Imunodeficiência combinada grave

Da triagem neonatal à confirmação genética: o diagnóstico precoce que salva vidas

O CASO

Paciente do sexo masculino, 17 dias de vida, nascido a termo com 39 semanas de idade gestacional, com peso de nascimento de 3.030 g e comprimento de 49 cm, sem intercorrências no período neonatal e sem antecedentes gestacionais relevantes. A mãe e o pai são saudáveis, com 38 e 37 anos, respectivamente, e não consanguíneos. O bebê tem uma irmã de 2 anos sem história pessoal pregressa relevante de doenças. 


O teste de triagem neonatal ampliada, com amostra coletada no terceiro dia de vida, apresentou número indetectável de cópias dos círculos de excisão dos receptores de células T (Trec), tendo sido repetido e confirmado. As demais análises estavam normais.


Diante do achado, o pediatra-assistente prosseguiu imediatamente a investigação laboratorial com a imunofenotipagem de linfócitos T e B para a pesquisa de células de memória e naïve (imaturas), em conjunto com equipe de Imunologia. Até a confirmação ou a exclusão diagnóstica, orientou que a família se mantivesse em isolamento do convívio social e contraindicou a imunização com quaisquer vacinas com microrganismos vivos atenuados, em especial a BCG, que o paciente ainda não havia recebido.


A DISCUSSÃO

Qual o significado do Trec alterado na triagem neonatal?

Os Trec são pequenos fragmentos de DNA liberados no processo de rearranjo genético dos linfócitos T imaturos recém-gerados, ou naïve, que ocorre durante a maturação e o desenvolvimento dessas células no timo. Como podem ser identificados em sangue periférico, constituem importante marcador da presença dessa população de linfócitos na criança.


No período neonatal, em condições normais, os bebês possuem muitas células T naïve. A detecção de uma quantidade baixa ou mesmo ausente do Trec, portanto, permite a identificação de pacientes com comprometimento importante na produção de linfócitos T.


Dessa forma, a análise do Trec como parte do teste de triagem neonatal alerta precocemente para o diagnóstico de síndromes que cursam com deficiência importante dessas células, como a imunodeficiência combinada grave (SCID, sigla em inglês de severe combined immunodeficiency), antes da evolução com processos infecciosos ou do surgimento de outras complicações que podem ser fatais.

Contudo, como se trata de um teste de triagem, diante de alteração no resultado, há necessidade de outros exames para a confirmação diagnóstica.


A imunodeficiência combinada grave

Grupo heterogêneo de doenças associadas a alterações no desenvolvimento e na função dos linfócitos T, podendo também afetar os linfócitos B e as células natural killers (NK), a SCID tem incidência estimada de 1 para cada 58.000 nascidos vivos. De etiologia genética, a condição compreende síndromes monogênicas ou alterações cromossômicas, com mais de 20 genes associados já identificados, que podem ter padrão de herança autossômico dominante, recessivo ou ligado ao X.


Antes do advento da triagem neonatal, que permite o diagnóstico de bebês ainda assintomáticos, a maioria dos pacientes era diagnosticada devido a quadros infecciosos ou história familiar, que, contudo, costuma ser relatada em menos de 20% dos casos. Nesse cenário, os sintomas mais comuns incluem infecções recorrentes ou graves causadas por vírus, bactérias ou agentes oportunistas, candidíase mucocutânea persistente, diarreia crônica, déficit ponderoestatural e reação adversa grave ou disseminada a vacinas de agentes vivos e atenuados, como a BCG.


A SCID é considerada uma das poucas emergências imunológicas devido à sua elevada mortalidade, em geral nos dois primeiros anos de vida, a menos que seja oportuna e rapidamente diagnosticada e que ocorra a reconstituição imunológica por meio do transplante de células-tronco hematopoéticas ou de terapia gênica, preferencialmente antes dos 4 meses de idade. Após essa idade, já está associada a um prognóstico consideravelmente pior.


Como confirmar a doença?

A SCID se caracteriza sobretudo por linfopenia à custa de linfócitos T, com número tipicamente muito reduzido de células CD3+, CD4+ e CD8+. Assim, o diagnóstico laboratorial é imprescindível, sobretudo a determinação das subpopulações de linfócitos pela citometria de fluxo.


Recomenda-se ainda a complementação da imunofenotipagem com a análise das subpopulações dessas células – linfócitos imaturos, ou naïve, recém-emigrantes do timo, de memória central, periférica e efetora, bem como a análise funcional dos linfócitos T por meio da resposta proliferativa sob estímulo de mitógenos, tais como fito-hemaglutinina e anti-CD3/anti-CD28.

Observa-se, nesses pacientes, uma marcada diminuição de células T naïve na periferia, que expressam o marcador CD45RA na sua superfície – o qual, especialmente quando conjugado ao CD31, possibilita a identificação das células imaturas recém-emigrantes do timo. Ademais, uma proliferação deficiente dos linfócitos corrobora a confirmação do quadro.

A contagem de linfócitos B (CD19) e das células NK (CD16/ CD56), por sua vez, tem utilidade na classificação dos diferentes tipos de SCID, o que se relaciona ao genótipo da doença. Já a dosagem das imunoglobulinas séricas também auxilia a investigação, já que, sobretudo após os 6 meses de vida, os pacientes costumam apresentar valores anormalmente baixos de todas as classes – IgA, IgM e IgG.


Por fim, a determinação da alteração genética, possível atualmente pelo advento dos testes baseados em sequenciamento de nova geração (NGS), tem grande relevância no diagnóstico molecular da SCID, embora não deva atrasar o tratamento.


A confirmação genética dos casos de SCID

Na maior parte dos casos, a alteração genética responsável pelo quadro de SCID pode ser determinada.


O conhecimento do genótipo relacionado ao quadro tem implicações não apenas na confirmação diagnóstica, como também na decisão terapêutica – sobretudo o regime de condicionamento pré-transplante – e na predição de risco de complicações pós tratamento e de desenvolvimento de outras manifestações não imunológicas, bem como no aconselhamento genético.


O Fleury dispõe de um portfólio completo de testes para investigação dos erros inatos da imunidade. O sequenciamento do exoma também configura uma alternativa relevante, sobretudo em pacientes em quem outros testes genéticos se mostraram negativos. A forma fast desse exame, também realizada pelo Fleury, traz a vantagem da liberação rápida do resultado, em até 15 dias corridos, o que é particularmente importante nessa investigação.


DESFECHO

No caso apresentado, o pediatra solicitou a imunofenotipagem para linfócitos T e B, com pesquisa de células naïve e de memória. O exame mostrou linfopenia grave de células T, com contagem marcadamente reduzida de CD3+, CD4+ e CD8+, tendo sido as subpopulações de células CD4+ e CD8+ naïve virtualmente ausentes. Os linfócitos B encontravam-se em número normal para a faixa etária, enquanto as células NK se apresentavam muito diminuídas. Não foi vista resposta proliferativa das células T sob o estímulo com mitógenos. Tais resultados confirmaram o achado do Trec e o diagnóstico de SCID com fenótipo T-B+NK-.


O paciente, acompanhado em conjunto com a equipe de Imunologia, foi encaminhado para o transplante de células-tronco hematopoéticas, realizado aos 2 meses de vida. Até o tratamento definitivo, ficou em isolamento domiciliar, com reposição intravenosa de imunoglobulinas e profilaxia antibiótica e antifúngica, sem intercorrências.


A investigação genética identificou variante patogênica no gene IL2RG, localizado no cromossomo X.


SCID ligada ao X

A forma ligada ao X, que acomete apenas o gênero masculino, é o tipo mais comum de SCID e decorre de alterações no gene IL2RG, que codifica a subunidade gama comum do receptor de interleucinas (IL), compartilhada pelo menos pelas IL-2, IL-4, IL-7, IL-9, IL-15 e IL-21.


O quadro causa um grave comprometimento imunológico devido ao bloqueio de muitas vias de citocinas importantes para o desenvolvimento e função dos linfócitos, resultando na ausência de células T e NK e em células B não funcionantes (SCID T-B+NK-).


CONCLUSÃO

A SCID é um grupo diverso de doenças potencialmente fatal, constituindo uma urgência em Pediatria. Os bebês afetados parecem saudáveis nos primeiros meses de vida, o que, em geral, ocasiona um atraso no diagnóstico, comprometendo de forma importante o sucesso do tratamento e o prognóstico.


A instituição do Trec na triagem neonatal modificou a história natural da doença, possibilitando a identificação do quadro e a reconstituição do sistema imunológico desses pacientes antes da evolução com infecções e do desenvolvimento de complicações.


Consultoria Médica

Imunologia

Dr. Alexandre Wagner Silva de Souza

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Dr. Sandro Félix Perazzio
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Dr. Luis Eduardo Coelho Andrade
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Genética

Dra. Christine Hsiaoyun Chung
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Dra. Caroline Olivatti

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Dr. Wagner Antonio da Rosa Baratela

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