Como a obesidade interfere no risco cardiovascular

Condição determina alterações metabólicas associadas ao surgimento de doenças cardiovasculares.

Consideradas a principal causa de morte no mundo e no Brasil, as doenças cardiovasculares (DCV) têm, entre os diversos fatores de risco para seu desenvolvimento, a obesidade e condições associadas, como dislipidemia, disglicemia, hipertensão arterial e inflamação. Em 2017, uma publicação do estudo Global Burden of Disease (GBD)
divulgou a carga de doenças relacionadas com o excesso de peso em 195 países entre os anos 1990 e 20151. Desde 1980, a prevalência de obesidade dobrou em mais de 70 países, inclusive em crianças e adolescentes. Mostrou-se que, respectivamente, 5% e 12% das crianças e adultos no mundo tinham essa condição. No Brasil, especificamente, a frequência da obesidade aumentou de 13,9% para 19,8%, de 1999 a 20092. A prevalência de síndrome metabólica acompanhou essa tendência: em Florianópolis (SC), por exemplo, saiu de 19% a 25% para aproximadamente 31%, de 2000 a 2014.

Voltando aos dados do estudo GBD, em 2015, o excesso de peso (índice de massa corporal ≥25 kg/m2) provocou 4 milhões de mortes no mundo, ou 7% do total, das quais quase 40% foram por DCV1. Como se não bastasse, também se associou à incapacitação de 120 milhões de pessoas, ou 4,9% do total, das quais 34% em decorrência das DCV. Chama igualmente a atenção o fato de os óbitos relacionados ao diabetes terem sido a segunda causa de morte relacionada à obesidade em 2015. O mesmo GBD, em 2019, demonstrou que o excesso de peso respondeu pela quinta e sexta causas de morte no mundo para homens e mulheres, respectivamente3. Por fim, quando abordamos as DCV, a obesidade perdeu apenas para o aumento da pressão sistólica e do LDL-colesterol como causa de incapacidade.


Mecanismos fisiopatológicos

De fato, o aumento excessivo do índice de massa corporal associa-se a uma série de mecanismos fisiopatológicos e a doenças que agridem o sistema cardiovascular e eleva não apenas o risco de doença aterosclerótica, mas também de miocardiopatias, insuficiência cardíaca, acidente vascular cerebral e arritmias, como a fibrilação atrial. O acúmulo do tecido adiposo visceral na região abdominal, no fígado e na loja renal e epicárdica leva a alterações metabólicas, a exemplo de resistência insulínica, dislipidemia aterogênica, disglicemia e diabetes, inflamação, aumento da atividade do sistema nervoso simpático e distúrbios da coagulação/fibrinólise. Um fator extremamente frequente e preocupante é o da predisposição do aparecimento da síndrome da apneia obstrutiva do sono em indivíduos com excesso de peso, que, por si só, eleva o risco de DCV5.


Prevenção

Classicamente, a prevenção das DCV requer a identificação dos fatores de risco e seu controle. A avaliação do índice de massa corporal e, sobretudo, a medida da cintura fornecem importantes informações sobre o risco cardiovascular4. O conceito da síndrome metabólica configura uma simples e boa medida da agregação de fatores de risco para aterosclerose e DCV6, que nos permite facilmente identificar indivíduos predispostos a essas complicações.

Do ponto de vista prático, tratamos as condições associadas ao excesso de peso, como a hipertensão arterial, a dislipidemia e a disglicemia. Contudo, não focamos de forma adequada a causa. A redução do peso é, talvez, um dos maiores desafios para a prevenção não apenas de DCV, mas de outras complicações da obesidade. Embora uma dieta adequada e a prática de exercício físico sejam fundamentais, na maior parte das situações estas se mostram pouco eficazes. Perdas de 5-10% do peso associam-se a importantes melhoras metabólicas. Por sua vez, estudos de longa duração mostram que perdas robustas, como as conseguidas com a cirurgia bariátrica, prolongam a vida de indivíduos com graus importantes de obesidade.

Além da baixa eficácia, um dos grandes empecilhos na prática clínica para o uso dos antigos fármacos para controle de obesidade residia em seus efeitos adversos para o sistema cardiovascular, como ativação simpática hipertensão pulmonar e valvopatias, o que proscreveu a utilização dessa categoria de fármacos entre os cardiologistas.


Análogos do GLP-1

O desenvolvimento dos análogos de receptores de GLP-1, inicialmente para controle glicêmico de portadores de diabetes do tipo 2, revolucionou a maneira de tratar o excesso de peso. No Brasil, o único análogo do GLP-1 aprovado para o tratamento da obesidade é a liraglutida na dose de 3 mg/dia9, que atua no centro hipotalâmico da fome e da saciedade, reduzindo a ingesta calórica e tornando mais lento o esvaziamento gástrico. Essa classe de medicamentos traz efeitos benéficos não apenas sobre a homeostase da glicose, mas igualmente na pressão arterial, na concentração de lipídes plasmáticos e na inflamação. Ademais, diminui a gordura visceral, assim como a gordura hepática, resultando, de forma segura, em robustas reduções do peso em pessoas com ou sem diabetes. Os estudos mostraram excelente segurança dessas medicações, que não aumentam a incidência de hipoglicemia ou pancreatite. Um fato extremamente promissor é que os análogos de GLP-1 baixam o risco das DCV em pessoas com diabetes do tipo 2 aparentemente de forma independente do controle glicêmico. Espera-se que esses benefícios sobre os fatores de risco cardiovascular culminem na prevenção dos desfechos das DCV ligados ao excesso de peso em pessoas sem diabetes. Novos estudos clínicos estão sendo realizados com esse propósito.


Raul D. Santos

Professor-associado do Departamento de Cardiopneumologia da FMUSP. Diretor da Unidade Clínica de Lípides do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da FMUSP. Pesquisador da ARO do Hospital Israelita Albert Einstein. Presidente da Sociedade Internacional de Aterosclerose.


Referências

1. Afshin et al. N Engl J Med. 2017;377(1):13-27.
2. Cohen et al. Lancet Diabetes Endocrinol. 2020;12:937-938.
3. Lancet 2020;396:1223-49.
4. Neeland et al. Lancet Diabetes Endocrinol. 2019;7:715-725.
5. Drager et al. Circulation 2017;136:1840-1850.
6. Eckel et al. Lancet 2005;365:1415-28.
7. Syn et al. Lancet 2021; 397:1830–41.
8. Kang & Park. Diabetes Metab J. 2012;36: 13–25.
9. Pi-Sunyer et al. N Engl J Med. 2015;373:11-22.
10. Wilding et al. N Engl J Med. 2021;384:989-1002.
11. Kristensen et al. Lancet Diabetes Endocrinol. 2019;7:776-785.