Encefalites autoimunes: um desafio diagnóstico

Estudo BrAIN revela o panorama dessas doenças de reconhecimento desafiante no Brasil

As encefalites agudas consistem em quadros neurológicos graves, associados a inflamação cerebral, que se desenvolvem como encefalopatias rapidamente progressivas, em geral em menos de seis semanas.

Se, até pouco tempo atrás, a grande maioria desses casos era atribuída a causas infecciosas, mais recentemente a etiologia autoimune vem se tornando relevante. Estudos do norte da Europa mostraram que 20% das encefalites são imunomediadas, enquanto o  California Encephalitis Project concluiu que 47% desses quadros em indivíduos com menos de 30 anos têm origem autoimune. De fato, em países desenvolvidos, estima-se que as encefalites autoimunes (EAI) apresentem prevalência de 8 a 13 casos por 100.000 habitantes, acometendo todas as faixas etárias.

Enquanto a literatura internacional traz uma ampla gama de trabalhos que analisam os anticorpos mais frequentemente associados às EAI, o Brasil carecia de estudos robustos até recentemente.

Isso mudou em 2018, quando um grupo de pesquisadores brasileiros estabeleceu o projeto Brazilian Autoimmune Encephalitis Network (BrAIN), que envolveu 17 centros de todas as regiões geográficas do País. Em parceria com a Universidade de Viena e com o apoio do Grupo Fleury, do Hospital Israelita Albert Einstein e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o estudo analisou a presença de anticorpos associados às EAI em amostras de soro e liquor de 564 pacientes que preenchiam os critérios diagnósticos (veja na pág. 14) para EAI possível.

Publicado em outubro de 2023, o trabalho trouxe resultados que detalharam importantes características dessas doenças na população brasileira.

Alguns dos principais achados do estudo BrAIN

No Brasil, os anticorpos mais comumente relacionados às EAI em adultos, segundo o BrAIN, foram anti-NMDAR, anti-LGI1, anti-GAD65, anti-GlyR, anti-CASPR2 e anti-AMPAR. Já na população infantil, caracterizada pela faixa etária de até 13 anos, o anti-NMDAR e o anti-MOG estiveram entre os mais detectados. Em consonância com os dados encontrados pelo estudo, a literatura também aponta a EAI associada ao anticorpo contra o receptor de N-metil-D-aspartato (NMDAR) como a forma mais frequente da condição.

Entre as variáveis clínicas que se mostraram preditoras de EAI soropositiva ou com anticorpos positivos, os distúrbios de movimento, as crises epilépticas, a instabilidade autonômica e o comprometimento da memória estavam presentes nos adultos, enquanto a coreia e a diminuição do nível de consciência foram encontradas nas crianças.

O BrAIN também trouxe informações de destaque emrelação à relevância de alguns anticorpos, cujo papel ainda permanece em discussão e não está completamente esclarecido nesse contexto. O anti-GlyR e o anti-MOG responderam, respectivamente, por 6% e 3% das EAI soropositivas nos adultos avaliados, o que pode corroborar a importância de considerar a avaliação desses marcadores na investigação de tais quadros, impactando as decisões de tratamento.

Vale ressaltar que as neoplasias malignas não apareceram com frequência nos pacientes com EAI e anticorpos positivos – apenas 6% dos indivíduos analisados haviam recebido diagnóstico de algum tipo de câncer, tendo sido o timoma e o teratoma de ovário os mais comumente observados.

De acordo com os critérios estabelecidos na literatura (veja o segundo quadro na pág. 14), 12% dos pacientes do estudo estavam entre aqueles com EAI provável na ausência de anticorpos identificados (soronegativos). Nesse grupo, em comparação com o de soropositivos, a população infantil apresentou menor prevalência de sintomas psiquiátricos, de alteração do comportamento, da linguagem ou da memória, de distúrbios do movimento ou de rebaixamento do nível de consciência. Já os adultos soronegativos eram mais velhos e exibiam mais frequentemente anormalidades na ressonância magnética (RM) que aqueles com EAI e anticorpos detectáveis, mas, como as crianças, tinham menos sintomas psiquiátricos, convulsões e distúrbios do movimento.

Todos esses achados, em conjunto, podem ajudar a delinear, com melhor custo efetividade, a investigação laboratorial da nossa população e a interpretação dos resultados diante de um quadro clínico suspeito.

Principais autoanticorpos detectados e características clínicas associadas dos pacientes com EAI soropositiva (n = 145)
Anticorpo
Aspectos clínicos em destaque
Anti-NMDAR (n = 79 / 54%)
- 67% dos casos positivos eram do sexo feminino e 38%, da faixa etária pediátrica
- Todos os pacientes apresentavam manifestações típicas: alteração de comportamento, convulsões ou distúrbios do movimento
- Detectável em soro e liquor
- Pacientes exibiam RM normal em 57% dos casos
Anti-MOG (n = 14 / 10%)
- 78% dos casos positivos eram da faixa etária pediátrica (três adultos e 11 crianças)
- Encontrado em 3% das EAI soropositivas em adultos e em 26% das infantis, sempre com título em soro ≥1:100
- Associado principalmente a rebaixamento do nível de consciência, alterações psiquiátricas ou de comportamento e convulsões
- Pacientes tinham RM normal em 21% dos casos
Anti-LGI1 (n = 12 / 8%)
- Relacionado com alteração de comportamento, sintomas psiquiátricos, convulsões ou déficit de memória, presentes na maioria dos pacientes
Anti-GAD65 (n = 11 / 8%)
- Pacientes apresentavam RM alterada em 54% dos casos; em 36% (n = 4), os achados foram compatíveis com encefalite límbica
Anti-GlyR (n = 7 / 5%)
- 86% dos casos positivos foram identificados na população adulta (seis adultos e uma criança)
- Associado a distúrbios do movimento e epilepsia (EEG alterado) em todos os casos
Anti-CASPR2 (n = 6 / 4%)
- Apenas um caso positivo era do sexo feminino
- Relacionado com distúrbios do movimento e com alterações de comportamento e psiquiátricas em todos os casos
- Associado à instabilidade autonômica em metade dos casos
Anti-AMPAR (n = 4 / 3%)
- Implicado sobretudo com alterações de comportamento, de memória ou de linguagem
- Pacientes exibiam RM normal em metade dos casos
Anti-GABA-BR (n = 4 / 3%)
- Associado a convulsões como principal manifestação clínica em todos os casos
- Metade dos pacientes preenchia critérios para encefalite límbica, com imagem característica na RM


Como reconhecer clinicamente uma encefalite autoimune

Grupo de doenças inflamatórias associadas a anticorpos antineuronais ou antigliais direcionados, geralmente, contra moléculas de canais iônicos ou proteínas dos receptores de neurotransmissores, as EAI se manifestam por uma combinação de sintomas neuropsiquiátricos, crises epilépticas, comprometimento da memória, distúrbios do movimento e do sono, disfunção autonômica e alteração do nível de consciência, entre outros.

Além do quadro clínico, o diagnóstico se baseia em exames complementares e na detecção dos autoanticorpos, de acordo com os critérios de Graus. Contudo, é importante ponderar que a ausência de autoanticorpos não exclui a possibilidade de doença imunomediada. A identificação precoce das EAI é crucial, uma vez que tais condições frequentemente cursam com sintomas debilitantes e de rápida progressão, mas podem ter bom prognóstico se oportuna e adequadamente tratadas.

Entretanto, as escassas informações sobre o tema, sobretudo em países em desenvolvimento, nos quais essas doenças podem ter aspectos distintos, e a dificuldade de acesso aos testes imunológicos, que requerem técnicas diferenciadas e rigorosas, tornam o reconhecimento do quadro na prática médica mais difícil e o subdiagnóstico frequente. Em tais cenários, estudos como o BrAIN possibilitam maior índice de suspeição e melhor investigação do quadro diante de manifestações sugestivas.

Critérios diagnósticos para EAI possível

O diagnóstico pode ser feito quando todos os três seguintes critérios são preenchidos:
1. Início subagudo (rápida progressão em menos de três meses) de comprometimento da memória de curto prazo, de alteração do estado mental* ou de sintomas psiquiátricos
2. Pelo menos um dos seguintes:

  • Novos achados focais no sistema nervoso central
  • Convulsões não explicadas por uma doença epiléptica previamente conhecida
  • Pleocitose no líquido cefalorraquidiano (contagem de leucócitos maior que 5 células/mm3)
  • RM com características sugestivas de encefalite

3. Exclusão de causas alternativas

*Estado mental alterado: diminuição do nível de consciência, letargia ou mudança de personalidade.

Adaptado de: Lancet Neurol. 2016 April; 15(4): 391–404.


Critérios para provável EAI diante de autoanticorpos negativos

O diagnóstico pode ser feito quando todos os quatro seguintes critérios forem preenchidos:
1. Rápida progressão (em menos de três meses) de comprometimento da memória de curto prazo, alteração do estado mental* ou sintomas psiquiátricos
2. Exclusão de síndromes bem definidas de EAI, a exemplo de encefalite límbica típica, encefalite do tronco cerebral de Bickerstaff e encefalomielite disseminada aguda
3. Ausência de autoanticorpos no soro e no líquido cefalorraquidiano e, pelo menos, dois dos seguintes:

  • RM com características sugestivas de encefalite
  • Pleocitose ou bandas oligoclonais ou, ainda, índice de IgG elevado ou ambos no líquido cefalorraquidiano
  • Biópsia cerebral com infiltrado inflamatório e exclusão de outras doenças (como tumor)

4. Exclusão de causas alternativas

*Estado mental alterado: diminuição do nível de consciência, letargia ou mudança de personalidade.

Adaptado de: Lancet Neurol. 2016 April; 15(4): 391–404


Conceitos que se confundem: EAI e síndromes paraneoplásicas

É importante distinguir as síndromes paraneoplásicas clássicas (SPN) relacionadas a autoanticorpos contra antígenos intracelulares e as doenças neurológicas associadas a autoanticorpos contra antígenos da superfície celular, que vêm caracterizadas como EAI. 

Enquanto, nas SPN, a associação causal entre um tumor e o fenótipo neurológico é crucial e os autoanticorpos detectados são biomarcadores não patogênicos, nas EAI, a relação com câncer varia muito, há acometimento frequente de crianças e adultos jovens e o papel patogênico dos autoanticorpos tem evidências consistentes.

Pesquisa de marcadores de EAI suporta o diagnóstico definitivo

Diante da suspeita clínica de uma EAI, a detecção de autoanticorpos específicos auxilia a estabelecer o diagnóstico definitivo, a identificar o subtipo imunológico da condição e a auxiliar a elucidação de casos clínicos atípicos, favorecendo uma melhor previsão de prognóstico e um tratamento precoce e direcionado.

No entanto, vários conceitos metodológicos que se aplicam aos autoanticorpos onconeurais clássicos, que têm como alvo proteínas intracelulares, não se estendem à análise dos autoanticorpos contra moléculas da superfície das células neurais. Dessa forma, se é possível detectar os primeiros por diversas técnicas laboratoriais, o segundo grupo apresenta diferentes propriedades que devem ser consideradas para o direcionamento do recurso mais apropriado e a interpretação adequada dos resultados.

Para atender a essa demanda, a equipe de Imunologia da Divisão de Pesquisa e Desenvolvimento do Fleury desenvolveu e padronizou cinco plataformas metodológicas que contemplam um amplo painel de autoanticorpos de relevância clínica. Os métodos utilizados incluem imuno-histoquímica em tecido não fixado (figura 1), Immunobloting, imunofluorescência indireta em tecidos fixados de primata e em células transfectadas (cell-based assay) (figura 2) e ensaio imunoenzimático em fase sólida (Elisa). Além de permitir a abordagem de uma diversidade de marcadores, a demonstração consistente de um autoanticorpo por imunoensaios baseados em mais de um método reduz a possibilidade de resultados falso-positivos.

Na prática, o Fleury oferece dois painéis de autoanticorpos para encefalites autoimunes – um em soro e outro em liquor – que pesquisam os principais autoanticorpos relacionados a esses quadros. Os testes devem ser solicitados de acordo com a amostra biológica de interesse.


Ficha técnica 

Composição do painel para encefalites autoimunes e síndromes neurológicas paraneoplásicas
Anticorpo
Metodologia
Anti-PCA-2
Anti-AGNA
Anti-Tr (DNER)
Anti-Zic4
Imunofluorescência indireta em tecidos fixados de primata (IFI-TBA)
Anti-NMDAr
Anti-IgLON-5
Anti-LGI-1
Anti-CASPR-2
Anti-GABA-B
Anti-AMPAr
Anti-DPPX
Imuno-histoquímica em tecido não fixado de roedor (IHC-TBA) e imunofluorescência indireta em células transfectadas (CBA)
Antianfifisina
Anti-CV2/CRMP5
Anti-PNMA2 (Ma2/Ta)
Anti-Ri (ANNA-2)
Anti-Yo/PCA-1
Anti-Hu (ANNA-1)
IFI-TBA e Imunnobloting
Anti-GAD65
IHC-TBA e Elisa
Anti-MOG
CBA
Anti-GlyR
Anti-GABA-A
Anti-mGlur1
Em desenvolvimento


Consultoria Médica

Imunologia

Dra. Alessandra Dellavance
[email protected]

Dr. Luis Eduardo Coelho Andrade
[email protected] 

Neurologia

Dr. Aurélio Pimenta Dutra
[email protected] 


Referência: 

1. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC10634608/pdf/fimmu-14-1256480.pdf 
2. Graus F et al. A clinical approach to diagnosis of autoimmune encephalitis. Lancet Neurol. 2016 Apr;15(4):391-404. doi: 10.1016/S1474- 4422(15)00401-9.
3. Simabukuro MM et al. A critical review and update on autoimmune encephalitis: understanding the alphabet soup. Arq Neuropsiquiatr. 2022 May;80(5 Suppl 1):143-158. doi: 10.1590/0004-282X-ANP-2022-S122.
4. Kunchok A et al. Autoimmune/Paraneoplastic Encephalitis Antibody Biomarkers: Frequency, Age, and Sex Associations. Mayo Clin Proc. 2022 Mar;97(3):547-559. doi: 10.1016/j.mayocp.2021.07.023.