários são muito sensíveis às drogas citotóxicas e à exposição à radiação de 5 a 10 Gy na área pélvica.

Como a probabilidade de insuficiência ovariana prematura depende da reserva folicular e de outros fatores relacionados ao próprio tratamento, sendo, portanto, variável em cada paciente, é difícil fornecer uma estimativa acurada do risco de infertilidade que pode ocorrer caso a caso.

Já as condições médicas benignas que também configuram indicações para a preservação da fertilidade incluem aquelas que requerem quimioterapia, como talassemia e lúpus, bem como endometriose recorrente e história familiar de menopausa prematura.

A presença de tumores ovarianos bilaterais ou endometriose ovariana grave ou de repetição ou, ainda, de torção ovariana recidivante pode comprometer a fertilidade futura. Na presença de endometrioma ovariano, o dano à reserva folicular pode decorrer de inflamação intraovariana local e ativação do recrutamento folicular, com subsequente atresia, bem como da realização de cirurgia para sua retirada. É possível considerar a preservação da fertilidade nos casos de probabilidade de cirurgias extensas e quando os níveis de hormônio antimülleriano encontram-se baixos e a paciente tem idade superior a 35 anos.

As condições sociais, por sua vez, também contribuem para uma grande proporção de mulheres que desejam postergar a maternidade por vários motivos pessoais, como falta de um parceiro estável, escolhas na carreira ou questões financeiras.


Principais indicações para preservação da fertilidade (adaptado de Dolmans et al, 2020)

Malignidades
- Doenças hematológicas (linfoma de Hodgkin, linfoma não Hodgkin, leucemia)
- Câncer de mama
- Sarcoma
- Alguns cânceres pélvicos
Doenças benignas
- Doenças sistêmicas não oncológicas que requerem quimioterapia, radioterapia e transplante de medula óssea
- Doenças ovarianas: tumores ovarianos bilaterais benignos, endometriose ovariana recorrente e grave, risco de torção ovariana
- Risco de insuficiência ovariana prematura por história familiar ou síndrome de Turner
Motivos sociais
- Idade
- Postergação da maternidade

 

Técnicas de preservação da fertilidade

Atualmente, as três principais estratégias para a preservação da fertilidade são a vitrificação de óvulos, a criopreservação de embriões e a criopreservação de tecido ovariano.

Processo ultrarrápido de resfriamento, que vem revolucionando a preservação de oócitos, a vitrificação consiste em uma técnica em que os óvulos são resfriados em taxas de 100°C, a 10.000°C por minuto, com a adição de concentrações elevadas de aditivos crioprotetores, a fim de reduzir o risco de nucleação e cristalização do gelo, antes da submersão em nitrogênio líquido.

A coleta de oócitos maduros e subsequente vitrificação configura uma opção para as mulheres sem parceiro fixo em idade reprodutiva que desejam preservar a fertilidade por indicações benignas ou por motivos pessoais, bem como para aquelas em idade reprodutiva mais avançada, visto que possibilita estender o potencial de fertilidade, o qual diminui com o declínio da qualidade do oócito ao longo da idade.

Em indicações oncológicas, a criopreservação de óvulos ou mesmo a criopreservação de embriões precisam respeitar alguns aspectos. A quimioterapia deve ser atrasada em, pelo menos, dez dias para permitir o tempo de estímulo ovariano controlado e a paciente tem de estar em período pós-puberal. Pode ainda ser necessário requerer protocolos específicos de estímulo ovariano controlado, dependendo da sensibilidade aos esteroides da neoplasia em tratamento. Vale lembrar que há poucos dados sobre a qualidade dos óvulos em mulheres com câncer e que não é possível extrapolar os resultados obtidos com programas de doação de óvulos para pacientes tratadas por neoplasias.

A criopreservação de embriões é a conduta mais rotineira hoje nos laboratórios de embriologia devido ao excesso de embriões formados nos tratamentos de fertilização in vitro por infertilidade. E, portanto, configura também uma excelente forma de proteção de fertilidade futura, em especial para as mulheres que têm parceiro fixo. O estímulo ovariano ocorre com os mesmos protocolos para vitrificação de óvulos, mas, nesse caso, há necessidade do espermatozoide para que o embrião se forme por meio da técnica de fertilização in vitro e se desenvolva até três a cinco dias para congelamento definitivo.

Já a criopreservação de tecido ovariano é uma alternativa para a preservação da fertilidade em meninas pré-púberes e em mulheres que não podem atrasar o início da quimioterapia. O efeito da toxicidade do tratamento de primeira linha do câncer sobre o ovário depende da idade. O comprometimento da reserva ovariana geralmente fica inferior a 10% em meninas com menos de 10 anos da idade e de cerca de 30% nas de 11 a 12 anos. Mesmo em meninas jovens, há uma associação entre a intensidade da terapia e a probabilidade de insuficiência ovariana prematura, sendo os agentes alquilantes considerados os medicamentos mais tóxicos. A reimplantação do tecido ovariano pode ser feita de maneira ortotópica, na cavidade pélvica, e heterotópica, fora da cavidade pélvica, como antebraço ou musculatura da parede abdominal.

Na prática, a vitrificação de óvulos é a técnica de escolha para as indicações não oncológicas, ou seja, de cunho social, por mulheres independentes e sem parceiro fixo. Apresenta taxas de sucesso clínico semelhantes às dos ciclos de transferências de embriões frescos até a faixa etária de 35 anos, após a qual os índices de gravidez se reduzem acentuadamente, sobretudo depois dos 38 anos. Quando há uma causa oncológica, tanto a vitrificação de óvulos quanto a criopreservação de embriões constituem excelentes opções, dependendo da situação conjugal e da preferência da paciente.

Na opção de criopreservação de tecido ovariano, após sua reimplantação na cavidade pélvica, a atividade ovariana é restabelecida em mais de 95% dos casos. A duração média da função da glândula após o transplante é de quatro a cinco anos, podendo persistir até sete anos, a depender da idade no momento da criopreservação, da densidade do folículo e da qualidade do tecido enxertado.

A técnica combinada de criopreservação de tecido ovariano imediatamente seguida pela vitrificação de óvulos ou criopreservação de embriões aumenta as chances de gravidez e pode ser cogitada em mulheres com baixa reserva ovariana. Quando se utiliza essa associação em pacientes com câncer, é possível obter taxas de nascidos vivos de 50% a 60%. A estratégia eleva a eficácia do procedimento, possibilitando maiores chances de sucesso para esse grupo.


Referências

Dolmans M-M, Donnez J. Fertility preservation in women for medical and social reasons: oocytes vs ovarian tissue. Best Pract Res Clin Obstet Gynecol. 2020. Online ahead of print. https://doi.org/10.1016/j.bpobgyn.2020.06.011.

Jacob S, Balen A. Oocyte freezing: reproductive panacea or false hope of family? Br J Hosp Med (Lond). 2018;79(4):200-4.


CONSULTORIA MÉDICA

Dr. Daniel Suslik Zylbersztejn

Médico coordenador do Fleury Fertilidade – Centro de Medicina Reprodutiva do Fleury

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