Amiloidose cardíaca

Embora a doença seja de difícil suspeição clínica, é possível flagrar achados específicos nos exames

Condição patológica rara, descrita pela primeira vez em 1854, por Virchow, a amiloidose tem uma prevalência de 8-12 casos por milhão de habitantes e uma incidência anual estimada em 3.000 casos nos Estados Unidos.

Caracteriza-se pela deposição de substância amor - fa hialina na matriz extracelular dos órgãos, constituída basicamente de proteínas betafibrilares insolúveis, de baixo peso molecular, resistentes à proteólise, glico - proteínas (glicosaminoglicanos) e pentraxina amiloide P sérica. Tem caráter progressivo, a ponto de levar à compressão do parênquima tecidual e ao comprome - timento funcional dos órgãos acometidos. Essa subs - tância é conhecida como proteína amiloide e pode ter diferentes composições químicas, estando, na maioria dos casos, associada a processos imunológicos, como o mieloma múltiplo, a degenerações orgânicas ligadas ao envelhecimento ou a quadros inflamatórios crônicos sistêmicos, a exemplo da doença de Crohn e da artrite reumatoide. Na ausência de afecções subjacentes cor - relacionadas ao quadro, utiliza-se o termo amiloidose primária ou sistêmica.

Existem vários tipos de proteínas amiloides já re - conhecidas, sendo a mais comum a imunoglobulina de cadeia leve (AL), responsável pela amiloidose AL produzida por células com capacidade imunológica. São também frequentes os depósitos de amiloide do tipo A sérica (amiloidose AA) e da transtirretina (ami - loidose TTR).

O acúmulo do tecido amiloide, teoricamente, pode se dar em qualquer local do organismo, mas o coração, os rins, o fígado, o trato gastrointestinal, os pulmões e as partes moles constituem os locais mais frequentemen - te afetados. Em um mesmo indivíduo, o acometimento pode ocorrer de forma isolada, em um único órgão, ou de maneira associada, abrangendo mais de um órgão.

Infiltração no coração

Considerando-se as formas sistêmica e isolada, a in - filtração amiloide cardíaca pode ocorrer como parte da amiloidose sistêmica primária ou associada ao mieloma múltiplo, causada pelo depósito da proteína amiloide AL (imunoglobulina); como parte da ami - loidose sistêmica secundária, relacionada a doenças crônicas inflamatórias, decorrente de depósito da proteína amiloide AA, geralmente com menor com - prometimento do coração; como manifestação de uma doença hereditária autossômica dominante, de - terminada pelo depósito da proteína amiloide AF, que é uma forma variante de uma pré-albumina (transtir - retina); ou, ainda, como fenômeno localizado no pa - ciente idoso, pelo depósito da proteína amiloide SSA, que também configura uma pré-albumina (transtirre - tina) anormal.

Embora a amiloidose seja conhecida desde o sé - culo 19, nosso entendimento sobre o acometimento cardíaco pela doença se desenvolveu apenas nas úl - timas décadas. A forma de cadeia leve (AL) é a mais prevalente e, em geral, de acometimento sistêmico, raramente de expressão cardíaca isolada. A forma transtirretina TTR da amiloidose (ATTR) tem incidência crescente após os 60 anos – sabe-se que pode estar presente em até cerca de 25% de autópsias positivas em octogenários sem diagnóstico in vivo.

A doença pode ter evolução lenta e progressiva, sendo muitas vezes assintomática durante grande parte do tempo, e só apresenta sintomas quando a in - filtração tecidual é bastante abrangente. Muitas vezes, evolui de forma silenciosa, manifestando-se tardia - mente com episódio de insuficiência cardíaca, arrit - mias (extrassístoles, fibrilação atrial e outras taquiar - ritmias), tromboembolismo pulmonar, síncope e até mesmo morte súbita decorrente de fibrilação ventri - cular. O acometimento cardíaco é polimórfico e resul - tante do variado grau de infiltração dos diversos sítios do coração: miocárdio, valvas, pericárdio e vasos. 

A amiloidose cardíaca isolada ocorre em aproxima - damente 3,9% dos casos diagnosticados. De uma ma - neira geral, é representada por um quadro infiltrativo tecidual intenso, que resulta no aspecto hipertrofiado da musculatura, no enrijecimento das paredes das ca - vidades e dos septos intercavitários e no aumento da espessura das cúspides valvares e dos folhetos peri - cárdicos, assim como na possibilidade de compressão extrínseca dos vasos coronarianos e de extensão da infiltração para a parede da artéria aorta. O miocárdio torna-se firmemente rígido e não complacente, de - sencadeando um quadro fisiopatológico de restrição ao enchimento ventricular e de suas consequências.

Diagnóstico: da suspeita clínica ao exame anatomopatológico

Dependendo do tempo de evolução e da intensidade do acome - timento do coração, a suspeita clínica já será feita quando o pa - ciente estiver em quadro desenvolvido de insuficiência cardíaca, com prognóstico reservado e sem correlação segura e definida pelos marcadores prognósticos clássicos.

Na prática, contudo, é muito difícil estabelecer um padrão clássico de apresentação clínica da amiloidose cardíaca – o que a torna uma condição frequentemente subdiagnosticada. Assim, deve sempre ser suspeitada em quadros de insuficiência cardíaca crônica refratários a tratamento, de caráter infiltrativo-restritivo, muitas vezes com função sistólica preservada, na presença de derrame pericárdico e em pacientes com idade mais avançada e que apresentem distúrbios da condução elétrica ou comprome - timento atrial isolado.

Com relação aos aspectos diagnósticos, apesar do importante avanço tecnológico e da disponibilidade de novos recursos nas últimas décadas, a confirmação do quadro ainda é problemática, exigindo que o médico pense precocemente na possibilidade da sua ocorrência. A existência de uma doença prévia com possível associação facilita a suspeição e o início da investigação. Contu - do, em muitos casos, a definição da condição ocorre simultanea - mente a seu diagnóstico pelos dados da biópsia miocárdica, sem nem ter sido objeto de hipótese prévia.

Ao levantar a suspeita de amiloidose, o próximo passo é pes - quisar a presença de picos monoclonais de imunoglobulinas no sangue e na urina para progredir na investigação. A biópsia da medula óssea contribui para o diagnóstico de mieloma múltiplo, muitas vezes responsável pela ocorrência da condição. Já a dosagem da porção N-terminal do pró-hormônio do peptídeo natriurético do tipo B tem grande importância como marcador de disfunção ventricular.

Do ponto de vista de fluxograma diagnóstico em geral, os métodos padrão-ouro para o estabelecimento definitivo da amiloidose continuam sendo a biópsia tecidual e o estudo anatomopatológico com os componentes macroscópico e microscópico. Entretanto, métodos diagnósticos não invasivos se desenvolveram de forma importante e, muitas vezes, é possível prescindir da biópsia, como veremos a seguir.

A macroscopia demonstra o aumento da espessura das paredes das cavidades associado à rigidez da sua textura e quase sempre a inexistência de significativas dilatações dos átrios e ventrículos. A análise das superfícies das valvas cardíacas revela espessura aumentada, às vezes de modo tão intenso que pode limitar funcionalmente o grau de abertura ou dificultar seu completo fechamento, causando insuficiência valvar. Graus variáveis de alargamento da espessura dos folhetos pericárdicos parietal e visceral e presença de derrame pericárdico também podem ser encontrados.

O estudo histopatológico com a utilização de hematoxilina-eosina aponta material eosinofílico amorfo circundando as fibras musculares estriadas cardíacas, além de revelar graus variáveis de infiltrado inflamatório e de fibrose intersticial. O uso específico do corante vermelho-congo confirma e caracteriza a presença do material amiloide.



Métodos complementares

Eletrocardiograma

Na presença de amiloidose, o exame geralmente detecta baixa voltagem elétrica das ondas, sobretudo nas derivações periféricas, com ausência de sinais elétricos de hipertrofia muscular ventricular esquerda, que pode estar presente em até 20% dos casos. Observa-se ainda alteração difusa da repolarização ventricular, graus diferentes de distúrbios de condução elétrica e arritmias, como a fibrilação atrial. Caso tenha ocorrido infarto prévio concomitante, há sinais elétricos de necrose miocárdica, como a presença de áreas eletricamente inativas.

Radiografia do tórax

Em geral, oferece baixo valor diagnóstico adicional para a investigação da doença, pois a área cardíaca, na maioria das vezes, permanece inalterada. Em estados mais avançados de infiltração do órgão, quando ocorre limitação intensa da complacência e do relaxamento miocárdicos, que dificulta o enchimento ventricular diastólico, pode, de maneira inespecífica, demonstrar alteração do padrão de vasculatura pulmonar.

Ecocardiografia com Doppler

Por meio de suas diferentes modalidades de estudo, torna- -se importante método na investigação diagnóstica inicial, como também no seguimento clínico e no acompanhamento evolutivo da eficácia dos tratamentos instituídos. Possibilita analisar as dimensões cavitárias, medir a espessura das paredes e calcular a estimativa da massa ventricular e a consequente caracterização do perfil geométrico ventricular. Avalia ainda a contratilidade global e segmentar dos ventrículos (função sistólica), estuda o enchimento ventricular e, por conseguinte, os seus vários componentes – relaxamento, complacência e contração atrial (função diastólica) –, pesquisa trombos intracavitários e caracteriza a aparência dos folhetos pericárdicos e a existência de derrames e suas repercussões hemodinâmicas.

A avaliação ecocardiográfica pode ser realizada por técnicas habitualmente rotineiras, como a análise bidimensional e o estudo com Doppler, e também a partir de tecnologias mais recentes, como o ecocardiograma tridimensional, a utilização de contrastes de perfusão miocárdica e a análise das curvas de strain/strain-rate miocárdicos por speckle tracking. Um achado bastante frequente e relevante do ponto de vista diagnóstico é a presença de apical sparing. 

Além disso, o uso da ecocardiografia transesofágica permite outra forma de abordagem tridimensional do coração, com melhor caracterização e quantificação da insuficiência valvar mitral e aórtica. Por fim, a avaliação pela ecocardiografia sob estresse farmacológico estuda a resposta contrátil regional da musculatura ventricular, bem como detecta sinais de isquemia miocárdica e o comportamento diastólico durante o estímulo com agentes medicamentosos inotrópicos.


Imagens ecocardiográficas de planos paraesternal longitudinal (A) e apical de quatro câmaras (B) demonstram aumento das dimensões do átrio esquerdo (AE) e aumento significativo e difuso da espessura miocárdica do ventrículo esquerdo (VE), secundário à deposição intersticial tecidual de material amiloide. Observa-se ainda aumento discreto da espessura das cúspides da valva mitral.


Curvas espectrais do estudo Doppler do fluxo de enchimento ventricular esquerdo através da valva mitral (A) e do Doppler tecidual da parede inferosseptal do ventrículo esquerdo (B) exibem intensa alteração das velocidades de enchimento ventricular e da dinâmica de relaxamento e complacência da musculatura ventricular – padrão restritivo. Há também arritmia isolada e insuficiência mitral associada.


Cine 4CH: espessamento miocárdico difuso, inclusive nas paredes atriais (setas vermelhas); derrame pleural bilateral e mínimo pericárdico (setas azuis).


Realce tardio 4CH: espessamento e realce tardio miocárdicos difusos, inclusive nas paredes atriais (setas vermelhas).


Ressonância magnética

Atualmente, a ressonância magnética cardíaca (RMC) desempenha papel importante no diagnóstico de amiloidose cardíaca. É um método baseado em radiofrequência, que não utiliza radiação ionizante e possibilita a aquisição de imagens de alta resolução espacial e de contraste e boa resolução temporal, em qualquer plano e com amplo campo de visão, sem restrição de janela. Por fazer um exame multiparamétrico, com diversos tipos de sequências, consegue avaliar anatomia, função e caracterização tecidual, parâmetros muito relevantes no diagnóstico da doença em questão.

A amiloidose cardíaca usualmente se apresenta com hipertrofia ventricular esquerda difusa, restrição diastólica, função sistólica preservada e aumento desproporcional dos átrios. Pode estar associada a alargamento da espessura da parede livre do ventrículo direito e também das paredes atriais, sendo estas mais específicas para o diagnóstico da condição. Derrame pleural e pericárdico podem estar presentes. Em fases mais avançadas da doença, existe a possibilidade de haver redução da função sistólica.

As sequências de cine-RM acessam, com boa acurácia, volumes, função contrátil e espessura miocárdica tanto dos ventrículos quanto dos átrios, além de detectarem derrame pericárdico e pleural. A função diastólica pode ser avaliada por sequências de análise de fluxo nas veias pulmonares e transmitral, de forma semelhante ao ecocardiograma, porém a aquisição e o pós-processamento na RMC são mais complexos, assim como por cine-RM, pelo traçado das curvas de tempo e volume.

Novas e promissoras técnicas para avaliação da função diastólica por RMC surgiram recentemente, com destaque para a de contraste de fase, com medida direta do relaxamento miocárdico, e para a de tagging, com avaliação da deformação miocárdica durante todo o ciclo cardíaco, permitindo a avaliação objetiva da rotação miocárdica e do strain radial, circunferencial e longitudinal.

A deposição de proteína amiloide no miocárdio resulta na expansão do espaço intersticial. A proteína de cadeia leve pode resultar em morte de miócitos e em algum grau de fibrose reacional, o que também contribui para aumentar o espaço intersticial. Esses processos modificam estruturalmente o miocárdio e também a cinética do contraste, alterações que podem ser detectadas pela RMC por sequências de caracterização tecidual.

O fato é que, por meio do mapa T1 nativo, do mapa T1 pós- -contraste e do hematócrito, é possível quantificar o volume extracelular miocárdico (ECV). Tanto o mapa T1 quanto o ECV podem indicar o envolvimento cardíaco pela amiloidose em estágio mais precoce quando comparado ao realce tardio.




Cintilografia de perfusão miocárdica

Não se sabe ao certo o mecanismo relacionado à concentração dos marcadores ósseos utilizados na cintilografia que permitem a diferenciação não invasiva dos subtipos de amiloidose, mas diversas publicações, nos últimos anos, corroboram o poder discriminativo da cintilografia com pirofosfato marcado com tecnécio- -99m (PYP-99mTc) em pacientes com suspeita de amiloidose, nos quais se observa intensa concentração anômala na área cardíaca do PYP-99mTc na forma TTR, pouca concentração na forma AL e nenhuma concentração no grupo controle. Alguns estudos realizados previamente relatam sensibilidade de 97% e especificidade de 100% para identificar a amiloidose ATTR cardíaca. Uma vez que a análise é realizada em comparação à concentração do indicador nos ossos, pode ser feita de maneira qualitativa e quantitativa.

A sensibilidade diagnóstica dessa técnica simples ultrapassa os 99% e a especificidade varia de 68% (nos graus 0-1 de concentração leve) até 87% (nos graus 2-3). Na ausência de detecção da proteína monoclonal de cadeia leve, a especificidade diagnóstica se eleva para 100% na forma ATTR.

Tomografia computadorizada cardíaca

O exame oferece boa análise estrutural cardíaca e também de função, porém é necessária a aquisição durante todo o ciclo cardíaco para obter imagens em sístole e diástole, o que eleva significativamente a dose de radiação ionizante utilizada. Também não dispensa o uso de contraste iodado endovenoso para melhor diferenciação entre o miocárdio e a cavidade. A caracterização tecidual miocárdica é mais limitada quando comparada à RMC, tendo melhor desempenho apenas na caracterização de calcificações. Eventualmente, pode identificar realce tardio miocárdico, mas com menor sensibilidade do que a RMC. Por essas características, a tomografia é menos utilizada no diagnóstico da amiloidose cardíaca.


Papel do estudo genético

A amiloidose familiar é uma forma hereditária da doença. Quer uma mutação tenha ocorrido no DNA da própria pessoa, quer tenha sido herdada de um dos pais, a forma mais comum está associada à proteína transtirretina (TTR) mutante, produzida no fígado. Caracteriza-se pela presença de proteína variante TTR no tecido amiloide, que se compõe de 127 aminoácidos.

O gene TTR está localizado no cromossomo 18q12.1 e apresenta mais de 120 mutações amiloidogênicas, dentre as quais a Val30Met é a mais comum.

O teste molecular para análise do TTR detecta mutações em mais de 99% dos casos de amiloidose familiar decorrente de alterações nesse gene e deve ser considerado para confirmar a suspeita diagnóstica em pacientes sintomáticos.

A pesquisa genética também se aplica à identificação de membros da família assintomáticos em risco, à diferenciação entre a amiloidose familiar pela mutação no gene TTR de outros tipos da doença e ao esclarecimento do subtipo genético envolvido.

É importante salientar que formas ligadas aos genes APOA1 e GSN não são contemplados nesse estudo.


CONSULTORIA MÉDICA

Cardiologia 

Dr. Andrei Skromov de Albuqueque 

[email protected]

Dr. Cristiano Vieira Machado 

[email protected]

Dr. Frederico José N. Mancuso 

[email protected]

Dra. Paola Smanio 

[email protected]

Anatomia Patológica 

Dra. Jussara Bianchi Castelli 

[email protected]

Genética 

Dr. Caio Robledo Costa Quaio 

[email protected]

Dr. Carlos Eugênio Fernandez de Andrade 

[email protected]

Dr. Wagner Antonio da Rosa Baratela 

[email protected]